18/01/2013

A crítica da gastronomia política I


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Desde 2003, quando o “New York Times” publicou um artigo sobre a derrocada da gastronomia francesa e o advento da “nueva nouvelle cuisine”, o mundo que consome este fetiche moderno que é a gastronomia mudou a direção do seu olhar para a Espanha.
Isto, obviamente, significou uma nova orientação nos negócios turísticos e alimentares. Um abalo forte nos pilares daquela atividade que, desde o império napoleônico, parecia alicerçada exclusivamente da França. Era o reconhecimento explícito, ainda que tardio, da multipolaridade da cultura gastronômica moderna.
O autor daquela matéria no “New York Times” foi Arthur Lubow, e ele reproduziu fielmente o que Rafael Garcia Santos vinha dizendo há anos.
Rafael é esse camarada baixinho que tenho diante de mim, atarracado, de seus 50 anos, não sei ao certo se loiro ou ruivo, falante, dono de uma risada sarcástica, envergando um tênis de verniz furta-cor. Bacharel em direito, nascido em Santader, província de Cantábria, Espanha, ele é o principal crítico gastronômico da Espanha e está a nos dizer que não acredita na crítica gastronômica.
Foi também estudante maoísta e participou dos primeiros movimentos estudantis contra a ditadura de Franco. Começou a fazer critica gastronômica quase por acaso, num jornal da esquerda na qual militava, só porque colecionava vinhos. Mas logo foi dispensado, pois constatou que se tratava de um assunto elitista. Na imprensa burguesa, também não encontrou paz.
Rafael Garcia Santos, que acha que a revolução se espraia por todos os domínios da cultura, inclusive a gastronomia, não é o tipo de pessoa diante do qual se fique indiferente.
Dono de um texto de qualidade invejável, ele não encarna qualquer espécie de neutralidade crítica e, assim, coleciona tanto inimigos como amigos. Mas ele consegue ver longe: foi talvez o primeiro a proclamar a genialidade e a revolução empreendida por Ferran Adrià –mesmo que isso tenha lhe custado o emprego de crítico, pois, ao eleger um catalão, os bascos não o perdoaram, segundo seu próprio relato. Isso há 20 anos.
“Fui o primeiro a afirmar que Adrià era o melhor cozinheiro do mundo; honra dividida com Michel Bras. E sou o único que se atreve a afirmar que Adrià é o melhor cozinheiro da história. Descobri também Berasategui, Quique Dacosta...”. E com a mesma desenvoltura é capaz de nos dizer que Bocuse não passa de um impostor (“Me diga uma só criação de Bocuse! A soupe elisé? Mas era preciso ser Paul Bocuse para fazê-la?”) ou que Gualtiero Marchesi é um dos melhores cozinheiros do planeta.
Opiniões seguras permitiram-lhe, nos últimos 20 anos, construir mais do que uma reputação de iracundo: é autor e diretor do guia “Lo Mejor de la Gastronomia”, o mais importante da Espanha, e organizador de famoso congresso anual em Donostia (San Sebastián), no país basco, que já entra em sua Xa. edição1.
Nada de mistificações! Rafael é o primeiro a concordar que Adrià faz uma culinária de desnaturação, isto é, cujas criações se afastam da naturalidade das coisas para se aproximar dos artefatos, que mais e mais dominam a indústria alimentar moderna. Essa diferença, aliás, está na base da divergência pública recente entre o chef Santi Santamaría e Ferran Adrià: um advogando a tradição, outro, a fantasia de fundamentos industriais.
Se cada época histórica gera os seus críticos, Rafael é expressão da nova gastronomia espanhola, que nasce logo após a queda do franquismo e se beneficia, ao mesmo tempo, das influências da nouvelle cuisine sobre a Espanha e dos investimentos pesados que o Estado espanhol passou a fazer para colocar em realce, em todos os campos da cultura, a riqueza e diversidade dos povos espanhóis que a ditadura simplesmente havia sufocado. Dai em diante a Espanha não seria mais apenas o país das paellas.
Rafael também insiste em outra especificidade espanhola: a cozinha de vanguarda não existiria se, na Espanha, se aplicasse, como na França, a jornada de trabalho de 35 horas, imposta pelas leis francesas. Os preços na Espanha também se tornariam astronômicos, levando de roldão a cozinha espanhola de vanguarda. Por trás daquele confronto que Lubow anunciou, havia então uma luta surda entre o mercado formal e o mercado informal de trabalho.
Assim, compreende-se que Garcia Santos não seja muito querido, mas não se compreende que haja atravessado o oceano para vir nos dizer que o poder da crítica é nenhum. Seu niilismo advém da convicção (e da experiência pessoal) de que é impossível ser independente e manter o espírito crítico em um jornal cujo único objetivo é ganhar dinheiro. No primeiro enfrentamento, a cabeça do crítico é posta a prêmio.
“Só acredito na critica organizada empresarialmente, isto é, não assalariada, que corre seus riscos por conta própria”, diz. Isso, porque os grupos jornalísticos querem que o crítico monte negócios que levem dinheiro a eles. “Montar, por exemplo, suplementos que se rentabilizem com a publicidade. Montar programas de rádio e televisão que dêem dinheiro. Não existe futuro para os assalariados na crítica gastronômica.”
É inegável a originalidade dessa postura, pois é contraditório que o capital se volte contra si próprio: afinal, se um jornal pode achar que perde dinheiro com a crítica contra a corrente, como pode alguém organizar-se como empresário de si próprio e ganhar o mesmo dinheiro que parecia irremediavelmente perdido?
De crítico gastronômico, Rafael tornou-se, talvez involuntariamente, um crítico do próprio jornalismo gastronômico. Ele acusa os jornais de praticarem descaradamente o amiguismo: “A manipulação tem seu maior fundamento no fato de que a maioria dos leitores nunca poderá comprovar o que o crítico afirma. Num nível restrito é mais difícil enganar, mas se aumenta o universo, as pessoas não podem conhecer quase nada. Quantos visitam, fora de São Paulo, 25 restaurantes gastronômicos num ano? Provavelmente não haja duas ou três mil pessoas no mundo capazes disso. Daí que se podem montar verdadeiras patranhas midiáticas, dar expressão mundial a um cozinheiro que não a tem.”
Assim, é fundamental que o leitor seja o crítico do crítico, pois quando um chef faz seu prato ele joga com a sua reputação e, quando um crítico o comenta, joga com o seu próprio prestígio.
Também os cozinheiros condicionam a crítica. Fazer crítica é caro, custa muito dinheiro viajar, indagar. Os jornais não estão dispostos a isso. As revistas de crítica são insolventes, como “GaultMillau” ou “Gambero Rosso”. A crítica exige um público, uma massa social, que financie a independência, que simplesmente não existe. Apenas alguns guias sobrevivem.
Eles falam de 5 mil restaurantes, por exemplo. “Você acredita que eles visitaram 5 mil estabelecimentos e pagaram 5 mil refeições? Por isso as pontuações sempre são altas”, afirma. Como no caso dos vinhos. “O grande crítico (Robert Parker? José Peñin?) escreve para os donos de bodegas, não para os apreciadores de vinhos, e suas pontuações começam em 90, entre 90 e 100. O negócio está em escrever para os bodegueiros.”
Assim, conclui, “é dificílimo para o crítico manter o equilíbrio entre o bom trato que está obrigado a dispensar ao cozinheiro e a credibilidade que deve ganhar com o leitor. Por isso há tão poucos bons críticos”.
Mas o pensamento crítico é o capital de Rafael, e ele não está disposto a contemporizar. “É preciso fazer uma Zara (cadeia de loja espanhola que populariza a vestimenta com “estilo”) da gastronomia, compreende?” Com isso quer dizer que a gastronomia, para fecundar a sociedade, precisa descer do pedestal, “deixar de oferecer cardápios seletos a 100 euros, para oferecer muito mais cardápios a 30 euros”.
Sem a crítica ao elitismo, não vê como prosseguirá a revolução gastronômica iniciada por um punhado de chefs talentosos de todos os recantos da Espanha. Os chefs ficarão a quilômetros de distância da população, discutindo técnicas, ingredientes, fazendo e falando o que queiram, sem qualquer eco na sociedade.
Garcia Santos não é ingênuo a ponto de achar que a gastronomia não seja um negócio voltado para o lucro –tanto é que, ele mesmo, é um empresário do setor, com seu guia e com seu congresso anual. E talvez sejam exatamente esses negócios, periféricos ao estrelato dos grandes chefs, o verdadeiro negócio... Enquanto jovens ingênuos, “covers” dos fogões, pensam em ficar ricos imitando Adrià e tantos outros. Quando diz que não se fica rico com gastronomia está atacando o fetiche em que a gastronomia se transformou.

O “new criticism” em gastronomia
Mas o trabalho crítico de Rafael Garcia Santos está longe de ser uma coleção de frases desconexas, de abordagens que se justifiquem pelo estranhamento que produzem. De forma consciente ou não, ele vem articulando ao longo dos anos um novo discurso crítico em gastronomia, à maneira do que foi o “new criticism” em literatura no início do século 20.
O “new criticism” rompeu com a idéia de que a obra literária só podia ser analisada sob o prisma de outra ciência, preferindo a análise imanente ou os aspectos estritamente literários da narrativa. Também deixou de lado a idéia de que a biografia do autor, assim como a sua intenção, eram chaves de intelecção da sua obra.
Para Rafael, de nada vale a tradição pela tradição, o filho que prossegue a culinária centenária da família. E também não se pode avaliar a justeza de um prato por realizar em maior ou menor grau os cânones da alta gastronomia, como foi no período pós-Escoffier até a nouvelle cuisine, que estabeleceu um novo cânone. Cada época tem o seu cânone, e é em função dele que a crítica se exerce como expediente que “arrasta” o fazer culinário para o campo do que efetivamente importa em termos de modernização do gosto e dos hábitos alimentares.
Assim, Rafael está convicto de que a obra gastronômica participa de seu tempo de uma maneira determinada: ou ela é inovadora, revolucionária, ou mera repetição do passado. E tudo deve ser analisado a partir do grau de ruptura que trás em si – a exemplo do que foi a nouvelle cuisine, firmando, por volta dos anos 1970, uma nova filosofia sobre o sentido do cozinhar, que orientou especialmente as obras de Guérard, Chapel, Troisgros, Bocuse, Senderens, Outhier, Vergé, e Haeberlin. A “atualização” daquela filosofia e o modo como ela influencia a moderna cozinha (espanhola, é claro) é assim apresentada por Rafael Garcia Santos2:
1 - A verdade em cozinha, como na arte, não existe: existem infinitas visões chamadas a enriquecer a cultura culinária.
2 - A única verdade é ser você mesmo, criar um estilo próprio com plenitude.
3 - O chef deve ser considerado pela imaginação e perfeição da sua obra, não por sua fonte de inspiração.
4 - Hoje como ontem é necessário reivindicar as matérias-primas nobres, sem que por isso se negue o laboratório culinário.
5 - Plasmar construções integrais e articular os elementos de um todo.
6 - Perseguir a expressão essencial; quanto maior a diferença que se marque com menos ingredientes ou componentes, ótimo!
7 - Colocar-se a naturalidade gustativa, táctil, olfativa, cromática... Como norma, preservar sabores, texturas, aromas e cores tal qual são.
8 - Há que se aprofundar o desenvolvimento de novas técnicas de cocção que mantenham plenamente a identidade dos ingredientes, acentuando a tendência a ressaltar as virtudes intrínsecas dos mesmos: a integridade, os seus sucos.
9 - Recuperar os molhos e não subordiná-los à estética. É preciso criar novos conceitos, com sabores mais nítidos, mais complexos, inéditos, assim como trazer corpos e texturas desconhecidas. Evitar os arco-íris palatais.
10 - Potencializar o caráter sensorial fazendo intervirem os múltiplos sentidos no desfrute de cada prato.
11 - É preciso conseguir que "o comensal se levante da mesa como se não houvesse comido".
12 - Há que se assumir a história, questioná-la e questionar-se sempre.
Esta “filosofia” atualizada, essa “tábua da lei” que é um cânone contra qualquer outro cânone, é a chave para se entender a crítica de Rafael Garcia Santos e seu caráter partidário: quem não segue este cânone é contra ele, inimigo da revolução gastronômica e, portanto, um alvo a ser combatido.
Um segundo critério é o que o cozinheiro pretende fazer, o estilo que busca construir, a sua “filosofia pessoal” conforme declarada. É por ela que, dentro da corrente revolucionária, poderá se diferenciar, ser assimilado como um promotor da transformação em curso. Por fim, sua perícia técnica, sua criatividade e inovação pontuais completarão os parâmetros para julgamento da sua gastronomia.
Assim, a força metafísica da revolução em curso irmana, numa só missão, crítico e criticado, ao passo que a própria crítica mergulha na história como promotora do futuro. Nada de neutralidade axiológica! O crítico é um moralizador da história, parteiro da revolução, tendo deixado para trás aquele ponto de vista externo, pretensamente neutro, de que se nutrem os jornais que não querem criar problemas para si a partir de opiniões extremadas ou divergentes.
O crítico é quem aposta e se arrisca, descendo ao chão da história para travar os combates em curso; não o observador do vôo do pássaro de Minerva ao entardecer. Dessa perspectiva, sequer se pode dizer que seja um traidor do leitor, a quem os jornais pensam melhor servir oferecendo uma descrição neutra: “O leitor deve analisar o nível de sintonia que tem com o crítico. Sintonia que pode ser maior ou menor e que é determinada por vários fatores... Cada pessoa é um universo. Um mundo que pode coincidir mais ou menos com um crítico determinado. A mim me fascina a cozinha de vanguarda, se a você não agrada não tenho porque ser o seu crítico favorito”.
Mas uma coisa é certa: não se pode compreender Adrià sem Rafael, nem Rafael sem Adrià. São como uma só pessoa em planos distintos. Como foram, no passado, a culinária de Escoffier e a crítica do gastrônomo que se assinava Curnonsky.
Numa época de tanta mornidão crítica, em qualquer domínio da cultura, não deixa de ser estimulante topar com um baixinho invocado que veio de longe, nos chamando para a briga, bailando em seu tênis furta-cor.

Publicado em 15/6/2008 na Revista eletrônica Trópico e reproduzida em Controvérsia

1 comentários:

Rafael dos Santos disse...

Também acho que a crítica gastronômica se perdeu muito. Tanto é que hoje as pessoas confiam mais na crítica 2.0 (de redes sociais e blogs) do que em revistas e guias.

Mas percebo que cada vez mais os guias estão atrás da opinião "mais pública", "menos profissional". Já temos bons exemplos nas grandes cidades, incluindo júris compostos por leitores e amantes da gastronomia em meio às típicas figurinhas desse meio.

O jornalismo gastronômico ainda está amadurecendo no Brasil, quem sabe não conseguimos incentivar os outros meios a descer do "pedestal".

Quanto ao Rafael, ele é assim mesmo como descrito - muito bom, mas coleciona polêmicas. Tive a oportunidade de ter uma aula com ele, e em menos de um par de horas já tinha alguns inimigos na sala haha.

De qualquer forma, seja por bem ou por mal, são essas pessoas que acabam abrindo os olhos de outras. Sempre digo que no jornalismo gostamos de botar fogo na lenha, mas tudo na vontade de vermos as coisas mudarem. Foi o que aconteceu na mudança da nouvelle cousine para a cocina molecular, é o que torço para que aconteça novamente (e que, desta vez, o Brasil pegue a onda).

Muito bom o post, abraços.

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