21/05/2013

Como trasformar ambulantes em estacionários - I



O Senhor Andrea Matarazzo, quando candidato a vereador, começou a se movimentar para elaborar um projeto de lei que regulamentasse o comércio da chamada “comida de rua”. Ele não possuia tradição nessa área e seu interesse se deu em função dos acontecimentos da Virada Cultural de 2012 e, agora, uma vez eleito, apresentou o Projeto de Lei 01-00311/2013, publicado no último dia 10/05/2013. 

Além de analisar o projeto, é preciso analisar a sua justificativa - pois nela se expressam com clareza as intenções do proponente e como ele pretende que o projeto seja lido. Hoje analisaremos a justificativa para, posteriormente, nos dedicarmos ao projeto propriamente dito.

Segundo Matarazzo, “cada vez mais o comércio informal de alimentos vem crescendo como uma alternativa ao emprego formal”. Ora, trata-se evidentemente de algo que não é uma escolha das pessoas: são “informais” porque lhes falta, por exemplo, capital; são informais também porque o poder público, nos últimos 7 anos, não concede autorizações para a atividade, embora a norma para tanto exista. Assim, é meritório que se reconheça a natureza social do problema, faltando a análise das causas de modo a ataca-las corretamente.

Para o vereador “ não é possível nem desejável a proibição total, tampouco um cenário de vistas grossas”, de modo que, através da “regulamentação da atividade será possível conferir maior tranquilidade àquele que pretende trabalhar com o comércio de comida de rua”. Num certo sentido, é a promessa de que a fiscalização municipal parará de perseguir vendedores de rua (o que, diga-se, não exige uma lei, mas sim uma orientação política clara e firme dos dirigentes para a burocracia municipal). Afinal, só numa visão totalitária algo “não regulamentado” é o mesmo que “ilegal”. Digamos que é “a-legal”...

Mas, qual o juízo que ele faz da administração municipal? “Tal atividade de comércio tem sido realizada de modo desorganizada e sem controle ou fiscalização, sem atendimento a parâmetros de higiene e segurança do alimento, pondo em risco a saúde da população. Assim, mostra-se necessário e urgente a regulamentação dessa atividade”. 

Lendo esse breve diagnóstico, nos ocorre: como sabe o vereador que não há “atendimento a parâmetros de higiene e segurança”? Quais as estatísticas sobre contaminação originada do consumo de comida de rua em que se baseia? Qual o diagnóstico sobre as condições de produção dos alimentos de rua? Não há qualquer preocupação em fundamentar as afirmações. Trata-se, então, de meros preconceitos aos quais quer que o leitor se converta. Em outras palavras: o velho viés higienista. Quanto à “desorganização” e “controle”, é algo que diz da burocracia de Estado, não da população. Mais uma vez, que se diga que é possível resolver essas questões sem recurso a novas leis; através de uma reforma administrativa, por exemplo.

No entanto, um objetivo coletivo se insinua no projeto: “propiciar a compatibilização com o ordenamento urbano, a segurança dos consumidores, e o uso adequado dos espaços públicos”.  Mas como se pretende fazer isso? 

Diz a justificativa: “o universo abarcado pela proposição é formado pelos comerciantes de alimentos que exercem sua atividade em: veículos automotores ou tracionados por um veículo a motor (vans, trailers, veículos urbanos de carga, etc.); em equipamentos tracionados pela força humana (como os carrinhos); e em barracas desmontáveis”, através da “emissão de um Termo de Permissão de Uso pela Subprefeitura onde o solicitante pretende se instalar, observados os critérios estipulados pelo projeto para obtenção da permissão”.

Fico imaginando essas pessoas que, vivendo no desemprego, ou aposentados, se postam em saídas de metrô, em esquinas movimentadas, ou percorrem ruas da periferia vendendo mandioca,  pequi quando é época, queijo minas, ou pães de porta em porta. Utilizam para tanto sacolas, carrinhos de pedreio, pilhas de mercadorias feitas sobre caixontes - enfim, toda sorte de expedientes criativos ao alcance de quem não tem recursos. Do dia para a noite terão que procurar a Subprefeitura para poderem continuar fazendo o que sempre fizeram, tendo que atender a uma nova série de exigência - como motorizar-se ou estabelecer barracas. Como não conseguirão preencher os novos requisitos, passarão de “informais” a “clandestinos”.

O modus faciendi proposto pelo vereador: “para cada Subprefeitura, a criação de uma Comissão de Comida de Rua, composta por representantes da própria subprefeitura, da Companhia de Engenharia de Tráfego - CET, da Secretaria Municipal de Saúde, do Conselho de Segurança - CONSEG e de associações de bairros ou moradores. A Comissão será responsável pela análise das solicitações de permissão de uso, observadas características do equipamento, local onde se pretende a sua instalação e os grupos de alimentos que se pretende comercializar”.

Essa parece ser a sua grande obra. Mas seria um bom principio evitar qualquer expansão da burocracia pública. Um colegiado desses, em cada uma das 31 subprefeituras de São Paulo, é um enorme novo aparato burocrático. Seria muito mais fácil, por exemplo, o CET estudar a cidade determinando onde os vendedores poderia estacionar seus veículos (quando tivessem veículos), assim como há áreas para Zona Azul (carros comuns, taxis, idosos, caminhões, etc). Para que uma comissão a analisar ad hoc? E a Secretaria da Saúde, tendo suas atribuições revistas, poderia executar suas funções sem integrar qualquer nova comissão, e assim por diante. É preciso acabar com o casuismo - a análise “caso a caso” - que torna a atividade susceptível a influências nem sempre claras e legítimas, à influência da sociedade de compadres, à pressão dos vereadores e assim por diante. O que se cria através da Comissão de Comida de Rua é uma nova moeda de barganha.

A dimensão subjetiva, o risco de favoritismo, é óbvio quando diz o vereador: “uma vez requerida a permissão e autorizada pela Comissão, esta convocará um chamamento público daqueles interessados em oferecer no mesmo ponto e por meio do mesmo equipamento e, havendo mais de um interessado, proceder-se-á escolha por meio de seleção técnica, garantindo-se um tratamento isonômico a todos os interessados ao mesmo tempo que privilegia o equipamento de melhor qualidade para o atendimento público.”

O que quer dizer “mais de um interessado”? Quer dizer que a Prefeitura, através dos procedimentos descritos, criará para a comida de rua a figura do “ponto” comercial, que até agora inexistiu, e, como um detentora de “pontos”, os colocará no mercado. Não se trata, portanto, de considerar um pretendente apto ou inapto, mas de lhe franquear uma concessão. Essa uma novidade crucial do projeto.

“O projeto prevê, além da inspeção anual, pela Coordenação de Vigilância Sanitária - COVISA, a renovação, também anual, do próprio Termo de Permissão de Uso”.  Isso quer dizer que continuará o vendedor de rua submetido, em última instância, à Vigilância Sanitária. E, anualmente, terá que provar o que já provou uma vez, mantendo o direito ao “ponto”. 

É difícil imaginar como tudo isso possa se constituir num atrativo para o vendedor informal, representando uma perspectiva de melhora de vida. Mais burocracia, uma instância nova com a qual é obrigado a manter contato anual. E, o que é mais grave, nem uma só palavra sobre o substancial - comida - tratando apenas das condições de localização dos vendedores e seus veículos.

No próximo post, analisando o projeto propriamente dito, desenvolveremos a abordagem desse aspecto.

4 comentários:

Andreza Biagioni disse...

e burguesar a comida de rua.

Prof. Cláudio Lima disse...

É inadmissível, sob o aspecto da saúde pública, a "formalização" de pessoas que vendem alimentos sem higiene. Higiene não é apenas colocar gorro ou luva. A segurança dos alimentos diz respeito a dá condições de multiplicação microbiana, o que acontece ao manipular alimentos no meio da rua, exposto à fuligem, fumaça, poeira, lama, insetos, animais, lixo e pessoas doentes...Sem falar que o manipulados pega em dinheiro e pode estar doente sem que as pessoas saibam. Nos restaurantes, por exemplo, a Vigilância Sanitária exige exames dos funcionários, como exigir do ambulantes? Os microrganismos se multiplicam na temperatura ambiente, logo, não há como conservar o alimento seguro nas vias públicas por falta de equipamentos que mantenham a temperatura dos alimentos (refrigeração para alimentos refrigerados e manutenção dos alimentos quentes acima de 60C).E nem vou falar que ambulante não possui água para lavar as mãos etc etc...esse comércio (de alimentos PERECÍVEIS) deveria ser proibido e não legalizado. O governo quer apena FATURAR! Prof. Cláudio Lima (eng de alim / Esp em alimentos e saúde Púbica / Msc em tecnologia de alimentos) Facebook inspetor saúde

e-BocaLivre disse...

Caro inspetor,

Sendo engenheiro, deve saber o valor da prova. Sua contribuição seria muito mais louvável se nos apresentasse dados estatísticos sobre contaminação através desse tipo de comércio e não apenas dizer sobre as condições de multiplicação de microorganismos. Além disso, o projeto que comento, prevê condições de acondicionamento e transporte dos alimentos vendidos na rua. Por fim, essa prática é cada vez mais difundida em um sem número de países e não consta que a saúde pública tenha sido prejudicada. Enfim, o que nos falta para discutir são números, não doutrina. Grato

Weverton Lucas disse...

Muito interessante!!



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