11/07/2013

A gente não quer só comida!


Comida põe na capa uma discussão importante: os restaurantes vendem mais do que comida, e será que esse “a mais” vale o preço? Texto inteligente de Josimar Melo expressa inconformismo com a combinação do decór caro e a comida medíocre. Mas a comida precisa mesmo ser o centro do restaurante, o seu maior atrativo? Numa época em que o comer foi elevado à condição de experiência multissensorial a questão faz todo o sentido.

O Spot, que é um fenômeno da restauração na cena paulistana, há décadas tinha dificuldade em “vender comida”. As pessoas frequentavam o restaurante não de olho no prato, mas em tudo o mais. Estavam dispostas a ficar lá por horas, apenas bebericando. O Spot teve que estabelecer uma regra: bebidas só com comida. Ainda hoje há uma magia no lugar que transcende o interesse pela comida. E é bom que seja assim, é bom que o público e os proprietários tenham encontrado um modus vivendi duradouro. E é preciso dizer que a comida nunca foi má.

As “comedorias” exclusivas são estabelecimentos que ficaram para trás. Hoje arrastam consigo uma simbologia mais ampla do que a comida, sugerindo estilos de vida, partidos estéticos, filiações a grupos sociais claramente reconhecíveis, etc. Num certo sentido, os restaurantes querem que o cliente se sinta “em casa” - mesmo que a casa desses clientes não corresponda a um ideal pessoal meu ou de Josimar Melo.

Em muitos restaurantes se consome doses exageradas de arquitetura e de decoração de interiores. Projetos bacaninhas, de arquitetos renomados na produção de edifícios e residências, que puderam expandir seu “estilo” (ou falta de) pelos restaurantes, especialmente os ajardinados. É um “plus a mais adicional” que se paga na conta. Vale a pena? 

Quando é bom - o que é raro - certamente vale. Mas o modo-julio-neves-de-ser da metrópole é odioso. E, como diz Paulo Mendes da Rocha, São Paulo faz por merecer Julio Neves e seu neoclassicismo neopassadista. Nesses casos, que são a maioria, por melhor que seja a comida, não vale a pena. Não vale o preço. Mas o preço da arquitetura e do decór é impositivo, ao passo que o cardápio ainda permite certa escolha. 

Josimar pede mais foco dos restaurantes na qualidade do que é servido, já que seus donos investiram tanto em outros itens. Os restaurantes citados na matéria foram ouvidos sobre as críticas (a mania de jornais de que, além do crítico expressar sua opinião estritamente pessoal, há sempre um “outro lado” a ser ouvido, diminuindo assim o impacto da própria crítica. O falso culto à “neutralidade"...). O Kapa e Kanashiro defende seus preços pela introdução dos “sushis trufados” e porque o “salmão, nossa principal matéria-prima, aumentou 80% de janeiro até agora”. Pessoalmente acho essas coisas o lixo gastronômico. E só me interessa constatar qual tipo de lixo certo público acha um luxo. O mesmo ocorre no  Paris 6 - um lugar onde se come mal mas que vive cheio -  mas eles não deram “explicação”. Melhor assim. 

Há uma burguesia (e uma pequena-burguesia) que não sabe comer gastronomicamente e possui um senso estético lastimável. Essa gente, é claro, tem todo o direito a comer fora. Se empanturrar de salmão, de azeite trufado, de mastigar baixas-temperaturas, comer cuscuz marroquino, quinoa, kobe beef, ceviches que escandalizariam um peruano, e o que mais esteja na moda. Talvez frequente lugares decorados como suas casas (ou como gostariam que fossem suas casas). Um dia, quem sabe, serão retratados por Roberto Camasmie e imortalizados nas próprias paredes. 

Convenhamos, a imaginação não tem limites e a ideia da matéria de capa do Comida - pontificando que “decoração deve ficar em segundo plano, não comida” - é mais um desejo de Josimar (e meu) do que dos clientes dessas casas por ele analisadas. Felizmente São Paulo é grande e, nela, tudo cabe. Inclusive o modo Camasmie de comer. Sim, porque há uma coerência entre tudo isso; se não houvesse, donos de restaurantes não gastariam tanto em arquitetura e decoração, se esforçando mais no front culinário.

A anti-gastronomia. Comida registra (seção Isso eu não como) a opinião do chef do restaurante Salvattore, sobre coelhos: “não sei nem que gosto tem, nunca comi coelho”. Conta que certa vez um cachorro matou um coelho na sua frente. Traumatizou. Ok. Mas dai a dizer que “coelho é um animal de estimação e não deveria ser criado para abate” há um abismo. Por que acha que a experiência pessoal é mais importante do que aquela da sociedade para a qual trabalha?  Assim começam as políticas de intolerância com a diversidade alimentar. 

Pessoalmente, Igor Witer, acho que cozinheiros que pensam assim deveriam guardar as opiniões anti-gastronomicas a sete chaves. Detesto figado de boi. Mas o que eu ganharia - ou os leitores ganhariam - se saísse propagando isso? Um dia vi matar um boi num abatedouro. Depois, acabaram com os abatedouros, substituindo-os pelos frigoríficos; o sangue pelo rigor mortis. Não foi o boi que saiu ganhando, mas os cozinheiros que acham que o processo de produção começa na porta da cozinha e se escandalizam quando dão um passo para fora.

Paladar faz capa sobre fermentação, pegando carona no sucesso do livro de Sandor Katz, The Art of Fermentation. Na entrevista publicada, Sandor sugere que a indústria se apropriou dos processos de fermentação, e  “fermentar a própria comida é endossar um protesto contra a homogeneização do sabor imposto pela industrialização, já que seu chucrute nunca será igual ao meu”. 

Um fermento amigável é tudo de bom. Entre nós parece que começou pelo pão, chamado, não sem certo pedantismo, de levain. Agora, com a moda das cervejas artesanais, não sei como se chamará. Os nossos gourmets brasileiros poderiam dar um toque “nacional” a essa moda: a fermentação a partir da saliva, como praticam os índios, nunca foi estudada a sério e muito menos adotada por qualquer chef.

Luiz Américo nos dá a boa notícia de um izakaya de bom nível que abriu em Pinheiros.

3 comentários:

Anônimo disse...

Boa noite Professor Carlos,

Tudo bem? Gostaria de te pedir ajuda sobre cursos de metrado em antropologia que estudam a alimentação. Será que você poderia me enviar seu email? Muito Obrigada, Clara

Unknown disse...

Ao ler o blog fiquei me perguntando quem era o arquiteto mencionado e por curiosidade fui verificar suas obras. Formou-se na Universidade Mackenzie uma faculdade que valoriza a praticidade e não a beleza do traço e do conjunto estético a priori. De projetos conhecidos como o Shopping Villa Lobos, West Plaza, Vila Olímpia entre outros é um misto de elementos neoclássico e “moderno” sem muita conexão entre eles, é o “moderno tupiniquim”.
Concordo com o Josimar Mello quando menciona o investimento feito pelos donos de restaurante na tentativa de fazer com que os clientes se sintam em casa, uma certa opulência de impressionismo em quem não tem a casa assim mas pode consumir o “status” e os que já possuem se sintam familiarizados. Desvia-se a atenção da comida é verdade, mas me pergunto se estamos preparados para isso, de um lado os que comem para alimentar-se sem sentir o gosto do que está comendo e de outro uma elite que apesar da educação melhorada, consome somente o “status” e prestígio mas que na prática conhece muito pouco e ousa menos ainda.
Os donos de restaurantes ao perceberem essa lacuna, nadam de braçadas na falta de informação, vaidade e aparências, da mesma forma que praticamos o “pra inglês ver” nos negócios estendemos ao campo estético de uma forma pobre e sem conteúdo.

Marcus Ernani disse...

Hoje boa parte dos projetos no Rio de Janeiro são feitos dentro de agencias de publicidade (como o nosso terroir de vinhos). Gasta-se uma fortuna em projeto, layout, ponto, plotagem, sancas de isopor, cria-se um ambiente artificial, conta-se uma historia inventada, economiza-se em treinamento e pronto! todos estes ingredientes para vender food service a preço de gastronomia!

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