27/01/2014

Caminho paulistano e descaminho de culinárias européias


Devia ter lido há muito mais tempo os trabalhos do professor Koichi Mori sobre a expansão da culinária japonesa, especialmente em São Paulo (“As condições de aceitação da culinária japonesa na cidade de São Paulo”; Estudos Japoneses, nº 23, 2003; e também “A alimentação dos imigrantes e a culinária nikkei no Brasil”, in Centenário: contribuição da imigração japonesa para o Brasil moderno e multicultural, São Paulo, Editora Paulo´s, 2010).

Mori faz uma exposição histórica linear das várias fases da imigração japonesa e suas diferentes relações com as tradições alimentares daquele país, para cá transplantadas. Desde a chegada das primeiras levas de imigrantes, em 1908, encaminhadas para as fazendas de café, até o início do século XXI.

Podemos imaginar o que era essa tradição nas antigas fazendas de café, submetida ao arroz agulhinha, à carne de sol e bacalhau, a imposição do consumo de feijão, banha, sal, açúcar mascavo e assim por diante. Notável a criatividade: fazia-se tsukemono de mamão verde; usava-se feijão comum no lugar do azuki; picão (crisantemo) no lugar de shungiku; chuchu no lugar do pepino no picles; pessego verde no lugar do umeboshi; quiabo como ingrediente do tsuyu e missoae etc.

Depois, quando os japoneses se tornam pequenos proprietários rurais, começam a produzir os seus legumes e também aqueles demandados pelo mercado, como o tomate para os italianos. Há, aliás, uma profunda imbricação entre japoneses e italianos, tanto no uso do tomate como dos macarrões. É ai que surgem os cultivos de aspargos, acelgas, mostarda, nabo, lírio, cenoura, caqui, uva, maçã, melão, bicho da seda... E, no final dos anos 20 e 30 já começam a surgir as fábricas de produtos de consumo japones: soyu, tofu, doces de feijão, bolinhos, arroz mochi macarrões etc. 

Mori mostra, em seguida, como os japoneses se urbanizam e dão impulso à prospera fase dos restaurantes japoneses, inicialmente na Liberdade e imediações do Mercadão, para depois se disseminarem por toda a cidade - especialmente após os anos 1970, quando os não- nikkei passam a frequenta-los. Não escapa o papel pioneiro do velho e lendário Sushi Tanji e Sushi Kiyo, ou do Suntory, a generalização do balcão de sushi nos hotéis 5 estrelas da Bela Vista, Paraíso e Cerqueira Cesar.

Nesse processo, os restaurantes japoneses - que eram 378 os listados em guias em 2010 - suplantam, em número, os chineses. Mesmo as pastelarias, antes chinesas, são conquistadas pelos japoneses.

Ele estabelece os anos 1980 como aqueles em que os ryotei são substituídos pelos sushimen. Os dekassegui, bem como os nordestinos, ocupam a cozinha japonesa e tratam de “tropicaliza-la”. Como? Reduzem o impacto do gosto de maresia do peixe cru, introduzindo, por exemplo, o salmão e a marinagem em limão; adotando o uramaki para deixar mais agradável a textura da alga nori; preparando arroz mais adocicado; deixando o arroz mais compacto; servindo o wasabi à parte etc. É também a época da “californização” do sushi. Os primeiros pratos que os brasileiros haviam experimentados - o sukiyaki, tempura, teppanyaki e yakitori - haviam ficado para trás, dando lugar à dupla sushi-sashimi. Por fim, Mori registra o surgimento dessa instituição tipicamente paulistana, a temakeria.

Além do valor que possa ter para os estudiosos da culinária japonesa, e da imigração, os textos de Mori permitem ver com razoável clareza como se dá a interpenetração de diferentes culinárias, e, em paralelo, a transformação ou criação de coisas novas. O resultado é uma culinária distante da matriz japonesa, bem como da comida corrente no Brasil e, por isso mesmo, de interesse para os estudiosos da gastronomia.

Há um verdadeiro “filtro do gosto” atuante em todas as fases, que acaba por determinar o que se tem hoje e que, erroneamente, figura diante de nossa ignorância a respeito das tradições japonesas como a “autêntica cozinha japonesa”. Mas, ao contrário do que poderia parecer em outros contextos - o trabalho de “subversão” da tradição - esse processo é de criação coletiva, mais do que de degeneração ou deturpação.

O que é uma braciola, tal e qual a conhecemos, em relação à tradição italiana? E um “bife alla parmeggiana” (sic)? Há, em relação à culinária italiana, vários desvios de rota que podem ser atribuídos a um processo semelhante, de aclimatação de imigrantes às coisas da terra paulista.

Parece então que São Paulo, que tão fortemente recusa as “tradições caipiras”, como Monteiro Lobato tantas vezes apontou, tratou de dialogar e transformar as influências estrangeiras recentes, tudo resultando na criação de variantes bastante originais. É claro que aqueles apegados às tradições de qualquer tipo mal e mal conseguem vislumbrar essas variantes. O que dizer então de sistematiza-las e estuda-las? 

Mesmo em relação às tradições mais propriamente brasileiras parece haver essa cegueira. Tome-se o exemplo do “mocofava” - fusão do caldo de mocotó com a favada -  tão apreciado no Mocotó (dentre os meus preferidos), de Rodrigo Oliveira. O prato foi criado nos anos 1970, na Zona Norte da cidade e, ao contrário do que se pensa, não integra a “tradição” nordestina nesta modalidade paulistana.


Dessa forma, é fácil imaginar que existe um modo de comer paulistano, muito eclético e, ao mesmo tempo, sem fidelidade às cozinhas étnicas que teima ostentar como sua marca distintiva. Jefferson Rueda intuiu essa trajetória paulista descaracterizadora e criativa, restando um largo caminho a percorrer.

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