25/10/2014

Na Vila Cariri tem o que conta

Quando você viaja, muito difícil romper aquela película que o separa do mundo real. Ela é quase invisível, você é protegido. Das contrariedades, da pobreza, de tudo o que não interessa ver. Se visse, seria um repórter. Essa película se chama hospitalidade, ou turismo, coisas assim. O mais, em geral, é uma paisagem. E discursam sobre ela, como se a palavra fosse substituta da coisa.

Bom quando os seus anfitriões lhe permitem fugir do script. Como aconteceu agora, em João Pessoa, ao longo do INOVA - Gastronomia Paraibana. Mara Salles, Ivo e eu conseguimos dar uma escapada para conhecer Vila Cariri.

Um boteco, apenas. Três irmãs, sem qualquer curso de gastronomia, uma antiga casa da família, uma decoração simples e de bom gosto. E um cardápio vivo, com cores locais como as portas e janelas. Desses lugares que, se não serviram de modelo para o Mocotó de Rodrigo Oliveira, bem poderiam.

Vila Cariri não tem aquela agressividade que abocanha os turistas e os atira no folclore. Não está ali para isso, mesmo porque se João Pessoa tem uma qualidade é que ainda não foi devorada pela indústria de turismo. Pacata. Ainda. Vez por outra, tentam derrubar o gabarito limitado para construção na praia de Tambau. O aeroporto é mirrado - não tem finger, imagina!  Não houve jogo da Copa ali, e ele não cresceu.

Pois o bar é assim também. Uma casa humilde, avarandada. Serviço informal, mas impecável. O garçon fala como um doutor em gastronomia sertaneja do Cariri paraibano. Vai conduzindo a sua leitura do cardápio, decifrando aquela linguagem de cordel que sempre soa estranha para quem é de fora. PFs, sanduiches, caldos e cremes, tapiocas, petiscos e porções, sobremesas, bebidas. Um jonnie walker black label não custa mais que R$ 12 reais. Tire uma linha.

Todos os pratos tem nomes de cidades do Cariri paraibano, de onde vem a família que o rememora para os clientes. Sertão com nome e sobrenome. E tem “gado moido” (sic), carne de sol ou charque, ou queijo de manteiga dentro dos pastéis. Tem porção de feijão verde na manteiga de garrafa com tripinha por cima. Picado de bode com temperos secos. Codornas fritas (de capoeira)! Tudo lá ainda é de capoeira, embora os frangos de granja já se propaguem pelos mercados da cidade. Mas, no sertão, não é assim não. Então, na Vila Cariri também não. Tem também língua ao molho madeira, e vai saber como esse vinho português chegou ao sertão! Caldo de mocotó, algum peixe frito e por ai vai. São 70 opções, do ovo frito, da farofa, à rabada com macaxeira na manteiga ou cuscuz.

 Pedimos um mini cuscuz com creme de queijo de manteiga. Daquele cuscuz que se convencionou chamar “peitinho” pela forma e tamanho. Peitinho é sempre preliminar, um aperitivo.

Uma discussão metafísica com o garçon sobre o “cabeça de galo”, se vai ou não carne moida. “Aqui vai sim senhor”. E vem uma das donas, reafirmar a ortodoxia heterodoxa para os meus convivas. Como não tem acordo, escolhemos caldo de feijão. Depois? Depois, o arrumadinho. E o bode guisado com macaxeira. E estamos satisfeitos. O cartola, feito com banana prata, comemos só por curiosidade. Eu, pelo queijo de manteiga.
É uma experiência e tanto. Tudo com muito pouco sal, carecendo de pimenta, pouco temperado mas, por tudo isso mesmo, estranhamente muito bom. Delicado é a palavra. A macaxeira inigualável. A Embrapa devia copiá-la. E agarramos a conversar sobre qual havia sido o melhor: se o cuscuz, se o guisado. Todos concordando que faltava um tanto de açúcar na sobremesa (cartola). Imagine você, num pais onde se diz que se come muito açúcar! Uma aberração das boas.

As proprietárias assumem aquela culinária como delas, como os carirís delas. Elas dizem viver com dignidade, melhor do que quando uma era bancária. O sertão é uma opção, senhores visitantes. Um modo de vida, um modo de comer. Fico pensando no contraste entre a delicadeza de tudo ali e as bobagens que Gilberto Freyre escreveu sobre a "rusticidade" da cozinha sertaneja. Fico pensando em como Ana Rita Suassuna veio para nos socorrer, mandando que abríssemos os olhos para ver um sertão de comer que já não está em toda parte...

Em síntese, quem vai a João Pessoa e não vai à Vila Cariri é mulher do padre...

VILA CARIRI - Rua Francisco Claudino Pereira, 500. Fone 3268-1636. João Pessoa, Paraíba


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