17/11/2014

Onde nos levará o "culto aos ingredientes"?

A gente tem que evoluir. Pelo menos no pensamento. Quer dizer, pensar nos passos que damos, imaginando onde nos levarão. Mesmo quando achamos que não há caminho, que se faz o caminho ao andar.

Pois estou começando a achar que esse negócio de “valorizar o ingrediente” tout court, em gastronomia, corre o risco de levar a nada. Isso porque já tem chefinho fazendo o elogio da soja no Instagram, abismado com o “lindo ciclo sem fim da natureza”. 


Acontece que, do ponto de vista do que entendo por “gastronomia”, a soja, o milho transgênico, a pecuária extensiva etc, são legítimos representantes da anti-gastronomia. Me explico. Acho que a gastronomia depende, hoje em dia, sobretudo do artesanato, não da grande indústria. E a grande indústria agrícola, baseada no cultivo de grande extensão, é o que destrói a agricultura familiar, atirando-a para a fronteira do sistema. E a preguiça dos chefs, chefinhos e chefetes os afasta da fronteira, quer dizer, da pequena propriedade e da variedade de coisas que ela oferece como substrato para o desenvolvimento gastronômico. Coisas de produção descontínua, sem muito padrão, às vezes desanimadoras.

Acabo de vir do Festival Cozinha Goiás, tendo visitado uma feira em Goiânia onde havia, em profusão, pequi, guariroba (gueroba), castanha de guariroba, galinha caipira, queijos de leite cru, requeijão de leite cru. Não vi sequer uma barraca que vendesse frango de granja! Um feito! 


Um dia a Anvisa proibirá o frango caipira, o seu sangue, e Goiânia entrará com tudo no mercado do frango Sadia, alimentado com aquela soja que expressa o “lindo ciclo sem fim da natureza” (sic). Daí não adiantará aos chefs, chefinhos e chefetes chorarem sobre o leite derramado... Nem reclamar, em São Paulo, da dificuldade em obter...frango caipira!
 

Quando fico olhando o pequi, e me dou conta do quanto há de seleção artificial feita por milênios pelos indígenas brasileiros que o cultivaram, e vendo o quanto essa fruta está presente na alimentação de uma parcela do território nacional, integrando a comida cotidiana, me dou conta de que “ingrediente” é sobretudo um produto cultural e é sobre essa sua dimensão oculta, que à primeira vista parece “natural”, que devemos refletir em gastronomia.

Não sou um defensor da tradição no sentido de me aferrar a qualquer receita, de pretender “resgatar” o que não foi sequestrado, etc. Mas a dimensão cultural de um ingrediente só aparece quando o interrogamos na cozinha. Poucos são os chefs que fazem isso com determinação. Destaco, dentre eles, o exemplo de Roberta Sudbrack e seu trabalho “minimalista” com o milho, a banana, o quiabo. Quanta coisa nova descobriu a partir desse diálogo solitário com os ingredientes populares!

E a atenção dos chefs aos ingredientes pode simplesmente mudar o destino deles. Vale recordar um exemplo espanhol: o “queijo do pastor”  tornou-se especialmente famoso quando, entre 1896 e 1914, nas famosas Festas Bascas, pode abiscoitar o primeiro lugar em 30 dos 40 concursos de queijos de que participou. Claro, ele não teve chance de uma mais ampla afirmação nacional durante o período do franquismo, mas em 1987 criou-se a Denominação de Origem Protegida (DOP), sob o nome de Idiazabal, englobando a produção de Navarra, Bizcaia, Gipuskoa e Araba. A partir dos anos 1990, com o boom da gastronomia espanhola, especialmente a basca e catalã, o queijo Idiazabal tornou-se um ícone gourmet.

Trata-se de um queijo de leite exclusivo de ovelhas laxta (que quer dizer áspera, por conta da qualidade da sua lã) ou ovelhas da raça carranza.  Graças à sua baixa produtividade – não mais de meio litro de leite por dia – as ovelhas laxta estavam no perigoso caminho da extinção, segundo a Unesco, sendo paulatinamente substituídas por animais mais produtivos. Com a criação do DOP e a determinação de que só essas duas raças poderiam ser utilizadas no fabrico do queijo, a laxta saiu da lista de raças domésticas ameaçadas de desaparecimento. Hoje são criadas por cerca de 500 pastores. Hoje o queijo Idiazabal é um ícone da gastronomia espanhola. Aliás, nunca comeram soja!

Tome, em contrapartida, as nossas ovelhas. As raças brasileiras - como a crioulo lanado, a santa inês, morada nova ou rabo largo - estão praticamente extintas. Nem sabemos quais são as suas qualidades organolépticas quando comemos o nosso cordeiro uruguaio ou neozelandês! Os chefinhos precisam acordar, se de fato querem estar comprometidos com a diversidade, com os produtos do terroir, com a sustentabilidade ou com qualquer outro adjetivo politicamente correto que apreciem.

Ingredientes não são apenas coisas biológicas. São um feixe de significações culturais que dizem respeito aos usos - passados e presentes - à cultura material, ou seja, à produção sob várias técnicas históricas e, não menos importante, à construção do gosto ao longo de sucessivas experiências gastronômicas que nos ligam às gerações passadas e, se formos competentes, nos ligarão às gerações futuras. Na sociedade atual, talvez precisem ser produzidos em maior escala para não serem empurrados para a extinção. Para isso existem instituições como a Embrapa, não é mesmo? E assim como há sabores desejáveis, há relações de produção mais convenientes, por violentar menos a natureza e o próprio homem.

Então: qual o papel dos cozinheiros nisso tudo? Sem dúvida é desvendar a teia de significações culturais em que uma espécie botânica ou animal está imersa, procurando leva-la à mesa segundo seu próprio entendimento. Mas isso, é claro, exige renúncia: renúncia ao fácil, ao disruptivo da pequena propriedade, à gratidão dos grandes monopólios agroalimentares e assim por diante.






3 comentários:

Anônimo disse...

sem contar a anvisa, tem os ativistas que acham que matar uma galinha em casa é "crueldade", o que no final só acaba servindo aos interesses das grandes empresas, já que obviamente os seus produtos nunca iam sair do mercado (sem contar o salmão chileno!)

Anônimo disse...

Sou Engenheiro, Empresario do setor ago-industrial e de restaurantes,amante da gastronomia.,moro em Recife
Temos uma confraria onde estudamos a gastonomia atraves de livros de Chefes Famosos em geral Tri estrelados, estamos no 38o Estudo e gastronomia, pssando por Chefs de varios paises mas a maioria Franceses,
Gostaria de postar meu e-mail para interessados no assunto.
Temos toda parafernalia de equipamentos Hight Tec para execussao das receitas
Gostaria de particpar do Blog
Antonio Mello
+55-81-99713695
email topes@terra.com.br
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Daniel disse...

Dória, vi a mesma foto do Landgraf no Instagram e a boca amargou na hora. Obrigado por colocar esse sentimento em palavras

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