07/12/2014

TUDO O QUE É HUMANO É CULTURA. QUAL A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E GASTRONOMIA?


Não é de hoje que se reclama a atenção do poder público para a cultura alimentar brasileira. No entanto, este não se dedicou ainda a definir uma política pública - isto é, uma forma de intervenção do Estado - em relação àquilo que constitui o vasto campo desta atividade humana. Não é de estranhar portanto que profissionais da área aparecem agora, de público, fazendo enorme pressão para inclusão da “gastronomia” como área de investimento elegível pelos mecanismos de renúncia fiscal, sob a chamada “Lei Rouanet”. Há um manifesto circulando por ai, com apoio de pessoas expressivas do setor, em prol da aprovação do Projeto de Lei nº 6562/2013, que teria essa função, permitindo a destinação de dinheiro público para “os eventos, as pesquisas, as publicações, assim como a criação e manutenção de acervos relativos à gastronomia brasileira”.

Ultimamente o governo acordou para o fato de que “gastronomia” poderia ser um assunto capaz de render dividendos políticos e publicitários para o Estado. Inúmeros servidores públicos, de organismos diversos, começaram a frequentar como observadores os eventos “gastronômicos”. Era de se esperar, portanto, que começassem a agir com base nas informações colhidas. Isso ainda não ocorreu de modo perceptível.

Tomemos um exemplo. Aqueles que a vêem como uma atividade voltada à valorização da indústria do turismo amargam a decepção de constatar que no último Plano Nacional de Turismo 2013-2016  as palavras “gastronomia”, “alimentação” ou “comida” não aparecem sequer uma vez! É forçoso admitir que o governo não vê uma relação causal entre o fomento à alimentação e gastronomia e o desenvolvimento do turismo. No entanto, e contraditoriamente, esta relação aparece inúmeras vezes no discurso das autoridades. Palavras vãs, visto que o planejamento público não prevê ações ou investimentos nessa direção.





Poderíamos tomar outra vertente de intervenção no processo alimentar: a sanitária. Sabemos que a Anvisa - Agencia Nacional de Vigilância Sanitária - tem sido muito ativa, mas os resultados da sua ação normativa ou de fiscalização tem sido muito criticadas pelo viés higienista e sobretudo pela investida contra formas de produção e comercialização tradicionais, artesanais, e contra a alimentação popular em particular (comida de rua, pratos tradicionais como galinha ao molho pardo, etc). No conjunto, o seu “despertar” tem favorecido os processos industriais dos grandes conglomerados em detrimento dos pequenos produtores. O caso do queijo de leite cru é um verdadeiro paradigma.

Por fim, mas não menos importante, as ações direcionadas para a agricultura familiar também deixam muito a desejar. Com exceção do PRONAF, nenhuma outra política pública parece impactar de modo decisivo esse segmento da agricultura que é responsável pela grande maioria dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro.

Digamos então que a base material do que se convencionou chamar “gastronomia” se desenvolve no sentido contrário do que seria desejável para um país que quer fazer da sua alimentação um signo distintivo no panorama mundial. Mas nenhuma palavra é inocente. O uso de “gastronomia”, em vez de “comida” ou “alimentação”, quer dizer o que? A conotação moderna de “gastronomia” e dos adjetivos relacionados (gourmet, por exemplo) indicam uma forte exclusão: nem toda comida é “gastronômica” e o círculo social desta está longe de ser democrático ou popular, como deve ser, sempre, a perspectiva do Estado.

A campanha “eu como cultura” ou seu corolário (“gastronomia não é cultura no Brasil”). Não aporta qualquer reflexão sobre essas questões. Apenas pretende que, doravante, projetos “gastronômicos” possam gozar da renúncia fiscal e, dessa maneira, expressar o reconhecimento pelo Estado do que, enfim, não passa de um truismo.

Alhos, passas & maçãs, como sempre atento a aspectos significativos da cultura culinária, levanta uma série de questionamentos sobre o uso em geral da Lei Rouanet, sendo um deles que “a lei deixa aberta a oportunidade para que o dinheiro público seja utilizado em projetos estranhos” ao inicialmente pretendido. E lança como questões se não será “a grande indústria de alimentos que desfrutará dos benefícios de renúncia fiscal? Quem garante que restaurantes que cobram 300 ou 500 reais por uma refeição —obviamente voltada a uma parcela reduzidíssima da sociedade brasileira — não vão se beneficiar, alegando o atrativo turístico ou a origem pesquisadamente tupiniquim de seu cardápio? É dúvida demais para que minha concordância com a campanha não seja, pelo menos por enquanto, apenas conceitual”.

(Segue em próximo post)

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