03/04/2015

O americano que descobriu há 70 anos que paulistano gostava de cenoura e banana, não gostava de farinha de mandioca e achava que macarrão era coisa de pobre...


Um terço das famílias do Pacaembú e um quinto das de Higienópolis usaram cenouras no dia-amostra


A “escola de Chicago” em economia é hoje lembrada como uma espécie de bandoleirismo intelectual. Os Chicago boys, que defendiam o “mercado livre”,  foram importantes fontes legitimadoras dos governos reacionários como os de Pinochet, Margaret Tatcher, Ronald Reagan e um dos seus pilares foi o economista Milton Friedman.

Em sociologia, ao contrário, a “escola de Chicago” é um momento virtuoso da ciência social norte-americana; notável especialmente pelos estudos de comunidade e os estudos urbanos das décadas de 1940 e 1950. Nesse contexto é que veio ao Brasil o sociólogo Donald Pierson, em 1939, para fazer um estudo sobre relações raciais na Bahia, mostrando as diferenças entre a posição do negro no Brasil e nos EUA. Depois, permanecendo por aqui, ligou-se à fundação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,  onde lecionou sociologia e antropologia social até 1957.


Ele fez vários estudos importantes, sendo um deles “O homem no Vale do São Francisco”, de 1972. E fez estudos menores, mas não por isso desprovidos de interesse - como suas pesquisas sobre habitação e alimentação na cidade de São Paulo (essa última, “Hábitos alimentares em São Paulo, Revista do Arquivo Municipal, ano X, vol. XCVIII, out. 1944), que nos mostra como se comia na São Paulo de 70 anos atrás.

Pierson, sempre muito preocupado em explicitar suas metodologias, dividiu a cidade em dois grandes blocos, utilizando a mesma base do seus estudo sobre habitação, feito em 1942: a área do Bexiga, Canindé e Mooca e, no outro extremo, a área do Pacaembú, Higienópolis e Jardim América, criando amostras por cada bairro, caracterizados por diferenças de renda, composição étnica e familiar, realizando, no total, 200 entrevistas nas duas áreas para apurar tanto os hábitos alimentares quanto as espécies de alimentos consumidos.

Eram famílias de 4,7 membros em média, sendo 5 o número máximo de refeições domésticas e o mínimo, 3. Para além dessas generalidades começam a aparecer as diferenças entre os moradores de áreas de habitação “inferior” e “superior”. Por exemplo, apenas 69% dos “inferiores” bebem água nas refeições, contra 100% nos “superiores”; no café da manhã, os “inferiores” consomem café simples e pão (34%) ou café com leite e pão (32%), sendo que, na Mooca, a presença do leite sobe para 46% da amostra. Já nos “superiores” aparece um uso mais amplo do leite, a manteiga (86%), com acréscimos de frutas, sucos e cereais de forma não muito expressiva.

Pierson classifica, em seguida, as refeições em “mais adequadas” e “menos adequadas” por bairro. Como alimentação mais adequada no grupo inferior (no caso, no Bexiga), registra: café da manhã - café com leite e açúcar e pão com manteiga; almoço - sopa de macarrão com caldo de carne, purê de batatas, alface, pão, banana e abacaxi; café da tarde - café com açúcar e pão com manteiga; jantar - sopa de macarrão com caldo de carne, carne de vaca, batata, almeirão, pão, banana e café com açúcar. No mesmo bairro, a refeição menos adequada registra: café da manhã, café com açúcar; almoço - sopa de repolho; jantar - arroz e feijão.

No Jardim América, a refeição mais adequada foi: café da manhã - café com leite e açúcar, pão com manteiga, queijo, ovos, mingau de aveia, banana e laranja; almoço - carne de vaca, pão com manteiga, macarrão, arroz, batata, alface, souflê de espinafre, doce de banana em compota, café com açúcar; café da tarde - café com leite e açúcar, pão com manteiga, biscoito agua e sal, queijo, uva, banana e laranja; jantar - sopa de legumes com caldo de carne, carne de vaca, pão com manteiga, arroz, batata, chuchu, manga, uva, laranja com creme de leite, café com açúcar (e ainda, antes de deitar, leite).

Em Higienópolis, a refeição mais adequada mostrava alguma variação: almoço - carne de vaca, arroz e feijão, pão, palmito com molho branco, chicórea, laranja, manga, banana, uva, pão de ló, doce de pera; jantar - sopa de legumes, frango, arroz, batata, espinafre, laranja, manga, banana, pão de ló, doce de pera. No Pacaembu, por sua vez, temos: almoço - sardinha, carne de vaca, carne de porco, feijão e arroz, farinha de milho, pão, alface, tomate, xuxu, abacate, doce de leite, goiabada, café com açucar; jantar - sopa de aveia, carne de vaca, carne de porco, feijão e arroz, salada de alface, berinjela frita, doce de leite, goiabada, café com açúcar.

No pólo menos adequada, ainda no Pacaembu, temos: almoço - sopa de milho verde, carne de vaca, arroz e feijão, batata, pão, café com açúcar; jantar - carne de vaca, salsicha, arroz e feijão, pão, ervilha, abobrinha, palmito, café com açúcar.

De modo geral, observa Pierson: “na área inferior, o uso de todas as hortaliças é bem reduzido, em contraste com a área superior (...). Cenouras, por exemplo, foram encontradas em um quarto das casas da área superior, mas não apareceu na outra área (...). Macarrão perece ser mais usado na área inferior, mas ainda em proporção relativamente reduzida. As frutas parecem ser muito mais consumidas na área superior, a não ser a banana, cujo consumo é bem maior na área inferior (...). Ao contrário do que se verifica em extensas áreas do nordeste brasileiro e também do interior do Estado de São Paulo, usa-se pouco a farinha de mandioca, que foi encontrada apenas no almoço de 6% e no jantar de 2,5% das famílias visitadas”.

É difícil estabelecer uma comparação com os dias de hoje, mas é clara, por um lado, a singeleza e não raro a frugalidade do que se comia nos bairros da cidade em relação ao presente e, por outro, a presença de várias carnes lado a lado numa mesma refeição, num padrão hoje raro. Além disso, as diferenças de renda pareciam prevalecer sobre as étnicas. Assim é a boa sociologia: fixa para sempre um determinado tempo, mesmo que não saibamos depois o que fazer com isso.

2 comentários:

Bruno disse...

Colocar aspas pra se referir à escola de Chicago e chamar de bandoleirismo intelectual, implica que você só pode estar de sacanagem ou não tem a mais absoluta idéia do que está falando.

Pablo Pereira disse...

Obrigado pela apresentação desse material.

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