31/10/2015

A contradição do Slow Food


O grande interesse em torno da revelação de que o Eataly e o grupo Saint Marché estão dando chapéu sistemático nos seus fornecedores coloca a nu a contradição constitutiva desse negócio entre o Slow Food e a gananciosa rede de mercados com 26 lojas espalhadas pelo mundo, entre Nova Iorque e Tóquio.

Quando Oscar Farinetti - dono da vinícola Fontanafredda - abriu a primeira loja em Torino, conseguiu convencer Carlo Petrini de que a iniciativa encerrava uma promessa de redenção dos pequenos produtores, dedicados a produzir e vender seus produtos em risco de extinção. Petrini não só topou a parceria como associou o nome do Slow Food à expansão do grupo Eataly mundo afora. Ele mesmo esteve aqui, na inauguração da unidade paulistana do Eataly, dando entrevistas que louvavam o empreendimento e expressando sua cândida esperança: "Os alimentos frescos têm que ser locais. Essa é a luta do Slow Food. Agora, um barolo só pode ser feito na Itália. Da mesma forma, gostaria que o Eataly italiano tivesse um doce de umbu", declarou na oportunidade.

Acontece que - associado ao grupo Saint Marché, liderado pelos empresários Bernardo Ouro Preto e Vitor Leal (detentores de 40% do Eataly Brasil), com 16 lojas faturando 370 milhões de reais, e um ambicioso plano de expansão visando chegar a 1 bilhão de reais de faturamento em 2018, com cerca de 40 lojas - pelo menos o Slow Food deu um mau passo. O Saint Marché, talvez nessa fúria de crescimento rápido, não paga os seus fornecedores de forma correta, contaminando o conceito do Eataly e, por tabela, do próprio Slow Food; além de propagar a "insustentabilidade" pelas cadeias produtivas.

Talvez aquele produtor de doce de umbu, bem como os demais afiliados do Slow Food, já tenha se dado conta de que a filosofia de Petrini não prospera em terreno de tanta ganância.

De fato, Oscar Farinetti está à frente de um projeto em expansão mundial que tem como sócios grandes marcas italianas, como Marzotto, Lavazza e Ferrero, muito mais do que os pequenos produtores locais dos quatro cantos do mundo. Oscar Farinetti absorveu o prestígio do Slow Food, submetendo-o à mais voraz prosa do capitalismo. Que Petrini tenha dado seu aval a isso pode se explicar tanto por ingenuidade como por propósitos inconfessos. Só o tempo mostrará qual foi sua verdadeira motivação.

Para nós, comum dos mortais que olhamos de fora o desenrolar do drama, fica uma dúvida crucial: afinal, a culinária artesanal, a produção local de pequenos agricultores, pode se conjugar com a voracidade capitalista, à busca das condições “eficazes” para a rápida acumulação de capital? O grupo Eataly cresce 30% ao ano desde 2009, mas, a que custo? E a custa de quem? Como corolário: o caminho trilhado pelo Slow Food, liderado por Petrini, o foi, afinal, para acabar desembocando nessa vaga ideia de “italianidade” - que toca num certo atavismo paulistano - que empresários italianos pretendem difundir pelo mundo à custa dos mercados locais, tornando-se mais um fator de opressão dos pequenos produtores?

10 comentários:

Unknown disse...

Temo que essa parceria tenha vida curta... Assim como a Daslu temos vários exemplos de grifes globais que associadas a empreendedores locais inescrupulosos acabam comprometendo boas ideias... Ainda com a desvalorização do real, a reposição dos importados será praticamente inviável... Armando Ricardo Pucci

Unknown disse...

Oi Professor Carlos Alberto Dória, boa tarde.
Sou aluno do mestrado em administração da Universidade Nove de Julho. O tema da minha dissertação é a ação de empreendedores institucionais na gastronomia paulistana. Mais especificamente, o movimento de valorização da gastronomia nacional dentro da alta gastronomia paulistana.
Para o meu referencial li algumas obras suas, inclusive, muito importante para iluminar este tema para mim.
Gostaria de saber se poderia conversar com você e entrevista-lo para a minha pesquisa. Esta conversa seria fundamental para mim.
Caso queira dar uma olhada, posso enviar o projeto de qualificação para o senhor dar uma olhada.
Desde já agradeço.
Luis Miguel Zanin

Cíntia Bertolino disse...

Essa discussão é bem interessante. Não tenho dúvida que parte do sucesso do Eataly vem da "apropriação", muito bem bem feita, da filosofia do Slow Food. Digo "apropriação" porque há um claro acordo de cavalheiros: o Eataly ajuda a financiar o Slow Food. Como, quando e quanto é a questão. Mesmo sem saber quais são os termos, arrisco a dizer que ficou bem barato pro Eataly.
Não acho que isso seja necessariamente ruim para o Slow Food (é preciso dinheiro para promover ações que ajudam a mudar a vida das pessoas, como as mil hortas na África) e outras grandes empresas como a Barilla, Lavazza também ajudam, mas seria apropriado que tudo fosse mais transparente.
Na Itália, o modelo de crescimento hiperagressivo do Eataly vem sendo contestado já há algum tempo. Além disso, por lá, eles são donos ou acionistas de uma boa parte dos produtos vendidos nas lojas (água, cerveja, massa, queijo, vinho...). Ou seja, compraram parte dos pequenos fornecedores. O que faz pensar qual é o espaço destinado a produtos que concorrem com as marcas da casa.
Por aqui, perguntei aos sócios do St. Marche se eles pensavam em trilhar caminho semelhante e comprar fornecedores. Disseram que não, mas como o Eataly tem 60% do negócio...

e-BocaLivre disse...

O que você está dizendo, Cintia, me sugere uma estratégia sórdida de não pagar fornecedores para, mais adiante, comprar barato...

Cíntia Bertolino disse...

Acho que não chega a isso. Aliás, espero, de verdade, que você esteja errado.
Na Itália, se isso acontecesse, os fornecedores fariam um escândalo colossal.
Para ser justo, é preciso lembrar que a economia brasileira passa por maus bocados e metade das empresas brasileiras estão inadimplentes.
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/10/1692003-neo-inadimplencia-atinge-mais-da-metade-das-empresas.shtml


e-BocaLivre disse...

Para ser justo, Cintia, é preciso reconhecer que o grupo internacional não é reflexo apenas de uma economia nacional. Agora, no que tange ao Saint Marché, você deve ter lido depoimento de uma fornecedora, no post, que afirma que sequer recebia pelas mercadorias postas à venda em consignação. Isso tem um só nome: apropriação indébita, com crise ou sem crise...

Anônimo disse...

Vou comentar como anônimo, por motivos óbvios. Sou fornecedor da rede St. Marché e eles simplesmente não pagam, ou melhor até pagam: quando querem. Somos obrigados a conceder prazos dilatados para pagamento ( 35 dias no meu caso ) e desconto de 5% sobre o valor da nota fiscal e mesmo assim eles não pagam. Demoram uma eternidade e quem é microempresário sabe o tanto que desestabiliza o fluxo de caixa, qualquer atraso. E a rede, que tem um analista para cada loja ( ou um analista para x lojas, não importa ), tem uma relação que beira o desrespeito para com seus fornecedores: ELES NÃO PAGAM EM DIAS E ISSO É INADMISSIVEL. Desculpe o desabafo, mas realmente está muito difícil, para alguem pequeno como eu, lidar com gente grande gananciosa e mau pagadora.

Anônimo disse...

Quer dizer então que não vale a pena vender para eles? Digo isso porque gostaria muito de conseguir vender, mas não posso me arriscar a ficar sem o dinheiro até para cálculo do fluxo de caixa. Em outras palavras. Se eu vender, eles me quebram, se eu não vender, eles nunca mais compram de mim.... o que eu faço? Abraços,

e-BocaLivre disse...

Sei de pequenos fornecedores para os quais, na semana passada, deviam R$20 mil, não honrando compromissos... Cada um sabe dos riscos que quer correr não é?

Armando Ricardo Pucci disse...

Infelizmente muitos empreendimentos bem sucedidos no 1º mundo, se associam com empreendedores locais inexperientes e/ou inescrupulosos e tem vida curta... Já vi este filme muitas vezes... Cadeias que chegam com planos mirabolantes, e 2 anos depois caem na real e acabam deixando o pais...

Postar um comentário