O interesse pelo trelelê ATÁ/Governo do Pará criou uma oportunidade para refletirmos sobre algumas questões: o que a gastronomia pode pretender da Amazônia? Serão os chefs os Indiana Jones do prazer ao comer? Farão descobertas capazes de revolucionar o estado atual da gastronomia, deixando para trás a crise que esta vive, reencantando o mundo mais uma vez?
Deixando de lado as razões pelas quais se criou uma fissura gastronômica em torno da Amazônia (e pode ser que ela migre em breve para o Cerrado…), de saída é preciso ser claro: a “mata virgem”, tal e qual os primeiros exploradores julgaram encontrar, simplesmente não existe. É uma ilusão gerada pela ignorância colonialista.
Conhecimentos arqueológicos, arqueobotânicos, etnobotânicos e antropológicos nos dão a certeza, hoje, de que existia uma agricultura de manejo a par com a agricultura neolítica e que os povos da floresta eram muito hábeis ao lidar com com o seu habitat. Hoje se conhece 52 espécies domesticadas por eles; 41 espécies semi-domesticadas e 45 de domesticação incipiente. Trata-se, portanto, de um patrimônio cultural - e não “selvagem” - sem paralelo. São paisagens culturais, não naturais.
É notável que os índios tikuna, por exemplo, tenham desenvolvido por seleção artificial o abiu gigante, com frutas que pesam mais de meio quilo. Os cientistas estão a par disso, e o esforço de instituições científicas muitas vezes se dão em continuidade a essa grande obra indígena, como os da Embrapa visando criar cultivos do bacuri, o que, até agora, não tem sido fácil.
Então, qual o percurso do conhecimento que chega à cozinha e tem valor gastronômico? Tomemos um exemplo: o estudo dos cogumelos da Amazônia. A identificação, na literatura, de 34 cogumelos comestíveis na Amazônia foi feita pela pesquisadora do PPBio/Inpa, Noemia Kazue Ishikawa. Nesse esforço tornado público pegaram carona tanto o chef Felipe Schaedler quanto Alex Atala e o Atá. Em maio, o Instituto Socioambiental, integrante do Atá, noticiava: “o Instituto ATÁ e o Instituto Socioambiental (ISA) lançam no boxe Amazônia/Mata Atlântica, localizado no Mercado de Pinheiros, um mix de cogumelos secos dos indígenas Sanöma, um subgrupo do povo Yanomami. Há quatro anos, o ISA desenvolve uma parceria com a Hutukara Associação Yanomami, participando de um projeto de pesquisa intercultural no qual os jovens indígenas realizam estudos sobre alimentos que fazem parte da sua dieta, com destaque para os cogumelos. Também são parceiros no projeto o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Instituto Botânico (SP) e o restaurante Banzeiro, de Manaus”.
Parece claro: estrutura-se uma cadeia de transmissão do conhecimento e de aproveitamento econômico que tem, na origem, recursos públicos (Inpa) e, em seguida, vários intermediários que são Ongs e comerciantes (chefs, proprietários de lojas, etc). Assim as descobertas científicas chegam ao mercado consumidor já glamourizadas e transformadas em bens gastronômicos sem que se expresse nisso o valor e o peso da pesquisa em instituições científicas.
Imaginar que a gastronomia possa fazer “descobertas” originais é uma quimera. Nem é o que os cozinheiros mais realistas buscam. Me lembro de uma declaração de Adrià, entusiasta dos produtos amazônicos, de que o seu interesse se restringia aos ingredientes na medida em que pudessem ser produzidos de forma regular e constante de modo a chegar até ele, na Europa. Em nada se interessava pela “cultura culinária” que os envolvia.
Foi assim ao longo da história, e não haveria uma culinária ocidental como há se não fosse através das várias formas de apropriação dos produtos tropicais, desde os primórdios do colonialismo. O que podemos pretender hoje é que essa apropriação não se dê destruindo as culturas tradicionais onde se inserem. É o sentido que se atribui ao adjetivo “sustentável”, visando garantir o protagonismo das sociedades tradicionais que abrigam bens e conhecimentos de serventia culinária externa ao universo onde se desenvolvem.
E há também que estar atento ao fato de que os produtos da biodiversidade não se inserem da mesma maneira nas sociedades tradicionais e nas modernas. Alguns exemplos: a baunilha do cerrado, o cumaru, o puxuri não são, originalmente, produtos comestíveis. São produtos medicinais ou aromáticos que foram re-apropriados como “comestíveis” ao transgrediram radicalmente o uso tradicional.
Mas não se faz, no Brasil, pesquisas ou descobertas sem recursos públicos. Simplesmente não existe. E as instituições públicas de pesquisa, às quais sempre faltam recursos financeiros, estão repletas de resultados que ainda não assumiram a forma de commodities. Há um hiato enorme a ser preenchido pelos interessados, dentre os quais os segmentos da culinária. Claro, a bem do interesse público será necessário estabelecer um padrão de relação entre o mercado e o esforço de pesquisa, fazendo retornar, na medida do possível, algum valor para as instituições científicas. Os royalties não são, obviamente, o único modelo aplicável.
Já discorri aqui sobre as varias modalidades da pesquisa em benefício da culinária. A pesquisa culinária (dentro da cozinha) se articula com pesquisas históricas, etnográficas, biológicas, etc, e está na ponta mais próxima ao consumo devendo adaptar “descobertas” ao gosto dos consumidores, puxando eventualmente as vendas dos produtos “novos”, etc.
Se percorrermos a pauta de pesquisas das instituições científicas e para-cientificas da Amazônia descobriremos várias possibilidades de beneficiar a gastronomia. Listo a seguir vários desafios identificados por Ima Vieira, pesquisadora do Museu Goeldi, até há pouco integrante do conselho do Instituto Paulo Martins e colaboradora do C5. São desafios pensados tendo em vista a gastronomia: reduzir o volume de água no açaí; desenvolver despolpadeira para o fruto de bacuri; desenvolver máquina para quebrar castanha do Pará crua; aproveitamento do caroço de açaí, de bacuri, de mangostão, para usos nobres; extração do aroma de bacuri e do cupuaçu das cascas; livrar a castanha-do-pará da contaminação pelo fungo Aspergillus, responsável pelos teores de aflatoxina; disseminar secadores domésticos para frutas e hortaliças; fabricação de farinha de pupunha caseira para padaria e outros usos; secagem da folha de jambu pré-cozida para exportação; aproveitamento de resíduos pesca; melhoria da qualidade da farinha de mandioca; fabricação do piracui a partir de outros tipos de peixes além do acarí; liofilização do tucupi; desenvolvimento de técnicas de conservação das castanhas durante o ano para venda de castanha crua; desenvolvimento de alimentos funcionais a partir de plantas amazônicas.
Evidentemente há outros produtos de grande valor culinário a serem considerados, como os meles de abelhas meliponideas, cujas dificuldades são mais institucionais - as regulamentações descabidas da Anvisa - do que qualquer outra coisa.
A grande obra de destruição da Amazônia deriva da conversão da terra em recurso privado para quaisquer fins. Outras formas de apropriação dependem do desenvolvimento de relações humanas que retenham, para os envolvidos, o valor que os move sem que isso represente alienação/apropriação típicas das formas de acumulação primitiva do capital.
Assim, a elaboração de uma pauta de interesse que sirva de orientação para as Ongs voltadas para a gastronomia depende mais de uma ampla discussão entre os envolvidos nelas e as instituições de pesquisas - e de ambas com as comunidades tradicionais, que realmente aportam trabalho nessas cadeias produtivas - do que do consenso de qual o prédio que deverá abrigar esse esforço…
Do mesmo modo, é preciso elaborar um protocolo que especifique modos de atuação, repartição dos esforços, convergência de recursos públicos e privados e distribuição dos benefícios alcançados através da comercialização desses produtos entre as comunidades tradicionais, os institutos de pesquisa e, claro, as Ongs empenhadas.
O que aconteceu no affair Casa das Onze Janelas refletiu a falta dessas práticas saudáveis. Houve grande chiadeira por mais discussão aberta e participativa. E mesmo para quem olha de fora, a ausência, em todo o processo, de players tão importantes como o chef Thiago Castanho, lideranças como Tainá Marajoara ou o próprio Museu Goeldi, mostra que o ATÁ e seus parceiros na empreitada precisam refazer a lição de casa… E é interessante que o façam, não tirem o corpo fora, não fujam da raia.
2 comentários:
texto enriquecedor..didático.. e imprescindível
APRENDER A POLÍTICA FAZENDO POLÍTICA .
E NÃO NEGANDO A POLÍTICA .
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