04/02/2017

A "ciência da nutrição" e a gastronomia - II


2 - a autonomização do maravilhamento ao comer

Talvez este seja o tópico mais complexo a historiar e analisar, visto que a "gastronomia" sempre foi um assunto marginal para as ciências.

Mas, como o nutricionismo, é também no curso do século XIX que a gourmandise - noção que já aparece na França em torno do século XIV - sofre profunda transformação. Libertando-se da culpabilidade judaico-cristã da gula, projeta-se como ideal de maravilhamento ao comer. O corpo passa a ser, então, essa entidade contraditória que é sede das necessidades nutricionais ao mesmo tempo que da mecânica do prazer, conforme mostra a fisiologia. 

A “arte à mesa”, da qual Savarin faz o elogio, será, portanto, uma espécie de alienação nutricional, embora ele não despreze totalmente essa dimensão. A virtude da temperança, tal e qual pregava Thomas de Aquino, como uma disciplina que une o que nutre ao prazer, ficou para trás. A gota é a doença por excelência desta fase, o descarrilamento do indivíduo da senda da ordem.

Ora, já no século XX se dá uma mudança crucial: a passagem da legitimação social da gastronomia para a legitimação individual. O valor social da gourmandise se transfere para uma mesa qualquer, invade a convivialidade privada, agora como "permissividade" na esfera íntima e como nova definição de luxo; objeto de uma mis en scène midiática sem precedentes na história é foco da publicidade em enorme desenvolvimento. Esse o ambiente onde se dá a hipertrofia do indivíduo comedor (o “bom para mim” ganha o primeiro plano de consideração).

Mas está claro que o “bom para mim” vai já expressando a ambiguidade da sua inserção contraditória: o prazeiroso é o mesmo que o nutricionalmente bom? Esse o território do desenvolvimento das dietas, isto é, da busca da sintonia fina entre o indivíduo e o imenso mundo das mercadorias potencialmente prazeirosas. Por outro lado, o ideal de sintonia entre o que se come e o que se quer ser (sou o que como) enseja a projeção e objetivação dos valores individuais como direção do mundo das mercadorias, produzindo-as como múltiplas utilities, numa nova dialética entre o prazer e a animalidade do organismo sobre a qual Ernst Haeckel havia discorrido.

O consumo individual, Marx já havia apontado, é o momento em que o mundo se “subjetiva” ao produzir o indivíduo trabalhador através do consumo daquelas utilidades singulares que o satisfazem, e não é à toa que a produção de um corpo desejado será um objeto privilegiado das dietas. É nesse momento que alguém se define como vegano ou o que for, incorporando também os valores do grupo social com o qual se identifica. Há, nesse sentido, uma dupla “subjetivação” para qual Marx não atentou: do mundo material e do próprio universo de valores que me diferencia no conjunto de indivíduos da sociedade. Ao comer, reponho a vida física e cultural como indivíduo e é no duplo sentido apontado que se surge como ser determinado.




Sistemas culturais alimentares bem estruturados - como os das culturas chinesa e indiana - exercem, nesse momento, um poder grande de atração, especialmente se entendo que minha sociedade não é exatamente um lugar de produção de um indivíduo como imagino que ele deva ser. Assim, tanto o orientalismo como certa representações de um homem primitivo “puro” fornecem modelo de dietas desejadas.

Nas sociedades pré-industriais e pré-urbanas as dietas dos indivíduos sempre foram bastante uniformes, produzindo -  pela maior uniformidade genética e alimentar - corpos também bastante uniformes. A relação entre o comer e o viver parece simples, especialmente se observarmos que a própria cultura cuida de regular os tabus, o consumo das sazonalidades alimentares, etc. Não há a possibilidade de tantas escolhas divergentes do que comer.

Num outro plano, nas sociedades urbano-industriais, existe a multiplicação de ideais de vida emaranhados com o fato objetivo de que a mecanização industrial (fordismo) separou os homens no mundo do trabalho, criando a possibilidade de diferentes mecanismos de identificação agirem simultaneamente sobre eles, sem necessariamente se auto-excluirem. Não há uma “consciência de classe” sobre o comer, exceto entre as massas que vivem próximas da fome. Contraditoriamente, porém, o “ideal de corpo” atravessa essa multiplicidade de estilos de vida como uma diretriz única, à qual todas as dietas devem prestar tributo. 

É essa universalidade do corpo que nos falta analisar.

(segue em próximo post)


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