08/02/2017

A "ciência da nutrição" e a gastronomia - IV (final)


4 - a encruzilhada nutricionista de hoje

Não fosse o nutricionismo organizado como profissão liberal, à busca do sucesso em seus negócios, seu foco seria as políticas públicas de saúde, visto que existem estados físicos indesejados que derivam de alimentação imprópria em grande escala. Mas a preocupação nutricional com a fome, por exemplo, foi abandonada na curva dos anos ´70 do século passado.

No momento da preocupação com os excessos, o consumo desmedido de certos nutrientes, frituras em gorduras imprópria, potencial envenenamento por alimentos produzidos de modo inadequado - como os salmões, os vegetais submetidos a excessivos agrotóxicos, os corantes e conservantes - tudo enseja a ação pública em favor da qual os nutricionistas em geral dão as costas, pretendendo resolver as decorrências nos seus “consultórios”. 

A profissão exerce-se segundo o modelo da medicina liberal, onde os atendimentos viram "consultas". A “cura” do cliente torna-se, assim, um privilégio, semelhante à atenção quase única que a gastronomia dedica ao comedor.  Para o nutricionismo - como para a gastronomia - a “alimentação das massas” é um não-problema. 

Nesse sentido a educação alimentar se opõe à reeducação, sendo aquela coletiva e esta individualizada. Ao medicalizar-se, o nutricionismo atua sobre o estado de exceção de um organismo em particular. Quanto mais “problemas”, mais a estrutura liberal de atenção prospera. Ai, então, dá-se uma inversão: quanto mais se propaga a “reeducação” alimentar como necessidade, menor o valor da educação alimentar pura e simples. E não deixa de ser estranho que o sistema educacional ocupe-se da "educação física" descuidando da vida alimentar, que também é física.

Temos assim que o indivíduo, bastante descolado da tradição alimentar dos seus avós, torna-se sem noção. Mas na medida em que a sociedade está propensa a reconhecer uma crise da alimentação - pelos sintomas como obesidade, transtornos alimentares, alergias, intolerâncias, processos industriais condenáveis, epidemias animais, etc - mais inseguro e desconfiável se torna o comer e mais se busca o profissional da nutrição.

Como mecanismo de defesa, vários grupos sociais desenvolvem ideologias nutricionais que, de algum modo, prescrevem dietas ideais. São regras de comportamento que, se seguidas, imaginam que propiciem acesso a um comer seguro e nutritivo. As dietas são, portanto, filtros através dos quais as pessoas passam a se relacionar com o mundo natural comestível (e não é gratuito que, muitas delas, passam a humanizar os animais como forma de justificar seu não-consumo). Cada um desses nichos encontra com facilidade profissionais da nutrição alinhados com seus discursos. 

A adesão a algumas dietas tem um sentido de “conversão”, de cunho místico, xamanico, muito mais do que uma simples disciplina alimentar. Contudo, como seria de se esperar, algumas dietas voltam-se contra o próprio sujeito. 

Sophie Deram, em seu O peso das dietas (Sensus, 2014), e com base na psicologia evolutiva (evolutionary psychology), mostra como dietas restritivas podem produzir o efeito contrário, como uma fita de Mobius: “o seu cérebro não percebe a perda de peso como um sucesso da beleza; percebe-a como um grande perigo, por isso, desenvolve mecanismos de adaptação para proteger você. Veja só o que acontece: o seu cérebro vai aumentar o seu apetite, diminuir o seu metabolismo e aumentar cada vez mais a sua obsessão por alimento, justamente para que coma e não ocorra nenhum perigo de perder gordura”. Em síntese, diz, “não vamos ganhar essa batalha contra o nosso lado animal”.



Instaura-se então o “terrorismo nutricional”, demonizando/endeusando alimentos ao sabor das modas. Assim como o açúcar, a manteiga, os ovo, o chocolate, os carboidratos, as gorduras, são em geral demonizados, e proscritos. Mas existem os alimentos venerados que são prescritos - como açaí, chia, goji berry, quinoa, óleo de coco, sucos de cor verde... Pouco importam os sistemas de sanções em que estejam envoltos - se em uma espécie de AAA do comer, se em um caminho de purificação e santificação. E é tamanha a dietificação da sociedade que é provável que o discurso científico, que um dia almejou estar por trás de qualquer dieta, perca a hegemonia para sempre.

Mas os antropólogos sabem que toda cultura se desenvolveu em relativo isolamento, como um sistema fechado sobre si, com poucos contatos externos, conformando um estoque genético homogêneo, uma dieta em relação estreita com o seu meio ambiente e, claro, um corpo humano que configura uma espécie de “beau ideal” daquela sociedade, conforme Darwin demonstrou em The descent of man and selection in relation to sex (1871). 

Vestígios disso se nota, ainda hoje, em grandes civilizações, como a chinesa, a indiana, ou a sociedade japonesa tradicional, que não foram totalmente destruídas pela expansão do industrialismo ocidental.  Em todas elas, não por acaso, o discurso sobre a comida é bem elaborado, relativamente homogêneo e de domínio comum. O que representaria “perigo” foi eliminado das possibilidades do comestível, por tabus ou prescrições de outro tipo.

Quando da expansão colonial, o ocidente destruiu esses sistemas alimentares anteriores e, inclusive, o equilíbrio do seu próprio sistema. Basta referir-nos à adoção do milho na Itália e a consequente pelagra, o que não acontecia no México graças a nixtamalização do cereal. E também nunca é demais recordar que coisas hoje consideradas “perigosas” - como o açúcar, o fumo, o chocolate, etc - tinham um lugar nas sociedade de origem que nem de longe corresponde àquele que a mercantilização acabou por lhes destinar. Essa profusão de opções nutricionais fora do lugar criou, para a ciência, uma verdadeira encruzilhada. 

Não é uma má hipótese pensarmos que perdemos essa dimensão cultural por conta do industrialismo e da multiplicação capitalistas desenfreada das commodities de comer. A medicina galênica, queiramos ou não, é talvez o último modelo ocidental que buscava a harmonia do homem tanto em relação à natureza quanto ao ritmo da vida social. Mas ela, é claro, ficou para trás.


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