Nunca é demais repetir: a luta político-ideológica passa também pela apropriação de palavras. Há um tempo razoável, pessoas lutam pela afirmação de conceitos ligados à alimentação, como saudável, sustentável, etc.
Estas coisas tomaram vulto especialmente depois da doença da “vaca louca”, através da produção alternativa de animais e plantas segundo critérios que diminuíam os riscos de contaminação dos consumidores por drogas e venenos, ou outro agentes patogênicos, introduzidos na agricultura pela “revolução verde”.
A forma de produção alternativa quase sempre representou uma retomada de padrões anteriores à “revolução verde” em escala que só pode ser chamada de “artesanal”, por contraste com a grande industria cujos processos de produção estavam irremediavelmente comprometidos.
A forma de produção alternativa quase sempre representou uma retomada de padrões anteriores à “revolução verde” em escala que só pode ser chamada de “artesanal”, por contraste com a grande industria cujos processos de produção estavam irremediavelmente comprometidos.
Mas a qualidade alimentar tem uma história (Alessandro Stanziani, Histoire de la qualité alimentaire: XIX-XX siècle, Paris, 2005) e nunca é demais lembrar que essa história foi fortemente determinada por conflitos de interesse entre a agricultura tradicional e a indústria nascente. Hoje essa polarização persiste e a legislação sanitária de vários países mostra o triunfo da grande industria, através da imposição de normas pelo Estado que não podem ser cumpridas pelo artesanato.
Então a pergunta é: pode o Estado democrático fazer essa “opção” pelos consumidores, entregando-os, como um rebanho carneiril, de presente para a grande industria? Ou, ao contrário, ele deve abrir espaço para a coexistência de vários regimes de produção, segundo critérios de qualidade que, histórica e comprovadamente, não representam risco para os consumidores?
A burocracia de estado tornou-se um instrumento de opressão de regimes alternativos de produção na exata medida em que suas normas foram impostas a ele através de mecanismos de lobbies do grande capital. É claro que somente a luta politica, através da mobilização do artesanato agrícola e de consumidores conscientes, poderá impor limites a esse despropósito.
Por outro lado, há uma luta ideológica que passa pela definição dos conteúdos das palavras que enunciam as diferenças entre esses regimes de produção. Suas batalhas são travadas no dia a dia, nos meios de comunicação de massa que veiculam a lógica e conteúdo do grande capital sob a roupagem apropriada intencionalmente para desqualificar o que lhe faz concorrência. Seu objetivo é levar o consumidor a acreditar que, finalmente, ele mesmo triunfou: o saudável, o sustentável, são agora qualificativos da grande industria e estão à sua mesa!
Depois de um período de apropriação e banalização da palavra “gourmet” (que já se desgastou por completo), a publicidade e marketing da grande industria de alimentos vem incrementando o uso da palavra “sustentável”. Até mesmo o agronegócio, campeão mundial de utilização de agrotóxicos, vem se auto-denominando “sustentável” com apoio da grande mídia, como foi o recente seminário promovido pela Folha de São Paulo; como é a linguagem usual da revista Dinheiro Rural, etc. Esses aparelhos ideológicos do grande capital ajudam a desenhar um novo futuro de embuste.
A industria vem repetindo esse jargão, como no caso da Nestlé que se apresenta como “autoridade mundial em Saúde, Nutrição e Bem-Estar”, o que a autorizaria a “compartilhar conhecimento sobre estes assuntos com você e sua família”. Segundo esta política, informa que “estipulou uma série de ganhos ambientais a alcançar até o ano de 2020”, relacionados ao “monitoramento de aspectos sociais, ambientais e de direitos humanos nas 12 commodities prioritárias para o negócio: açúcar; avelãs; baunilha; cacau; café; carité; carne, aves e ovos; laticínios; óleo de palma; papel e celulose; peixes e frutos do mar; e soja”.
Talvez seja demais pretender que entendam um conceito de sustentabilidade tão sofisticado como o do economista Karl Polanyi, para o qual um sistema que converte terra e trabalho - que não são mercadorias - em “mercadorias”, só pode nos levar ao desastre civilizacional. Mas, num plano mais terra-a-terra, como essa gigante da alimentação faz carnes, ovos, aves, laticínios, soja, “sustentáveis”?
Bastaria lembrarmos como a soja devora a Amazônia para duvidarmos de qualquer ação sua nessa direção. Bastaria lembrarmos como a produção artesanal de leite, queijo, embutidos, verduras e legumes “orgânicos”, têm sido massacrados pela legislação feita sob o seu figurino para constatarmos a má fé, a mentira deslavada, o engodo que sua publicidade tenta impor aos incrédulos.
O caminho de luta pela qualidade alimentar impõe uma agenda aos que se opõe à ditadura da grande industria. Agenda que, além de incluir a revisão legal, deve pregar a desobediência civil (que amplia a base objetiva de pressão) até o realinhamento da legislação; precisa, ainda, exigir dos grandes a explicitação dos processos de produção e de absolutamente todos os insumos utilizados.
Não é uma luta fácil, sabe-se. Mas é pelo esclarecimento e educação do consumidor, pela ampliação dos pequenos negócios à base da desobediência civil, que resultados positivos poderão vir no médio e longo prazos.
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