Uma hora haveria mesmo de acontecer. É tanta gente discutindo há anos a qualidade da alimentação que um dia chegaria a vez de se discutir também a qualidade da alimentação popular. O que o Banquetaço fez, no dia 16 de novembro, foi colocar essa questão na ordem do dia para a sociedade em sentido amplo.
Mais de uma tonelada de alimentos foram convertidos em 2.000 refeições e 2.200 sorvetes, que a população consumiu em pouco mais de uma hora e meia. Para isso acontecer, por dezenas de dias, centenas de pessoas se reuniram e começaram a executar a idéia do Banquetaço. Pequenas Ongs, produtores agrícolas, voluntários de todo tipo, chefs de cozinha - todos definiram áreas de colaboração e puseram a mão na massa. Verduras, legumes, frutas, embutidos importados, “pancs”, brotaram em doações de todo canto. Gente que montou e providenciou logística. Centro de distribuição improvisado. Pessoal que cuidou da comunicação, etc. Tudo sem que houvesse um único centavo desembolsado. Uma única idéia cimentava o todo, transformando-se em força viva, sem que houvesse hierarquia ou protocolos de decisão.
Já não são os chefs e seus restaurantes gastronômicos que empunharão sozinhos as bandeiras da qualidade alimentar. Os limites deles são bastante estreitos, se pensarmos que a alimentação popular também precisa ser de qualidade e deve estar entranhada na vida cotidiana. Aliás, a de todo mundo. Apenas estava fora da consideração da turma que gravita em torno de ideais gastronômicos; e chefs que assinaram manifesto de apoio deram prova de que poderão ir além (sim, houve quem dissesse “apóio mas não quero meu nome envolvido nisso”…).
A qualidade alimentar é negada pela renda, pela legislação que privilegia a grande industria, pelos maus hábitos incutidos pela publicidade, pelas políticas públicas que desdenham das necessidades populares, chegando ao cúmulo de se propor que, na ausência de “hábitos alimentares”, os pobres deveriam contentar-se com uma ração rica em nutrientes. Esta desfaçatez foi o estopim, e o Banquetaço virou essa lógica de cabeça para baixo.
E ai começa a se afirmar uma agenda positiva. Se existe uma legislação satisfatória para promover a alimentação de qualidade, por que não exigir vigorosamente a sua implementação? Se existe um 1º Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com vigência até 2020, por que a prefeitura de São Paulo não o colocou em prática até agora? Ai, se esbarra na política, e se queremos um futuro melhor precisamos tomar a história em mãos. É preciso exigir, sem conversa fiada. É preciso saber que, quando a prefeitura encaminha à Câmara um orçamento com 92% a menos de recurso para essa finalidade, está cometendo uma violência contra a cidadania.
E é preciso atentar para as forças vivas da sociedade e o que almejam. Existem centenas de pequenos produtores agrícolas emaranhados no tecido urbano ou periurbano, recuperando terrenos, plantando e colhendo, o que precisam para expandir suas atividades e conquistar mais e mais espaço na alimentação de qualidade. Por que não possuem, ainda, centros de distribuição e comercialização de seus produtos por toda a cidade? Por que o artesanato agroalimentar é sufocado pela legislação, em vez de ser incentivado pelos órgãos de fomento? Em que espécie de alienação vivemos? Mais que nunca é preciso reinventar a cidade a partir de um só eixo: o espaço público, o commons, a república.
São questões que exigirão respostas daqui para a frente. Respostas dos órgãos públicos, da opinião pública, da mídia. E se somos inteligentes, antenados, é preciso reconhecer que viemos ao mundo para perguntar. E exigir respostas.
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