04/12/2017

O primeiro restaurante gastronômico pós-foodie


Um cozinheiro é um cozinheiro, é um cozinheiro. Em qualquer canto. Não depende de estrelato.

Era o dia 14 de agosto quando o Dois - Cozinha Contemporânea fechou as portas, em 2011, prometendo abrir um ano depois em outro endereço. Não aconteceu. E os dois sócios - Broide e Ribenboim, amigos de infância - não mais trabalharam juntos. Foi um bom momento de investigação da cozinha e a garra dos dois sugeria que seria algo destinado a ser marcante. Não foi.



Mas Gabriel Broide não esmoreceu, e eis que se exilou a partir de 2012 no luxuoso Hotel-Spa Botanique, inteirando sua trajetória de 18 anos na cozinha. 

O Hotel teve uma vida atribulada, mesmo na cozinha, onde, de início, prometeu-se ninguém menos do que Laurent Suadeau. Quando Broide chegou, esse plano já era reminiscência. Sobraram apenas, desse projeto, os grandes vinhos na adega. Ele arregaçou as mangas e pôs mãos a obra à sua maneira.



O restaurante, de nome Mina, estava destinado a ser um restaurante “gastronômico”. Mas, o que é isso? Hoje é o restaurante que frequenta a midia, está na pauta das revistas de gastronomia com pratos bem desenhados e montados;  concorre a qualquer prêmio; aparece sempre no Instagran dos foodies & dos famosos. Isso não acontece no Mina, apesar de ter sido o restaurante revelação da Montanha na edição de VEJA 2014. Como se sabe, uma categoria um tanto artificial num país de tantas planuras culinárias.

Não temos no Brasil tradição de turismo gastronômico, por mais que se diga o contrário. O mesmo sujeito que, na Espanha, se despenca e atravessa o país para ir ao Asador Etxebarri, não levanta a bunda da cadeira para ir até Santo Antonio do Pinhal. Hoje o foodie se contenta em deambular pela Barra Funda, ou fotografar o que ele mesmo faz em casa. Aposentou o espírito aventureiro pelo conforto das imediações. A antiga figura do gourmet, com ampla cultura culinária, ficou no passado. A própria mídia o usou e desmoralizou.

Sentado diante de mim, seguro de si na sua dolmã, Broide explica pacientemente como abandonou essa idéia. Há paz nos seus olhos. “Era muito stress. Tinha que buscar ingredientes no fim do mundo, exigir da brigada…eu gritava com todo mundo. Preparar pratos para fazer fotos para revistas de gastronomia. Você tem que fazer 5 pratos iguais, um empratado perfeito, até acertarem a foto. Para que tudo isso? Hoje é um restaurante tranquilo, abrimos a semana toda mas o movimento se concentra no final de semana, mas tenho uma equipe de 4 pessoas e consegui me acertar com fornecedores de perto. Tenho até um quitandeiro, da Quitanda Ferreirinha em Santo Antônio do Pinhal, que funciona como “integrador” e busca os melhores ingredientes artesanais para mim. Quase tudo resolvo com ele e na horta do Hotel”. Diga-se de passagem, uma bela horta.

E esclarece: “porco caipira ainda não consegui. Tudo aqui precisa ser sifado…”. O que, aliás, não impede que se coma um excelente cordeiro em molho indescritivelmente bom.

Broide faz questão de frisar que é outro homem. Encontrou o seu caminho. “Eu era um chef paulistano, com todos os cacoetes, querendo fazer uma gastronomia nos padrões de São Paulo fora de São Paulo. Para que?”

Pensa agora em como se tornar um caipira, deitar raízes na região e nunca mais sair de lá. Mora a 15 quilômetros do hotel, recebendo alegremente suas filhas do primeiro casamento em fins de semana alternados. Nada de vida vivida pra lá é pra cá. Paz.

Se o leitor quiser um paralelo, Broide me evoca mais Francis Malmmann na Patagônia do que Massimo Botura. “Claro, eu leio, estou atualizado, conheço as referencias. Mas quero fazer uma cozinha tranquila. Se o cliente chegar e pedir um filé parmigiana, sou capaz de fazer, sem quebrar a cozinha toda, como antigamente”. Esta a metamorfose de chef em cozinheiro, acredito.

Desde uma entrada com berinjela - que remete não só à origem judaica do cozinheiro mas à inesquecível berinjela que anos antes fazia no Dois, hoje imitada por ai - até um tomate de árvore com caju picado; passando por um truta bastante instigante; um polvo em aioli de alho negro; um ovo perfeito com molho espumado de cogumelos chitake da região e farofa de presunto -  os caldos, molhos ou emulsões que Broide prepara parecem ser o ponto alto de sua cozinha. 

Quando se come uma vieira em calda de pinhão, se percebe o quanto de cerebral há ali. O resultado não poderia ser melhor nessa sua versão local da famosa dialética “mar e montanha”, tão popular na gastronomia desde que Adrià pôs a circular seu “tutano com caviar”. O que se escondia no pinhão que não víamos? De fato, no que um bom cordeiro pode ser diferente de outro, igualmente bem feito, senão no molho e acompanhamentos? E na sobremesa? É preciso ter chocolate? Não! Umas frutas, um caldinho de raspar o prato, um suspiro esfacelado, e estamos conversados. Estamos no pós-luxo, que é o conceito do hotel.

Gabriel Broide, de modo intencional ou não, como que volta à concepção clássica da cozinha dos grandes mestres sauciers. Se demorar sobre um molho é buscar a essência de algo que engrandece uma carne, um vegetal. O saucier é o “químico esclarecido” da cozinha, ensinava Escoffier. O público saberá entender? Não é a questão. A questão é: a melhor cozinha que se pode fazer ali está diante de você? Em mesa ao lado, Paola Carosella parece, silenciosa, buscar a resposta.  

Trata-se de um restaurante para quem gosta de comer bem sem olhar para o celular. E precisa gostar bastante, pois fica longe da capital. Por isso mesmo, e felizmente, nunca será foodie. 

Talvez Broide consiga, passo a passo, se demorando sobre a complexidade de cada criação, restaurar o antigo sentido do gourmet que o mundo foodie e a publicidade banalizaram e aboliram. 

Afinal, um cozinheiro que conseguiu se desligar do mundo pegajoso dos “rankings de chefs”, é coisa rara. Coisa a se admirar e acompanhar os passos. 

Talvez Broide, aparentemente, tenha ido longe demais, como se ter ido fosse necessário para voltar. Mas não parece. Por isso o melhor é ir conferir o que ele faz lá mesmo, em seu habitat caipira. Não é coisa da qual se possa arrepender. 

2 comentários:

Lu disse...

�������� muito bom texto Dória! O Botanique realmente é um lugar ímpar!

TCarvalho disse...

Querido Carlos Dória, adorei esse seu comentário. Nós, os da periferia, estamos aí, levando, aos trancos e barrancos, a nossa sina de cozinhar fora do burburinho. Agora em novembro, fizemos 15 anos de vida. Quero muito ir conhecer o Broide e o seu "Mina". Quem sabe agora pro fim do ano. Vamos tirar uns dias a partir do dia 15 pra dar uma volta por aí e adoramos Santo Antonio do Pinhal. Abs. e apareça pro ano.
Sergio Lima

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