21/08/2018

A superioridade de Camara Cascudo sobre Gilberto Freyre



Acabo de reler Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e História da alimentação no Brasil, de Camara Cascudo para escrever um artigo para uma revista acadêmica francesa. 

História da alimentação faz 50 anos, o que se comemorará em Natal no final do mês, com seminário do qual participarei.

Mas o que se pode dizer de novo sobre a História de Cascudo? Dessa ultima leitura que fiz, nasce a vontade de afirmar, com todas as letras: a obra de Cascudo é muito superior ao livro mais famoso de Gilberto Freyre, no traçado do perfil da culinária brasileira.

Freyre é homem ainda preso aos problemas intelectuais do século XIX, como a miscigenação racial entre índios, negros e brancos. Por mais que mostre nivelação na culinária, não consegue abandonar a hierarquia que tem no cume os brancos, força centrípeta a construir aqui uma variante da "cozinha luso-tropical". Seu iberismo o impede de ver o Brasil de baixo para cima, como faz Cascudo.



Câmara Cascudo escreve após o ocaso da discussão sobre raças. É nos anos 1940 que, pela primeira vez, esboça a escrita da História da Alimentação no Brasil, atirando-se à sua redação a partir de 1962, concluindo-a em 1967. A obra se compõe de uma etnografia do cardápio indígena, da dieta africana e da ementa portuguesa, seguida do que chama de um “ensaio de interpretação” de feitio mais sociológico. 

Na etnografia, perseguirá as “constantes” e “permanências” da comida indígena e sua participação “na comida contemporânea nacional”; dos negros, o “panorama alimentar” de fins do século XV” e sua presença nos engenhos de açúcar; dos portugueses, louva-se em “fontes antigas, eruditas e populares”. Move-o, também, a intenção de que sua História possa ser útil para a “campanha nutricionista”. Ele não discute mais a formação das raças, tomando-as já pelo ângulo da sua alimentação, isto é, do produto da sua evolução, diferenciada nos seus componentes e convergindo para o que chamará de cozinha brasileira, definida por um paladar ou gosto.

A finalidade do livro, diz ele, é “expor padrões alimentares que continuam inarredáveis como acidentes geográficos (e) mostrar a antiguidade de certas predileções alimentares que os séculos fizeram hábitos, explicáveis como uma norma de uso e um respeito de herança dos mantimentos da tradição. A modificação desses usos dependerá do mesmo processo de formação: o tempo”. Sua História, assim, será correspondente à “visão do problema no tempo e a extensão de sua delicadeza porque irá agir sobre um agente milenar, condicionador, poderoso em sua suficiência: o paladar”. Este, por sua vez, nada será além das formas históricas e culturais de atendimento aos impulsos da fome e busca do deleite.
A fixação do paladar resulta da “incalculável repetição de estímulos”, numa sequência na qual uma experiência agradável se torna um hábito para, com o tempo, assumir quase a feição de um “instinto”. A miscigenação propriamente dita será fruto da circunstância que “unifica a alimentação”, uma vez que os filhos (mulatos ou mamelucos) comiam “como seus pais”, de modo que “o brasileiro nasceu ao mesmo tempo que nascia a sua cozinha, no século XVI”.

Essa identidade entre os sujeitos da nação e a própria cozinha, unificados pelo gosto – e não mais pela etnia dominante, como para Gilberto Freyre – faz da história da alimentação no Brasil um caminho aberto de sucessivas assimilações que se processam à mesa. Do ponto de vista social, isso se dava por eleição, no caso dos homens livres, ou imposição inicial, no caso dos escravos. A unificação se tornou visível, especialmente entre as classes menos abastadas, ou “povo”, ao incorporar de modo próprio até influências mais recentes, como é o caso do macarrão.

A estratégia de ir à busca da cozinha “como ela é”, como realidade que esconde um gosto novo que se forma do encontro, faz da História da alimentação um verdadeiro ponto de inflexão na interpretação da culinária. E como não precisa de teorias sobre a miscigenação, Cascudo se sente livre para trazer para o primeiro plano o testemunho de ex-escravos, de um coronel dono de escravos, das tias com quem conviveu, do que viu in loco na África, dos ditos populares e assim por diante, construindo sobre esse material sua representação da cozinha brasileira.

Cascudo não se furta a comparar as “contribuições” de negros e índios para a “assimilação dietética”. Para ele, “o africano esteve muito mais espalhado e penetrante no Brasil que o indígena (e) mais participante da vida brasileira nascente. O mameluco não conservava predileção do ancestral ameraba[neologismo que criou para designar ameríndio] e sim do pai lusitano. O negro escravo daria, entretanto, menor contribuição à dieta nacional e popular que o furtivo indígena, já em meados do século XVIII isolado e em via de dispersão étnica [...]. A comida indígena permaneceu mais fiel aos modelos quinhentistas [...]. Não se dissolveu na aculturação como a ciência negra da culinária, dificilmente legítima, raramente autêntica”.

Metodologicamente, afirma sobre a dieta indígena: “se as pesquisas contemporâneas revelam as persistências registradas no século XVI no plano da alimentação, essas permanências devem ter uma antiguidade bem maior do que podemos deduzir, expressando força radicular”. Como exemplo, analisa o polígono das secas, de povoamento dos índios cariri e jê, frisando as “comidas brabas” que lhe correspondiam, revalorizadas depois da ocupação pecuária e da lavoura, “reaparecendo para atender ao apelo famélico”. Trata-se, pois, de uma perfeita adaptação que foi recoberta pela exploração colonialista mas permaneceu latente, no subsolo da cultura, até ter novamente descoberta sua utilidade.

Cascudo preocupa-se em identificar permanências: havia entre os índios, segundo ele, e ao modo de cada cultura sua, “uma tradição básica, inalterável como um fundamento geológico, e depois vinham as curiosidades, as alterações, as novidades, as experiências, imitações, no plano da nutrição. A tradição para o aborígene era sinônimo do alimento que garantia a conservação física. Os demais passavam à classe de complementos [...] farinha, milho, batata, carne de caça, peixe, eram as raízes da árvore humana”. Ressalta também as técnicas que os índios conheciam – como as várias formas de assado, mais do que os cozidos, inclusive para mariscos, crustáceos e moluscos – de modo que “a cozinha brasileira nasce na insistência do assado, emprego do sal que o português valorizava pela indispensabilidade”.

Quando se ocupa do negro, Cascudo faz uma reconstrução da diversidade cultural encontrada na África, das alimentações associadas a ela – como utilizações dos animais bovinos, caprinos e ovinos – e, passando ao Brasil, desconstrói a unicidade da categoria “negro”, observando que “o escravo teve alimentação relacionada com sua atividade essencial. Escravos dos engenhos de açúcar, escravos das fazendas de gado, escravos da mineração, escravos dos cafezais, escravos urbanos não deviam ter a mesma dieta”, afastando-se da imagem única construída por Gilberto Freyre. “Angu de milho, toucinho, alguma carne semanal era o regime do escravo em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, na mineração, pastorícia e lavoura”; nas fazendas do Norte, “a farinha lastreava a sustentação, fazendo bucho, com carne de bode, algum peixe salpreso”. E destaca, com pioneirismo na história alimentar, a aculturação prévia dos negros africanos aos alimentos da terra americana, levados para a África pelos colonizadores: mandioca, milho, amendoim, abacaxi, batatas etc. já faziam parte da dieta africana. O milho, por exemplo, sempre cozido, prenuncia papa, angu, pirão e, fervido com leite de vaca, anuncia o mungunzá; e a influência dessas permutas reflete-se no ritual jeje-nagô da Bahia, como a inclusão do milho nas comidas dos santos.

A “instalação da cozinha portuguesa no Brasil” é o nome que Cascudo dá à investigação sobre o que se comia no Portugal quinhentista, vasculhando literatura ficcional e determinando o que trouxe o português que aqui “recriou o ambiente familiar, cercando-se dos recursos do curral, quintal e horta, desejando quanto possível prolongar o tratamento em que se habituara”. Duas contribuições essenciais: valorizara o sal e revelara o açúcar aos africanos e índios, além da utilização do ovo de galinha, ignorado dos negros e indígenas. O que não era brasileiro e veio de Portugal, “tornou-se brasileiro pela continuidade do uso normal”, inclusive o uso de gordura – especialmente banha de porco –para fritura, que não se conhecia aqui.

Cascudo nos oferece um exemplo vigoroso de análise moderna da constituição de conjuntos culinários originais quando analisa os “mitos e realidades da cozinha africana no Brasil”. Sem citar Gilberto Freyre em qualquer momento, discorre sobre a presença africana (sudaneses e bantos) em Salvador, no Pará, em Pernambuco, em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, ressaltando que só no século XX se dá ênfase à sua presença nacional, especialmente na Bahia, por obra e graça de uma bibliografia que vai se acumulando desde a publicação do livro pioneiro de Manuel Querino. Afora Salvador, essa cozinha “não conseguiu notoriedade”. A razão que encontra está na coesão, já no século XIX, ao redor do culto jeje-nago dos candomblés baianos, como elemento de sua “sobrevivência”. A existência do “recinto nagô” é que propicia sua permanência e, em contraste, explica a ausência de qualquer cardápio correspondente no fim do século XVIII e início do XIX.

Estudos recentes, de Luís Nicolau Parés, confirmam o papel extremamente importante da unificação dos cultos no candomblé pós-abolição e República,  e o movimento de “nagoização” dos terreiros com volta à África....etc. E, não sem ironia, Cascudo se perguntará sobre os ingredientes africanos trazidos pelos escravos: “Trazidos como? O escravo não conduzia bagagem e sua alimentação era diariamente fornecida no navio e no mercado até ser vendido. Como seria possível ao desgraçado negro [...] lembrar-se de trazer as espécies humildes de sua alimentação normal se tudo era difícil para ele (...)?”.

Uma obra cheia de interrogações, de lacunas que pesquisas posteriores puderam ou poderão ainda preencher. Muito diferente daquela visão acabada sobre o Brasil que Freyre construiu, entronizando os descendentes de portugueses como "niveladores sociais" através da miscigenação, escondendo sob a cama a brutalidade da escravidão de negros e índios...









0 comentários:

Postar um comentário