26/02/2010

As fronteiras da gastronomia - III (final)

NATURAL: “Usamos apenas produtos naturais”. Essa advertência, tão comum no comércio alimentar, é das mais desorientadoras. Como poderia ser diferente? Mesmo as coisas ditas "artificiais" são novos arranjos de coisas originadas na natureza.

Mas várias são as concepções sobre a natureza. Prefiro a darwinista que a apresenta como um conjunto de leis que regem a evolução, através de um equilíbrio eternamente instável, onde desaparecem formas de vida dando lugar a novas. A luta pela vida, através do mecanismo de seleção natural, é o motor desse processo de transformação.

A natureza apropriada pelo homem é constantemente alterada através da seleção artificial. Quem haja lido Variation of Animals and Plants under Domestication (1868)de Darwin terá percebido que absolutamente nada do que consumimos (animais ou vegetais) veio ao mundo na forma que o conhecemos. O livro é um belíssimo inventário sobre as transformações impostas às espécies úteis aos homens. A chave desse processo, “é o poder de promover a acumulação seletiva: a natureza oferece variações sucessivas; o homem soma-as numa determinada direção útil”, escreveu ele.

Ora, não há estática na natureza, ao contrário do que pensam certas correntes preservacionistas de cunho religioso. Deus não criou uma ordem natural, e ela está sempre em mudança. O homem é uma espécie que surgiu e que desaparecerá como qualquer outra. O mundo, a natureza, sobreviverá a nós.

Lutamos para viver e submetemos as demais formas de vida ao nosso projeto. A sustentabilidade, vimos, é não destruir as nossas fontes de vida nem o próprio trabalho humano. Mas ao garantirmos artificialmente a reprodução de espécies naturais elas mesmas se transformam em artefatos humanos. Deixam de ser “naturais” no sentido original do termo.

A maior parte das espécies das quais derivamos nossa vida podem ser chamadas “máquinas alimentares”. Milhares de espécies animais e vegetais se desenvolveram sob a estrita vigilância humana e jamais existiriam na natureza tal e qual as conhecemos. O frango, a vaca, os porcos e assim por diante. Só impropriamente podem ser chamadas “naturais”.

Então, a química, a seleção artificial, a hibridação, a transgenia são todos expedientes desenvolvidos com base em conhecimentos científicos visando adaptar as espécies “naturais” ao projeto humano, convertendo-as em artefatos.

Claro, há artefatos úteis e outros que, nocivos à saúde, só entram em circulação por conta da dinâmica do capital. A questão abordada assim desloca a discussão: já não se trata de produtos “naturais” contra produtos “não-naturais”, mas de artefatos avaliados em sua utilidade alimentar (gosto, nutrição, etc).

Vê-se, então, que o fundamental é conhecer o processo ao qual as espécies naturais foram submetidas para se conformar aos desígnios humanos. É esse processo, totalmente artificial, que diz da qualidade das matérias-primas. Chamá-las de “natural” só esconde o que verdadeiramente importa.

3 comentários:

clara e chris disse...

Dória, tem um comediante americano que fez um número sobre a campanha de "salvar o planeta". Ele tem uma tirada ótima, dizendo que nós temos que salvar a nós mesmos e que a Terra "will shake us off like a bad case of fleas".
http://www.youtube.com/watch?v=eScDfYzMEEw

Ana Claudia disse...

Dória seus textos me fizeram pensar em inúmeras coisas, me fizeram lembrar de restaurantes que conheço e pensar em alternativas para essas questões. Não sei se você conhece o restaurante Paraíso Tropical do genial e excêntrico Beto Pimentel. Um restaurante localizado num dos maiores e mais violentos bairros de Salvador, o Cabula, e que tem um fragmento de mata atlântica preservado e um espaço onde o Beto planta a maioria das especiarias e frutas que usa em seus deliciosos pratos, além dos frangos que produz por lá também. Sem sombra de dúvidas é o restaurante que mais me sinto bem, por saber que as frutas que como são produzidas ali mesmo, junto com a floresta e que não passaram por atravessadores ou foram produzidas de forma que não admiro ou não acredito. Lembrando do Paraíso Tropical uma pergunta ficou em minha cabeça: Porque só conheço um restaurante nesses moldes? Sim, o Paraíso Tropical tem espaço e o chefe é um agronônomo, pontos não muito comuns. Mas será que não seria possível os restaurantes investir em agricultura (agroecológica)? Parece uma loucura, eu sei. Nos grandes centros, como São Paulo, por exemplo, existe agricultura urbana e periurbana, será que os restaurantes não consiguiriam incentivar esse tipo de agricultura? Como aquele programa prato do dia faz com as instituições carentes, uma porcentagem do valor do prato iria para um fundo que estimulasse a produção agroecológica e essa produção agroecológica supriria as necessidades do restaurante oferecendo matéria prima de boa qualidade para os chefes. Se cada restaurante “adotasse” um agricultor urbano ou periurbano para produzir pra ele acho que alguma coisa mudaria… Esses agricultores muitas vezes estão sendo explorados por atravessadores ou não conseguem vender sua produção de forma justa e quando produzem alimentos sem agrotóxicos, na maioria das vezes, não conseguem vender essa produção com valor agregado por não possuirem a certificação X ou Y ou o canal de comercialização X ou Y.
Como a Verônica falou em seu comentário, há muitos programas de governo para incentivar outras formas de agricultura. Trabalhei durante algum tempo para o governo e muitas vezes me senti desistimulada pela burocracia e morosidade. Hoje tento fazer o exercício de pensar alternativas que eu mesma possa fazer para mudar o que me incomoda, uma vez que percebi que não estava fazendo nada, estava sempre esperando intervenções de terceiros, principalmente do governo para amenizar meu incômodo. Hoje tenho uma horta circular que sustenta minha família, no meio da minha horta tenho um galinheiro que produz ovos e adubo, tenho uma composteira também que alimenta minha horta. É pouco? Pode ser… Mas a satisfação que sinto ao sentar à mesa e saber que aquelas verduras, ovos, legumes e até algumas frutas foram produzidas a poucos metros me traz uma satisfação enorme. Será que alguns chefes não sentiriam satisfação em elaborar seus pratos com materia prima que eles saibam de onde vem e como foram cultivadas?

Ana Claudia Costa Destefani
Bióloga, MSc. Conservação de Ecossistemas Florestais
www.viaverde.agr.br
http://lattes.cnpq.br/1794164203465017

Feraprumar disse...

Dória,
só hoje (06/09/12) li seu post..atualíssimo!
acho ótimo lê-lo agora depois de ter te "conhecido" através do seu livro com o Alex Atala (Com unhas, dentes e cuca) onde vários conceitos gastronômicos me foram apresentados de forma inteligente, sensata e respeitosa.
o que seria uma alimentação natural?!? muito esclarecedora sua visão...pois até o fogo (simples cozinhar) altera a textura, sabor, etc daqueles alimentos que são "naturais".. daí, vejo muito preconceito quando o cozinheiro utiliza equipamentos e o uso de outros elementos químicos que garantem ora, precisão na temperatura, ora alteração na textura/formato dos alimentos...
obrigado por compartilhar seus textos conosco,
Fernando

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