31/01/2013

Reflexões à sombra das vinhas velhas


Interessante matéria de capa ontem no Comida, assinada por Cristiana Couto & Alexandra Corvo. Fala das variedades de uvas ameaçadas de desaparecimento e que, no entanto, estão sendo recuperadas na onda do “locavorismo” (ou “locabebismo”?). Interessante porque dá pano para manga.
A razão que apuraram para esse novo boom é a “consciência de preservar um patrimônio genético e histórico”. Jancis Robinson, em entrevista na mesma edição, diz que “consumidores estão cansados de produzir e beber chardonnay, cabernet sauvignon, merlot”. Sou mais Robinson do que as fontes entrevistadas pela reportagem - pois uma coisa é o discurso; outra, aquilo que move o capital nessa ou naquela direção. E o gancho da matéria parece ser o lançamento de Wine Grapes, monumental obra de Robinson,  da qual Luiz Horta, no Paladar, também extrai ensinamentos.

A matéria do Comida persegue a expressão de terroirs esquecidos. Filipa Pato (a cacofonia mais saborosa do mundo...) fala do terroir da Baga, na Bairrada, como exemplo de excelência. Ora, a vinha é das plantas mais plásticas que existem no mundo. A rigor, se adaptam muito bem em certas faixas de temperatura e variados tipos de solo. 

Darwin já havia explorado isso em The variation of animals and plants under domestication (1868), e o assunto não é novidade. A questão é que o vinho - e ai sigo mais Emile Peynaud do que as autoras - é muito mais fruto do trabalho humano do que das condições naturais. Ou, como enunciou Adam Smith em 1776: levados ao mercado, certos vinhos parecem ter uma propriedade mágica que os faz mais vendáveis; por isso, são melhor cuidados pelos produtores do que os outros, de forma que não sabemos se são características naturais ou o fruto do trabalho humano dedicado a razão do sucesso. Os críticos de vinhos também não sabem resolver isso para nós, misturando tudo numa coisa só que chamam terroir.

Contudo, como diz Luis Pato (pai da cacofonia...), “o vinho passou a ter uma receita sempre igual, para agradar ao consumidor”. Em outras palavras, houve uma estabilização técnica que agora prejudica a competição entre produtores. É sempre assim em economia: inovações técnicas, quando se disseminam, criam igualdade entre produtores e, por sua vez, estimulam a busca de novas técnicas capazes de diferenciar.



Mas a opção de fazer coisas “menos iguais” é tributária das vinhas de determinados lugares ou depende de fato de inovações técnicas? A primeira hipótese parece ser a aposta do marketing das castas “resgatadas”. As variedades são, conforme Jancis Robinson, mais de 10 mil, do ponto de vista botânico; mas apenas 1.368 são usadas no fabrico de vinhos. Novas variedades, novas possibilidades de marketing independente da consistência dos argumentos.

Michel Roland, o papa do marketing dos vinhos, acha que o apelo “terroir” se esgotou, ao menos no caso da França. Lá existem mais de 400 terroirs vinícolas e a enorme maioria deles significa absolutamente nada em termos de alavancagem de vendas. Ele é contra, por exemplo, à formação de um “terroir” no Vale do São Francisco. Não me parece um raciocínio absurdo. Roland prefere fazer vinhos com estilo a partir de um número limitado de castas, mesmo as que se repetem em torno do globo em diferentes países.

A diferença parece sutil, mas amarrar uma casta a um terroir parece trazer à tona, de novo, o problema da multiplicação ilimitada dessa “marca regional”. Sem dúvida é positivo que a maior variedade possível de castas seja preservada in situ, consolidando um estoque genético que poderá, a qualquer tempo, favorecer o desenvolvimento de novas variedades e, mesmo, novos vinhos a partir de melhorias técnicas. Afinal, foram as melhorias técnicas que permitiram recentemente o bom aproveitamento da tannat - cujos “defeitos”, antes insuperáveis, deviam-se indistintamente à sua genética e adaptação. 

No mesmo Comida, Josimar resenha o bistrô da Grand Cru Moema. Gosto da estratégia de se comer em uma adega, lançando mão dos vinhos de prateleira pelo mesmo preço. Expand já fez essa experiência no D&D; a antiga Tire Buchon, em frente ao Così, transformou-se num restaurante onde se pode consumir assim os vinhos da casa. Todo mundo sentadinho, claro, e Josimar reclama uma carta de vinhos à mesa na Grand Cru, para não se ter que levantar. Acho que é coisa de paulistano não gostar de levantar a bunda da cadeira, mas essa forma de serviço - o self-service de vinhos - certamente contribui para o barateamento dos preços e pode ensejar novas formas de sociabilidade entre clientes. 

Paladar dedica a capa aos brotos. É a nova moda: broto de tudo no prato. O que é broto? Gil Felippe responde: “Quase tudo que chamamos de broto, na verdade, não é, botanicamente, broto. Há sementes germinadas (caso do broto de feijão) e plântulas ou plantinhas. Do ponto de vista técnico, uma semente que germina dá origem a uma nova planta e broto é o nome dado àquilo que nasce em uma planta ou tubérculo já adulto”.  

E se pode comer qualquer broto? “Melhor não. Uma batata esquecida na gaveta de legumes da geladeira pode brotar. Os olhinhos que aparecem na batata são chamados de gemas, que vão crescer e produzir um broto. Mas ele não deve ser comido, porque a casca tem muita solanina, que é uma substância tóxica”. Para mim, basta!

Paladar dá notícia também do Festival Gastronômico Sabor SP. São a Secretaria do Turismo do Estado e a revista Prazeres da Mesa dividindo o território em unidades administrativas (macrorregiões) como forma de abordagem da gastronomia. Uma mecânica complexa- juri popular e tudo o mais - para satisfazer hotéis, restaurantes, prefeitos e burocratas instalados nessas regiões. 

Os recortes nada tem a ver com culinária. Basta dizer que Vale do Paraíba e Vale do Ribeira não aparecem como coisas significativas, ficando escondidas em outras unidades. Regionalismo e sub-regionalismo já deram o que tinham para dar. Hoje, com outros enfoques culinários, com a globalização geral, significam nada como princípio explicativo da gastronomia. Mas nem todo mundo está nesse barco - sejam consumidores ou cozinheiros - inventando-se, alternativamente, destinos para ir no final de semana...












27/01/2013

Papel integrador da culinaria negra na Bahia


É muito difícil seguir o fio da formação da culinária brasileira porque, como sabemos, no meio dessa caminhada deu-se a hipertrofia da ideia de que somos a convergência das cozinhas indígena, negra e branca - especialmente pela absorção de ingredientes nativos e africanos por técnicas portuguesas. Essa ideia vulgar desnorteia o pesquisador, mais do  que o auxilia.

Pois lendo de novo a História da Alimentação no Brasil, de Camara Cascudo, em função do curso oferecido pelo C5 - Centro de Cultura Culinária Camara Cascudo, especialmente o capítulo sobre a culinária negra - aquela experiência de elaboração exclusiva do Recôncavo Baiano - me dei conta de uma virtude ímpar dessa cozinha, que é o trato da farinhas.

As farinhas de mandioca - que são inúmeras - e a farinha de milho são sempre adstritas à origem indígena. Já a farinha de trigo é notoriamente portuguesa. E se nos perguntarmos qual a farinha africana, não temos o que responder. Mas talvez por não ter mesmo uma “farinha étnica” é que a cozinha negra transita por todas elas. Farinha de milho, farinha de mandioca, farinha de trigo, farinha de arroz, além de farinha de feijão, para ficarmos nas principais.

O receituário da cozinha de santo ou cozinha de terreiro admite, de fato, essa vasta gama de amidos. A de arroz, por clara influencia dos negros islamizados; a farinha de feijão fradinho, componente do acarajé. A farinha de trigo, especialmente nas versões mais modernas do vatapá - prato que Cascudo, com senso crítico agudo, diz que ainda “não está acabado” (isso em 1918, quando morou em Salvador), no sentido de estabilizado, como a feijoada completa.



Então, tomemos as receitas compiladas por Cascudo, por Manoel Querino ou por Nina Rodrigues, e teremos o testemunho do uso amplo e indistinto das farinhas, as vezes se substituindo no mesmo prato.

Esse papel integrador dos amidos da cozinha negra nunca foi suficientemente ressaltado, demorando-se os analistas mais no dendê, na pimenta e no leite de coco. Mas, convenhamos, as farinhas são elementos substantivos dos pratos, ao passo que dendê, pimenta e coco são elementos adjetivos. 

24/01/2013

Os 15 minutos de glória de Anastasia


Além da “confusão entre o que é Minas e o que é Brasil”,  que o Madrid Fusión proporcionou, conforme  o repórter José Orestein, o Governador Anastasia, de Minas, subiu ao palco com os seus 15 cozinheiros e Alex Atala. Ouviu agradecimentos pelo empenho do Governo do Estado (R$ 2 milhões). Foram 80 pessoas levadas a Madrid.
Anastasia falou das parcerias com o comércio, a indústria e a pecuária mineiras para viabilizar o negócio. Do bolso do contribuinte só saíram R$ 350 mil, entre o que colocou o governo mineiro e a Embratur.
Não é muita grana, é? Bem, além disso sabemos que a gastronomia só prospera à sombra do poder. O que seria de Carème sem os palácios da era napoleônica? O que seria de Escoffier sem os banqueiros?

Só fiquei chateado com a atitude bifronte do Governador. Gosta dos louros do palco madrilenho, mas não está nem ai com os agricultores familiares do seu Estado. 

São 30 mil propriedades de produtores artesanais mineiros de queijo de leite cru,  da qual vivem cerca de 100 mil pessoas - com uma renda familiar média, derivada da atividade, que atinge R$ 17 mil por ano.

No entanto, essa gente é humilhada e ofendida pela polícia, pelos fiscais da Anvisa e uma enorme plêiade de burocratas que persegue o queijo de leite cru.

O queijo, que é inequivocamente mineiro, nem conseguiu chegar ao palco do Madrid Fusión. Talvez por isso a confusão entre o que é Minas e o que é Brasil...

Se o governador pegasse um avião para Brasilia, batesse na porta de Dilma para dizer que essa situação é insustentável, que está matando o artesanato alimentar que é a identidade de Minas, estou certo de que muito mais gente do que cabe no auditório do Madrid Fusión estaria disposta a aplaudir. Quem sabe, fazer uma estátua para ele. Com certeza, inscrever seu nome nos anais da gastronomia mineira.

Para isso, é preciso resistir ao aplauso fácil (R$ 2 milhões), ao brilho fugaz, metendo-se como peixe fora d´água num palco que não é o seu.

Governador Anastasia, zele pela culinária do seu Estado, em favor da gastronomia brasileira. Não custa tanto. E, afinal - eu não estava lá mas soube que o senhor disse -  "em Minas gastronomia é uma questão de política pública"...








23/01/2013

Anvisa "Classe A"


Todos recordamos as tristes histórias de corrupção na Anvisa, como autorizar o uso de venenos perigosos mediante propina. Todos sabemos que um organismo assim desmoralizado precisa passar não só por uma faxina, mas por uma completa reestruturação.

Mas não é o que acontece, e ela segue célere aprofundando sua presença nefasta na sociedade, enquanto não a disciplinam. Agora, imitando normas higienistas norte-americanas, pretende “classificar” os restaurantes pelo grau de higiene, mesmo após lhes terem sido concedidas as licenças de funcionamento.

Nova Iorque faz isso há quase 3 anos, classificando bares, restaurantes, boates, cafés e barracas fixas. Aqui, onde nem barracas podemos ter, lá vem os americanófilos com as letras A, B ou C que deverão ser afixadas ou divulgadas pela internet como indicador de qualidade higienica.

Convenhamos. A coisa é absurda sob todos os pontos de vista. Você jamais será contaminado por estafilococos ou estreptococos tipo “A”, “B” ou “C”. Do ponto de vista das contaminações por agentes desse tipo, ou há risco ou não há risco. Este o sentido da vigilância sanitária. O risco deve ter tolerância zero. E se o estabelecimento tem licença de funcionamento, supõe-se que o risco de contaminação é zero!

A norma nova-iorquina parece apontar para um padrão hospitalar de higiene, impondo-o como ideal. Do ponto de vista econômico, implica numa desvalorização de quem não está no top.

Não estou dizendo que, aqui, os caras da Anvisa vão vender classificação “A”. Não. Quem sou eu para generalizar a qualidade moral dos fiscais? Estou dizendo que é uma contradição que se introduz no sistema de licenciamento: afinal, por que se licencia estabelecimentos que não são “A”? 

Mas o mais impressionante é como a pelegagem sindical aprova qualquer medida do governo: Abrasel e ANR já estão aplaudindo antes da hora. Senhores proprietários de restaurantes: acordem! A vigilância sanitária não tem ombro.

21/01/2013

Plantas "daninhas": nada do que se come me é estranho


“Sou um homem: nada do que é humano me é estranho”, disse Terencio, o poeta romano. Nós poderíamos parodia-lo: nada do que se come me é estranho.

Mas a fronteira entre o comestível e o não-comestível é, obviamente, móvel. Culturalmente móvel, historicamente móvel. De sorte que todo movimento no sentido de amplia-la deve ser saudado com entusiasmo pelos pesquisadores da gastronomia. 

E há pelo menos dois tipos de ampliação: a ampliação “interna” e a “externa”. Digamos que a “interna” é quando ampliamos os limites do comestível tratando de produtos naturais que comíamos com restrições. As entranhas de animais, a casca das frutas, o cabelo do milho e assim por diante. A “externa” quando incorporamos produtos antes discriminados pela cultura, confinados no terreno do “incomível”. Um exemplo é a rúcula, que os italianos incorporaram à dieta não faz muito tempo.

Tecnicamente, o conceito de “planta daninha” corresponde a essa discriminação. Não que todas façam mal, mas ainda não descobrimos sua utilidade. Mas existem pessoas, como o jovem doutor Valdely Ferreira Kinupp, ou Harri Lorenzi, que batalham por descobrir a utilidade eventualmente existente de determinadas “ervas daninhas”.

Kinupp fez uma tese de doutorado, em 2007, identificando plantas alimentícias não-convencionais (o nome que especialistas dão às “ervas daninhas” aproveitáveis para a alimentação) na região metropolitana de Porto Alegre. Partindo de 1.500 espécies nativas, chegou a 69 espécies que poderiam muito bem estar em nossas mesas. Hoje, trabalha na Amazônia, identificando outras tantas espécies de valor nutricional e gustativo.

Para maior conhecimento, publicamos a seguir trechos selecionados de uma entrevista sua publicada há dois anos.

O que de especial te motivou a trabalhar com as plantas alimentícias não-convencionais?

Foi a questão econômica e de sustentabilidade, mas também o prazer de fazer um trabalho novo, praticamente inédito, da forma como foi feito. Pensando numa alternativa, desde a sobrevivência na selva, na lida do campo, mas também numa perspectiva de geração de renda, empregos, conservação da natureza, porque hoje a gente vive uma monotonia alimentar. As PANCs (plantas alimentícias não convencionais), e nossa biodiversidade como um todo, seja ornamental, medicinal, madeireira são, muitas vezes, negligenciadas. Especialmente as alimentícias aqui no Brasil - se a gente olhar a nossa mesa, no que existe de cardápio nos restaurantes, dos self-service ou nas gôndolas dos supermercados e nas feiras, praticamente tudo é exótico, pouco é local, com baixa importância regional, nacional e, muito menos, internacional (...).
Muitas vezes, nas saídas de coletas que realizamos periodicamente, sempre aparecem curiosos. Eu já aproveito para fazer uma educação informal, mostrando o que é comestível, e mesmo assim, alguns ainda pensam que sou uma pessoa que está passando necessidade, porque estou catando um frutinho qualquer ali no mato. Precisamos quebrar essa tabu. Sabendo que determinada planta é comestível, você não mais a verá como mato. É preciso aprender isso: tudo foi mato um dia, até as pessoas descobriraem que aquilo se poderia comer, com as plantas mudando de categoria e inaugurando um novo paradigma alimentar. Só existe preocupação da sociedade quando ocorrem secas drásticas e as pessoas ficam sem uma planta folhosa local para comerem e precisam trazer de outras regiões. 

Se, por exemplo, estivéssemos plantando bertalha (e.g., Anredera cordifolia, A. krapovickasii – Basellaceae), como hortaliça aqui no RS e não o alface, os agricultores não estariam passando tantos problemas, porque são plantas que toleram o período de estiagem e co-evoluíram neste ambiente. A bertália foi um dos carros-chefe na minha pesquisa, ou espinafre-gaúcho, como preferi registrar popularmente, que você pode comer as folhas, muito rica em zinco, ótimo para memória, uma planta perene, mas que possui outra boa vantagem: além das folhas como verdura, há as batatinhas áreas e também os tubérculos subterrâneos na pequena batata que ela produz que são legumes, com usos similares a batata-inglesa. Destes órgãos amiláceos foi descoberta uma substância nova, em 2007, de proteção para cavidade gástrica, que inibe a ação de tripisina [“Ancordin”]. Alguns estrangeiros queriam comprar cerca de duas toneladas de batata. Cadê o produtor? Não há cultivos racionais desta espécie no Brasil. 

E continuamos falando da nossa biodiversidade, mas comendo a biodiversidade dos outros continentes/países. Criamos vaca e galinha que não são nossas. Plantamos trigo, arroz, café, laranja, eucalipto e soja, e nada é do Brasil. Cadê a criação de anta, veado, mutum? Cadê o plantio de bertalha, ália, crem, jacaratiá... A domesticação do pêssego-do-mato? E tantas outras hortaliças e frutíferas silvestres com grande potencial agrícola e nutricional. Não existe. As pessoas valorizam tanto suas tradições em cada um dos nossos estados, falam bastante da biodiversidade, mas não a conhecem, e isso é riqueza abstrata. Se fala que a Amazônia vale trilhões. Vale nada. As pessoas estão passando fome lá. Muita gente vivendo precariamente, como aqui, na famosa Porto Alegre, com sua periferia cheia de pessoas comendo mal, sentindo frio ao dormir. Não adianta termos uma biodiversidade imensa na Região Metropolitana se não a comemos ou a utilizamos de forma sustentável para outros fins. Muito menos geramos divisas e empregos, porque ninguém planta. Nós somos xenófilos, gostamos do que é de fora, aceitamos de pronto. Meu intuito é fazer a extensão, a popularização, dessas plantas nativas e subsidiar outras áreas do conhecimento, não ficar uma ação isolada. Que a Agronomia possa estudar isso no aspecto fitotécnico e horticultural;, a Nutrição pesquisar a parte bromatológica;, a Química, a Bioquímica, a Farmácia com a parte toxicológica e fitoquímica. Ninguém pesquisa aquilo que não se conhece. Trazer à tona, resgatar e propor novas plantas para serem incorporadas na dieta humana conduz aos estudos transversais. E aí a importância, num trabalho básico desse como o nosso, de detalhar as plantas nativas. 

O mais importante disso o que é? 
Ponderar o uso e ter diversificação. Por isso a ciência é dinâmica. Todas as plantas têm seus prós e contras, seus modos de preparo adequados, períodos de consumo, com maior ou menor sensibilidade das pessoas. Mas nós não podemos blindar as plantas não-convencionais por acharem que são mais tóxicas que as comuns que você tem no dia-a-dia. Há carência de pesquisa, pois o comum é pesquisar só aquilo que está badalado: o morango ou tomate. E não se pesquisa nosso juá nativo, que tem tanto ou mais licopeno que o tomate, porque nem se conhece. Por isso a necessidade da transdisciplinaridade e de fazer essa passagem para o uso real e efetivo da nossa flora diversa. Nós não sabemos nem quantas espécies temos no Brasil ainda - 50 mil?, ficando restrito à Botânica? Não há consenso, nem uma listagem garantida. Há hipóteses, mas nem isso a gente sabe. Não só a biodiversidade vegetal, mas animal também, que é mais paradigmática e cheia de tabus, com legislação cada vez mais engessada. necessitando ser revista com urgência, para que a nossa fauna alimentícia possa e deva ser criada de forma ecologicamente correta (...).
Falo que trabalho com as plantas que existem por aqui no chão, em todo o lugar, que não são aproveitadas, mas que dá para comer, seja verdura ou frutíferas, condimentos e por aí vai. No entanto, uma área, infelizmente, carente de pesquisa e de editais de financiamento no Brasil. Nós temos uma biodiversidade muito grande, mas não a comemos.

Quem quiser ver Valdely Kinupp em ação pode assistir a alguns videos no youtube


18/01/2013

A crítica da gastronomia política I


Arquivo:
Desde 2003, quando o “New York Times” publicou um artigo sobre a derrocada da gastronomia francesa e o advento da “nueva nouvelle cuisine”, o mundo que consome este fetiche moderno que é a gastronomia mudou a direção do seu olhar para a Espanha.
Isto, obviamente, significou uma nova orientação nos negócios turísticos e alimentares. Um abalo forte nos pilares daquela atividade que, desde o império napoleônico, parecia alicerçada exclusivamente da França. Era o reconhecimento explícito, ainda que tardio, da multipolaridade da cultura gastronômica moderna.
O autor daquela matéria no “New York Times” foi Arthur Lubow, e ele reproduziu fielmente o que Rafael Garcia Santos vinha dizendo há anos.
Rafael é esse camarada baixinho que tenho diante de mim, atarracado, de seus 50 anos, não sei ao certo se loiro ou ruivo, falante, dono de uma risada sarcástica, envergando um tênis de verniz furta-cor. Bacharel em direito, nascido em Santader, província de Cantábria, Espanha, ele é o principal crítico gastronômico da Espanha e está a nos dizer que não acredita na crítica gastronômica.
Foi também estudante maoísta e participou dos primeiros movimentos estudantis contra a ditadura de Franco. Começou a fazer critica gastronômica quase por acaso, num jornal da esquerda na qual militava, só porque colecionava vinhos. Mas logo foi dispensado, pois constatou que se tratava de um assunto elitista. Na imprensa burguesa, também não encontrou paz.
Rafael Garcia Santos, que acha que a revolução se espraia por todos os domínios da cultura, inclusive a gastronomia, não é o tipo de pessoa diante do qual se fique indiferente.
Dono de um texto de qualidade invejável, ele não encarna qualquer espécie de neutralidade crítica e, assim, coleciona tanto inimigos como amigos. Mas ele consegue ver longe: foi talvez o primeiro a proclamar a genialidade e a revolução empreendida por Ferran Adrià –mesmo que isso tenha lhe custado o emprego de crítico, pois, ao eleger um catalão, os bascos não o perdoaram, segundo seu próprio relato. Isso há 20 anos.
“Fui o primeiro a afirmar que Adrià era o melhor cozinheiro do mundo; honra dividida com Michel Bras. E sou o único que se atreve a afirmar que Adrià é o melhor cozinheiro da história. Descobri também Berasategui, Quique Dacosta...”. E com a mesma desenvoltura é capaz de nos dizer que Bocuse não passa de um impostor (“Me diga uma só criação de Bocuse! A soupe elisé? Mas era preciso ser Paul Bocuse para fazê-la?”) ou que Gualtiero Marchesi é um dos melhores cozinheiros do planeta.
Opiniões seguras permitiram-lhe, nos últimos 20 anos, construir mais do que uma reputação de iracundo: é autor e diretor do guia “Lo Mejor de la Gastronomia”, o mais importante da Espanha, e organizador de famoso congresso anual em Donostia (San Sebastián), no país basco, que já entra em sua Xa. edição1.
Nada de mistificações! Rafael é o primeiro a concordar que Adrià faz uma culinária de desnaturação, isto é, cujas criações se afastam da naturalidade das coisas para se aproximar dos artefatos, que mais e mais dominam a indústria alimentar moderna. Essa diferença, aliás, está na base da divergência pública recente entre o chef Santi Santamaría e Ferran Adrià: um advogando a tradição, outro, a fantasia de fundamentos industriais.
Se cada época histórica gera os seus críticos, Rafael é expressão da nova gastronomia espanhola, que nasce logo após a queda do franquismo e se beneficia, ao mesmo tempo, das influências da nouvelle cuisine sobre a Espanha e dos investimentos pesados que o Estado espanhol passou a fazer para colocar em realce, em todos os campos da cultura, a riqueza e diversidade dos povos espanhóis que a ditadura simplesmente havia sufocado. Dai em diante a Espanha não seria mais apenas o país das paellas.
Rafael também insiste em outra especificidade espanhola: a cozinha de vanguarda não existiria se, na Espanha, se aplicasse, como na França, a jornada de trabalho de 35 horas, imposta pelas leis francesas. Os preços na Espanha também se tornariam astronômicos, levando de roldão a cozinha espanhola de vanguarda. Por trás daquele confronto que Lubow anunciou, havia então uma luta surda entre o mercado formal e o mercado informal de trabalho.
Assim, compreende-se que Garcia Santos não seja muito querido, mas não se compreende que haja atravessado o oceano para vir nos dizer que o poder da crítica é nenhum. Seu niilismo advém da convicção (e da experiência pessoal) de que é impossível ser independente e manter o espírito crítico em um jornal cujo único objetivo é ganhar dinheiro. No primeiro enfrentamento, a cabeça do crítico é posta a prêmio.
“Só acredito na critica organizada empresarialmente, isto é, não assalariada, que corre seus riscos por conta própria”, diz. Isso, porque os grupos jornalísticos querem que o crítico monte negócios que levem dinheiro a eles. “Montar, por exemplo, suplementos que se rentabilizem com a publicidade. Montar programas de rádio e televisão que dêem dinheiro. Não existe futuro para os assalariados na crítica gastronômica.”
É inegável a originalidade dessa postura, pois é contraditório que o capital se volte contra si próprio: afinal, se um jornal pode achar que perde dinheiro com a crítica contra a corrente, como pode alguém organizar-se como empresário de si próprio e ganhar o mesmo dinheiro que parecia irremediavelmente perdido?
De crítico gastronômico, Rafael tornou-se, talvez involuntariamente, um crítico do próprio jornalismo gastronômico. Ele acusa os jornais de praticarem descaradamente o amiguismo: “A manipulação tem seu maior fundamento no fato de que a maioria dos leitores nunca poderá comprovar o que o crítico afirma. Num nível restrito é mais difícil enganar, mas se aumenta o universo, as pessoas não podem conhecer quase nada. Quantos visitam, fora de São Paulo, 25 restaurantes gastronômicos num ano? Provavelmente não haja duas ou três mil pessoas no mundo capazes disso. Daí que se podem montar verdadeiras patranhas midiáticas, dar expressão mundial a um cozinheiro que não a tem.”
Assim, é fundamental que o leitor seja o crítico do crítico, pois quando um chef faz seu prato ele joga com a sua reputação e, quando um crítico o comenta, joga com o seu próprio prestígio.
Também os cozinheiros condicionam a crítica. Fazer crítica é caro, custa muito dinheiro viajar, indagar. Os jornais não estão dispostos a isso. As revistas de crítica são insolventes, como “GaultMillau” ou “Gambero Rosso”. A crítica exige um público, uma massa social, que financie a independência, que simplesmente não existe. Apenas alguns guias sobrevivem.
Eles falam de 5 mil restaurantes, por exemplo. “Você acredita que eles visitaram 5 mil estabelecimentos e pagaram 5 mil refeições? Por isso as pontuações sempre são altas”, afirma. Como no caso dos vinhos. “O grande crítico (Robert Parker? José Peñin?) escreve para os donos de bodegas, não para os apreciadores de vinhos, e suas pontuações começam em 90, entre 90 e 100. O negócio está em escrever para os bodegueiros.”
Assim, conclui, “é dificílimo para o crítico manter o equilíbrio entre o bom trato que está obrigado a dispensar ao cozinheiro e a credibilidade que deve ganhar com o leitor. Por isso há tão poucos bons críticos”.
Mas o pensamento crítico é o capital de Rafael, e ele não está disposto a contemporizar. “É preciso fazer uma Zara (cadeia de loja espanhola que populariza a vestimenta com “estilo”) da gastronomia, compreende?” Com isso quer dizer que a gastronomia, para fecundar a sociedade, precisa descer do pedestal, “deixar de oferecer cardápios seletos a 100 euros, para oferecer muito mais cardápios a 30 euros”.
Sem a crítica ao elitismo, não vê como prosseguirá a revolução gastronômica iniciada por um punhado de chefs talentosos de todos os recantos da Espanha. Os chefs ficarão a quilômetros de distância da população, discutindo técnicas, ingredientes, fazendo e falando o que queiram, sem qualquer eco na sociedade.
Garcia Santos não é ingênuo a ponto de achar que a gastronomia não seja um negócio voltado para o lucro –tanto é que, ele mesmo, é um empresário do setor, com seu guia e com seu congresso anual. E talvez sejam exatamente esses negócios, periféricos ao estrelato dos grandes chefs, o verdadeiro negócio... Enquanto jovens ingênuos, “covers” dos fogões, pensam em ficar ricos imitando Adrià e tantos outros. Quando diz que não se fica rico com gastronomia está atacando o fetiche em que a gastronomia se transformou.

O “new criticism” em gastronomia
Mas o trabalho crítico de Rafael Garcia Santos está longe de ser uma coleção de frases desconexas, de abordagens que se justifiquem pelo estranhamento que produzem. De forma consciente ou não, ele vem articulando ao longo dos anos um novo discurso crítico em gastronomia, à maneira do que foi o “new criticism” em literatura no início do século 20.
O “new criticism” rompeu com a idéia de que a obra literária só podia ser analisada sob o prisma de outra ciência, preferindo a análise imanente ou os aspectos estritamente literários da narrativa. Também deixou de lado a idéia de que a biografia do autor, assim como a sua intenção, eram chaves de intelecção da sua obra.
Para Rafael, de nada vale a tradição pela tradição, o filho que prossegue a culinária centenária da família. E também não se pode avaliar a justeza de um prato por realizar em maior ou menor grau os cânones da alta gastronomia, como foi no período pós-Escoffier até a nouvelle cuisine, que estabeleceu um novo cânone. Cada época tem o seu cânone, e é em função dele que a crítica se exerce como expediente que “arrasta” o fazer culinário para o campo do que efetivamente importa em termos de modernização do gosto e dos hábitos alimentares.
Assim, Rafael está convicto de que a obra gastronômica participa de seu tempo de uma maneira determinada: ou ela é inovadora, revolucionária, ou mera repetição do passado. E tudo deve ser analisado a partir do grau de ruptura que trás em si – a exemplo do que foi a nouvelle cuisine, firmando, por volta dos anos 1970, uma nova filosofia sobre o sentido do cozinhar, que orientou especialmente as obras de Guérard, Chapel, Troisgros, Bocuse, Senderens, Outhier, Vergé, e Haeberlin. A “atualização” daquela filosofia e o modo como ela influencia a moderna cozinha (espanhola, é claro) é assim apresentada por Rafael Garcia Santos2:
1 - A verdade em cozinha, como na arte, não existe: existem infinitas visões chamadas a enriquecer a cultura culinária.
2 - A única verdade é ser você mesmo, criar um estilo próprio com plenitude.
3 - O chef deve ser considerado pela imaginação e perfeição da sua obra, não por sua fonte de inspiração.
4 - Hoje como ontem é necessário reivindicar as matérias-primas nobres, sem que por isso se negue o laboratório culinário.
5 - Plasmar construções integrais e articular os elementos de um todo.
6 - Perseguir a expressão essencial; quanto maior a diferença que se marque com menos ingredientes ou componentes, ótimo!
7 - Colocar-se a naturalidade gustativa, táctil, olfativa, cromática... Como norma, preservar sabores, texturas, aromas e cores tal qual são.
8 - Há que se aprofundar o desenvolvimento de novas técnicas de cocção que mantenham plenamente a identidade dos ingredientes, acentuando a tendência a ressaltar as virtudes intrínsecas dos mesmos: a integridade, os seus sucos.
9 - Recuperar os molhos e não subordiná-los à estética. É preciso criar novos conceitos, com sabores mais nítidos, mais complexos, inéditos, assim como trazer corpos e texturas desconhecidas. Evitar os arco-íris palatais.
10 - Potencializar o caráter sensorial fazendo intervirem os múltiplos sentidos no desfrute de cada prato.
11 - É preciso conseguir que "o comensal se levante da mesa como se não houvesse comido".
12 - Há que se assumir a história, questioná-la e questionar-se sempre.
Esta “filosofia” atualizada, essa “tábua da lei” que é um cânone contra qualquer outro cânone, é a chave para se entender a crítica de Rafael Garcia Santos e seu caráter partidário: quem não segue este cânone é contra ele, inimigo da revolução gastronômica e, portanto, um alvo a ser combatido.
Um segundo critério é o que o cozinheiro pretende fazer, o estilo que busca construir, a sua “filosofia pessoal” conforme declarada. É por ela que, dentro da corrente revolucionária, poderá se diferenciar, ser assimilado como um promotor da transformação em curso. Por fim, sua perícia técnica, sua criatividade e inovação pontuais completarão os parâmetros para julgamento da sua gastronomia.
Assim, a força metafísica da revolução em curso irmana, numa só missão, crítico e criticado, ao passo que a própria crítica mergulha na história como promotora do futuro. Nada de neutralidade axiológica! O crítico é um moralizador da história, parteiro da revolução, tendo deixado para trás aquele ponto de vista externo, pretensamente neutro, de que se nutrem os jornais que não querem criar problemas para si a partir de opiniões extremadas ou divergentes.
O crítico é quem aposta e se arrisca, descendo ao chão da história para travar os combates em curso; não o observador do vôo do pássaro de Minerva ao entardecer. Dessa perspectiva, sequer se pode dizer que seja um traidor do leitor, a quem os jornais pensam melhor servir oferecendo uma descrição neutra: “O leitor deve analisar o nível de sintonia que tem com o crítico. Sintonia que pode ser maior ou menor e que é determinada por vários fatores... Cada pessoa é um universo. Um mundo que pode coincidir mais ou menos com um crítico determinado. A mim me fascina a cozinha de vanguarda, se a você não agrada não tenho porque ser o seu crítico favorito”.
Mas uma coisa é certa: não se pode compreender Adrià sem Rafael, nem Rafael sem Adrià. São como uma só pessoa em planos distintos. Como foram, no passado, a culinária de Escoffier e a crítica do gastrônomo que se assinava Curnonsky.
Numa época de tanta mornidão crítica, em qualquer domínio da cultura, não deixa de ser estimulante topar com um baixinho invocado que veio de longe, nos chamando para a briga, bailando em seu tênis furta-cor.

Publicado em 15/6/2008 na Revista eletrônica Trópico e reproduzida em Controvérsia

17/01/2013

Quae sera tamen gastronomia!


Bem fraquinho o Comida de ontem. Já o Paladar é salvo pela excelente capa, onde Luiz Horta dá o roteiro para se atravessar bem - acumulando vantagens - a atual estação de bota-foras nas importadoras de vinho. Dicas de como comprar, evitando roubadas, e o que comprar. 

Mas uma matéria em especial do Comida vale ler e comentar: “Minas Gerais representa o Brasil no Madrid Fusión”, assinada por Josimar Melo.

A palavra “representar” significa, obviamente, estar sob os holofotes. Ninguém deu mandato a Minas para “representar” outros regionalismos. Nem há nada similar no histórico do Madrid FusiónTrata-se de uma encenação. Mas em vésperas de Copa não é difícil aquilatar a importância econômica desse destaque de marketing. Josimar mostra como a “costura” desse destaque teve o impulso decisivo da Embratur e do próprio governo de Minas Gerais: “entre outras iniciativas, trouxe os organizadores do evento para o festival de Tiradentes, em agosto, e os levou para conhecer a cozinha do Estado. O governo dispôs-se a comprar a cota de patrocínio que garantia o espaço e o destaque desejados”. 

A Embratur acordou para a importância do mundo dos negócios culinários à sombra do Estado desde o último Festival Ver-o-peso, quando lá aportou uma comitiva do órgão na condição de observadores. De lá para cá, se pôs em movimento e começou a abrir a burra.

Em conjunto, governos estadual e federal estão bancando uma revoada de cerca de 80 pessoas a Madrid. Para não ficar uma coisa escancaradamente “mineira”, sofrer críticas aqui dentro. a Embratur vai servir no seu estande amostras de “cozinhas do Brasil”, e leva também chefs de outras regiões. Alex Atala apresentará “A cozinha pré-Portugal”. Irão também Mônica Rangel, Cesar Santos, Flávia Quaresma, Carlos Ribeiro e Tereza Paim.



O difícil é entender  como uma cozinha, que prima e se orgulha da tradição, é “homenageada” num evento cujo slogan é “A criatividade continua” (suponho que queira dizer “continua mesmo sem Adrià”). Mas a hora da estrela sempre chega, e o importante é que fica clara, pela matéria de Josimar, a construção politico-econômica da “cozinha mineira” em Madrid, assim como tantas cozinhas mundiais. A cozinha coreana, por exemplo, vem buscando destaque mundial impulsionada pelo Estado e foi igualmente “homenageada” ano passado no Madrid Fusión. Portanto, foi ao “modelo coreano” que Minas Gerais aderiu com tudo.

O evento reforça a percepção de que a “cozinha mineira” é uma construção ideológica que, como já mostrou a socióloga Monica Abdala, começou lá nos anos 1970. Tem por base o fracionamento político da unidade que existiu no Brasil colonial entre São Paulo e Minas, ocorrido em 1720. Mas a rigor não há duas “histórias” tão distintas, culinariamente falando. Poderíamos dizer que uma só cozinha abarca Minas, São Paulo, parte do Centro-Oeste e parte da região Sul. Mas, como “negócio”, Minas vem dando um baile nos outros estados desde os anos 1970. É inegável. A coreanização do seu marketing internacional é mais um passo nessa direção.

Sem dúvida o Madrid Fusión foi um evento que apresentava as vanguardas mundiais, referidas especialmente à linha de investigação inaugurada por Adrià. Dai seu prestígio e sua importância histórica. Não é mais isso. E como não poderia deixar de ser, fala mais alto a força da grana, os interesses nacionais e regionais, os leilões de patrocínio, etc. 

Pessoalmente, sou mais interessado nas investigações gastronômicas que se fazem no Brasil, independentemente de regionalismos. Investigações que destacaram Atala e hoje destacam valores, como Helena Rizzo, Thiago Castanho, Roberta Sudbrack e tantos outros. Mas, afinal, nem tudo no mundo culinário é gastronomia. Saravá!

13/01/2013

Sim, de novo os sorvetes


É natural, pois com tanto calor o tema obrigatório é refrescar. Vejinha deu capa para as novas sorveterias da cidade de São Paulo. A revista sãopaulo, da Folha dominical, chama atenção para os sorveteiros de rua em reportagem de Bruna Haddad.

Mas esse assunto, que já tratamos aqui de pelo menos dois ângulos diferentes, é quase inesgotável. E o que chama atenção é uma mudança de padrão da produção de sorvetes sem que a imprensa consiga compreender exatamente o que mudou, jogando mais na desinformação do que no esclarecimento do público. 

Enfim, os jornais, revistas e blogs participam da ignorância geral, ajudando a impulsionar a implantação do novo padrão de sorvetes industriais finalizados em lojas de rua. Em vez de ouvirem engenheiros de alimentos, preferem ouvir os próprios interessados - donos dos estabelecimentos - repassando o argumento de vendas como se fossem explicações satisfatórias.

No que tange aos sorvetes de rua, na forma picolé, a matéria de sãopaulo é suficientemente esclarecedora. Cita vendedores de sorvetes Nestlé e Garoto de uma distribuidora “autorizada” (eles vendem os famosos "sorvetes brasileiros"; outros, perseguidos inexoravelmente pelos fiscais da Prefeitura que, em geral, destroem as mercadorias e, às vezes, danificam os próprios carrinhos. Estima-se que são 138 mil ambulantes em São Paulo, que vendem de tudo, sendo que apenas 5% possuiriam licença de comércio ou TPU (termo de permissão de uso). Desde 2007 nenhum  novo TPU foi emitido.



Deixando de lado os picolés, a grande dificuldade advém do fato de não ser claro o novo papel da sorveteria como elo final de uma cadeia industrial. Como o produto industrial é finalizado na loja, sentem-se os donos de sorveteria à vontade para chamar o produto de “artesanal”. Aliás, os próprios pré-mix que são a base desses sorvetes trazem estampados nos pacotes a evocação “artesanal”. Os italianos, que desenvolveram essa indústria de excelentes máquinas e pré-mix, são também de competência indiscutível em marketing.

Mas, qual a novidade? É sem dúvida o chamado “estilo italiano” ou, como diz a Vejinha o “segmento dos gelatos italianos, conhecidos pela textura ultracremosa”. Mas, de onde vem essa cremosidade, ou como ela é produzida?

Ela é fruto de espessantes e estabilizantes que compõem a “base branca”, e também das máquinas capazes de insuflar, na mistura, uma quantidade de ar maior do que a que se consegue com as máquinas antigas. Então, comparando o padrão anterior à nova onda, o que houve foi inovação técnica industrial.

A expansão da Bacio di Latte, da rede argentina Freddo, Diletto, Stuzzi e tantas outras se deve a esse up grade técnico. É claro que há “bases brancas” de várias qualidades, e elas utilizam as melhores bases importadas da Itália e Argentina. Mas estão longe de serem “artesanais” no antigo sentido da palavra - quando designava um sorvete todo feito no estabelecimento, segundo técnicas tradicionais, fosse ele “sorbet” ou “glace”, conforme as categorias consagradas pela pâtisserie.

Esse fato tecnológico, industrial, recebe na imprensa a cobertura de uma camada de adjetivos que o esconde de modo eficaz. À palavra “artesanal” se somam informações como “as massas são feitas diariamente com leite integral fresco, frutas bem selecionadas e nenhum conservante artificial”; “de tão cremosos, nem dá para moldar os sorvetes no formato de bola”; “sorvete sempre foi uma sobremesa artesanal”; a preocupação com a qualidade da matéria-prima fica evidente: só frutas naturais e leite fresco são permitidos nas receitas, nada de gordura hidrogenada ou misturas prontas”.

Qualquer pessoa pode se dar conta de que sorvete deve ser feito todo dia, e não tem sentido que o leite ou creme de leite utilizados não sejam frescos, ou que as frutas sejam mal selecionadas. Não é disso que se trata. Acontece que esses cuidados, por si só, não produziriam esse “novo sorvete”. Senão ele já teria surgido.

O fato é que uma nova moda de gosto que consagra os pré-mix da base branca surgiu entre o público, e o marketing dessas sorveterias a aproveitam ao máximo. A ponto de a sempre “insuspeita” Kibon também colocar o seu bloco na rua, abrindo uma loja pop-up da Magnum, linha premium da marca, que fica nos Jardins até 10 de fevereiro. Ela também quer se contaminar desse espírito, que há de trazer vantagens comerciais para a linha normalmente vendida em supermercados.

Mas as modas são passageiras. Não será surpresa se os sorvetes “artesanais ao velho estilo”, clássicos digamos, voltarem na onda do elogio dos ingredientes que toma conta da gastronomia. Coisas nunca antes vistas, frutas produzidas de modo “sustentável”, por cooperativas de produtores, surgirão no horizonte. O que parecia tradicional, vira ultra-moderno. 

Também a tecnologia PacoJet e Thermomix dão bons resultados no preparo de massas só de frutas, sem qualquer aditivo químico, necessário para os “artesanais italianos”. Enfim, há espaço para tudo. Só é bom manter o consumidor bem informado, sem mistificações. É sempre uma questão de tempo e de educação do gosto. Afinal, Berthillon está sólido, em Paris, há meio século - cidade onde também não faltam esses “cremosos italianos” que agora se propagam aqui como cogumelos após a chuva.

10/01/2013

Leitor de 5ª: entre futorologia e quinquilharias


Comida faz futorologia para 2013: Forbes e Josimar investem em desvendar o futuro. Um misto de “tendências” e desejos. Enquanto isso, Paladar faz algodão doce.

Forbes toma Alberto Landgraf como exemplo ou modelo do que virá. Mas apura com Atala  que o rapaz talentoso, de futuro, “ainda não está em seu melhor momento. Ele ainda vai evoluir muito”. Gostaria de conhecer detalhes desse raciocínio.

Ela também escreve sobre Trancoso (onde vai “todos os anos”). E constata que nada de novo se come por lá que valha a menção gourmet. Talvez a palavra “férias” se aplique também ao comer.

Josimar, põe de novo à mostra aquele raciocínio ferino que já deu “bastas” a muitas coisas. Desta vez, deseja que em 2013 nos livremos do excesso de “baixa temperatura” e dos pseudo fornos a lenha. No mesmo caderno, resenha o Jacarandá, de Ana Massochi. De fato, um lugar agradável, bem bolado. Luiz Américo resenha o Samosa & Company, um indiano no Bosque da Saúde. Como ele mesmo diz, é uma novidade interessante.

Alexandra Corvo nos fala dos vinhos “salgadinhos”. Bom tema, apesar de uma frase meio tautológica (“o que pode conferir certa salinidade é a presença, em maior ou menor quantidade, de sais mineirais”). Luiz Horta vai mais longe, à Russia, apresentando vinhos que dificilmente provaremos nessa nossa existência sobre a Terra.

Neide Rigo nos fala das virtudes da manga verde. Bem mais interessante do que o tema da capa, o tal do algodão doce que Paladar sugere que você faça em casa e adverte que provavelmente não dará certo.

Meu professor de literatura no colegial sempre dizia: a pergunta mais importante a fazer, sempre, é sobre o porque das coisas. Comida noticia que o Tordesilhas vai sair do endereço que ocupa por mais de uma década e vai se ajardinar. Por que? Aluguel alto? Vão fazer mais um prédio? O jornal não perguntou...

Texto impagável de Nina Horta sobre essa mania que temos de colecionar bugigangas de cozinha. Ano novo, para o lixo com a quinquilharia!!

04/01/2013

Receita de como fazer sorvete artesanal italiano

Se estiver em seus planos fazer sorvetes artesanais italianos, desses que, de tão apreciados, fazem fila na porta das sorveterias, siga a receita abaixo.

1. Passo 1: faça a base branca. Adquira nas lojas do ramo o pré-mix conhecido como "base branca", à qual basta acrescentar água, leite ou creme de leite, em proporções que personalizem o seu produto.




2. Passo 2: acrescente o sabor de preferência da sua clientela, à venda nas mesmas casas do ramo. São sabores variados: tiramisù, frutas vermelhas, o famoso pistachio di Bronte, banana, melone, etc etc.







Passo 3: faça um bom marketing, se fixando especialmente na palavra "artigianale" que aparece na embalagem do mix de base, a "base branca".

Claro, você precisará ter uma boa máquina. Mas isso é um detalhe.

Desse modo você terá sucesso garantido, filas se formarão à porta e o elogio da sua destreza "artesanal" ganhará fama e reconhecimento na imprensa.