08/03/2010

8 de março: há um estilo feminino na gastronomia?

Se tomarmos a literatura como paradigma, encontraremos muitos estudos sobre o discurso feminino nas letras. Talvez seja conseqüência do feminismo e sua capacidade em despertar a sociedade para esse aspecto diferenciado. Há claramente uma poesia feminina, ou uma “voz feminina” na poesia. Há também homens que se expressam através de um eu poético feminino, como Chico Buarque – e só é possível dizer isso porque um “eu feminino” foi desenhado e é aceito como tal. Mas, e na gastronomia?

Às vezes me dou conta que, na cozinha moderna, faz parte das contradições do presente a relação invertida entre os gêneros. Historicamente o cozinhar esteve, na divisão do trabalho, adstrito à mulher; modernamente, na gastronomia, predomina o masculino. Houve uma expropriação de domínio, mas o que resulta disso em termos de marcas sensíveis do trabalho nos produtos?

As mulheres cozinham bastante; elas têm seu lugar na força de trabalho, além da cozinha doméstica. Não se pode dizer que estejam ausentes dos meios de comunicação como quem “ensina a cozinhar”. Há muitos livros de receita, bons e maus, que são obras femininas. “Dona Benta” é uma ficção feminina; Ofélia, uma pedagoga e organizadora de receitas e assim por diante. O cinema também soube construir bons personagens femininos ligados à sedução da cozinha.

O que espanta é que o discurso sobre a excelência, sobre o estilo culinário, sobre a criatividade, está centrado na figura do chef que é, invariavelmente, masculino. E o contra-discurso opressor nesse domínio é: trabalho de cozinha é coisa árdua, não é para mulheres. E as mulheres, às vezes reforçando esse preconceito, se expressam como homens para poderem defender o seu lugar nessa arena pública. Exceções: a “banqueteira” ou a “cozinheira étnica”.

Mas vejamos o caso dos gestos, que Marcel Mauss dizia ser fundamental inventariar para conhecermos como a cultura utiliza o corpo humano. Os gestos culinários codificados desde Escoffier são masculinos: desossar, picar, refogar, assar e assim por diante. Os gestos femininos que a codificação culinária mantêm parecem estar apenas “nas pontas” do processo: na higienização e na finalização ou acabamento; ou, ainda, na esfera “lateral” que é a pâtisserie. (Interessante como nessa área o poduto do trabalho está marcado pelo espírito de doação, e não raro assume a forma de um cadeau, um don ou presente).

Nos domínios da sociologia, da antropologia muito se fala do “cozinhar” como prática feminina, mas é uma mera reafirmação do padrão histórico. Não encontro nada que indique algo que vá além do “amor de mãe” da criadora “no lar” e outros lugares comuns. Se olharmos uma biblioteca com livros de ou sobre chefs de destaque mundial, a ausência das mulheres é gritante. Não existe a mulher sendo projetada como a criadora do “novo culinário” que seja distinto da criatividade masculina.

A dinastia gastronômica, desde Carème, é patrilinear. Quando ela chega em Escoffier, surge a cozinha como linha de produção segundo o modelo fabril ou “fordista”. Os gestos codificados têm em vista a produção “em cadeia”, e mesmo as receitas foram adaptadas a uma necessidade desse tipo. O próprio Escoffier diz que adaptou as receitas ao “ritmo moderno”, à rapidez que o homem de negócios requer. Esse modelo é masculino, tendo deixado para trás o artesanato que era de inspiração feminina. Não é à toa que, vira e mexe, os cozinheiros falam na “volta à cozinha das avós”, isto é, à cozinha feminina como inspiração.

Mas, em termos concretos: o que haveria de comum, por exemplo, nas cozinhas de Helena Rizzo e Roberta Sudbrack que as diferenciaria de Alex Atala e Claude Troisgros? O que é o estilo feminino reconhecível em gastronomia? Especular sobre isso é buscar uma linha divisória que seja capaz de se imprimir nos frutos do trabalho culinário. Não é um absurdo. Não se abusa hoje da palavra “identidade”? Por que não se discursa sobre a identidade feminina na gastronomia?

Ou será que a cozinha, por ser historicamente tão feminina, absorveu os homens de modo que eles é que não conseguem ter um estilo “masculino”, tendo se apropriado de um “feminino absoluto” como se fosse sempre seu?

Mas lembro de uma receita antiga, de arroz com caldo de carne, de Rupherto de Nola (1525), onde esse cozinheiro sugere variações na receita e, observa: “quando se coze com caldo de carne não é necessário colocar nenhum tipo de leite, mas tudo depende do apetite dos homens que a comem”.

Leio esse trecho e fico pensando que “fazer para o outro” – essa doação através de um intermediário material como a comida - é a marca feminina do cozinhar, para o bem e para o mal da cultura gastronômica.

Recuperar a “história do fazer para o outro”, suas formas e motivações, parece ser o único caminho para restaurar os contornos do feminino na cozinha. Não o feminino subsumido na cultura masculina; mas na singularidade do seu estilo.

2 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Excelente artigo, Dória, dos melhores. Faço uma hipótese que espero ajude na reflexão - a mulher/mãe/esposa trabalha tradicionalmente a cópia, a higiene, a reprodução do trabalho do homem, transformando o seu ganho em força-trabalho. Está umbilicalmente ligada à nutrição. As portas que levam o homem à cozinha são as da nutrição satisfeita, cozinha como diversificação, eleição gastronômica de ingredientes e diversificação. Evidentemente, a mulher vem assumindo este segundo papel, mas suas raízes na cozinha da família estão presentes mesmo quando se põe no papel de artífice da cozinha que nasceu na outra vertente da culinária - a corte.

Janine Collaço disse...

Dória,
Em minha tese de doutorado tracei o papel das mulheres imigrantes italianas e o processo pelo qual elas 'desapareceram' da cozinha de restaurantes e acabam ficando restritas ao universo doméstico, embora em muitos casos, sejam elas ainda as detentoras da palavra final de pratos servidos em restaurantes de cozinha italiana cuja administração ainda esteja com a mesma família.
mas é isso, o mundo não reservou criatividade e reconhecimento para as mulheres na cozinha, embora elas sejam mais de 60% da força de trabalho em restaurantes, segundo um estudo do IPEA realizado recentemente. Mas seu universo é o dos restaurantes de comida que atende necessidades diárias (quilos, self-service e afins). Achei suas observações bem pontuadas.
Abraços
Janine

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