16/05/2010

As noivas não gostam muito de comer

Sou um leitor chato. Passei o dia lendo as revistas de gastronomia e conclui: maio não é um grande mês. É o mês das noivas e, nessa fase, elas querem mesmo é entrar nos vestidos de número menor do que o que normalmente usam, em grande desestímulo ao prazer de comer. Assim, se eu fosse, além de chato, um sujeito muito rigoroso, diria que em maio é preciso comprar três revistas para ler uma só por inteiro, isto é, catando umas coisas aqui e outras ali.

Numa vista d´olhos geral, fica aquele gosto caseiro que as revistas de gastronomia vêm transmitindo, talvez por economia. Dias Lopes assina quatro matérias na Gosto; Beatriz Marques, quatro na Menu. Só a Prazeres parece preocupada em mostrar diversidade de opiniões. Essa revista se destaca pelas boas cooptações que faz. Mas serem mais ou menos monográficas não implica necessariamente em variações de qualidade.

Excelente matéria sobre o vongole (Gosto); e excelentes matérias de Beatriz Marques: “Doçura nativa”, “Mar verde” – sobre mel nativo e sobre Jaen, na Espanha (Menu). Beatriz vem se destacando ao escrever sobre ingredientes e desenvolvendo um método de se aproximar deles. Os tributos a Alexandro Robaina (Prazeres da Mesa) e ao Russo (Gosto) são justíssimos. Boa também a matéria de Constance Escobar sobre as filiais cariocas de casas consagradas, na Prazeres.

Essas matérias dão a sensação que tem gente que vai atrás das coisas, vive e narra: ou que, mesmo sem ir longe, é capaz de nos chamar a atenção para fatos novos do mundo que contam para a gastronomia. Mais umas notas esparsas e interessantes aqui e ali, mas depois de se ler essa revista composta de três revistas, vai ficando mais difícil satisfazer a curiosidade. Parece que o resto é o resto.

Me explico. O que me move é a curiosidade, descobrir coisas novas ou ângulos novos de análise de coisas que já conheço. Por isso mesmo não agüento ler mais nada sobre o Ponto Chic e o seu Bauru, como essa 200ª matéria (Gosto). Você já deu uma busca na net para “ponto chic” ou “sanduíche Bauru”? Então. E tem as matérias oportunistas (ou “de oportunidade”) como a o mês das noivas (Menu), o cardápio de Alice no país da maravilhas (argh!) na Gosto; a copa do mundo que se aproxima, etc. Parece que a gastronomia não tem uma dinâmica própria, vive do parasitismo temático.

A Menu faz o seu testdrive com o “bem-casado”. Analisa 10 marcas. Mas a idéia de “isenção” é de deixar qualquer noiva desacorçoada. Qual comprar? A revista não dá a menor pista. A isenção como desinformação.

Os pratos dos chefs de países que venceram a copa não têm pé nem cabeça. Dá-lhe África do Sul (e os vinhos de lá? Salva a cara a coluna do Carlos Cabral na Prazeres...)! Acabaremos tendo Juca Kfouri como colunista de gastronomia nesse ano da graça de 2010, quiçá ao lado do também corintiano Washington Olivetto.

E quando paramos de deambular por tanta página colorida, o que chama a atenção nas revistas de maio é a liberdade de designação das coisas de comer. Não que sejamos nominalistas, mas é sempre bom ver cada coisa no seu lugar, até para refletir sobre suas transformações.

O Larousse Gastronomique tem uma definição de ragout que supõe sempre a carne (qualquer, inclusive de ave ou peixe) ou legumes, cortados em pedaços de tamanho médio, cozidos em caldo aromatizado com ervas. É uma tradição que vem desde meados do século XVII, sendo que o ragout se bifurcou, com o tempo, em ragout branco e marron.

Dias Lopes, na matéria de capa da Gosto sobre o ragu, vai buscar sua vertente italiana e encontra a enciclopédia Reader´s Digest para legitimar a idéia de que o molho a bolonhesa que conhecemos pertence à família dos ragus, que Dias ainda deriva por região da Itália. Assim, de repente, a Itália parece a terra do ragu. É uma tese bastante discutível. Os italianos chamam mesmo de ragu vários molhos de carne moída, mas devemos acompanhar essa vulgata e abrir mão da caracterização precisa do que seja um ragu? Me parece que não há qualquer ganho nisso.

O mesmo acontece com o parmentier de vitela que Menu apresenta. A receita com esse nome, encontrada na Larousse Gastronomique, não leva cenoura, salsão, alho-porró ou a profusão de ervas que a revista trás. Mas o nome “parmentier” não é neutro em gastronomia, e fica a nos faltar uma explicação para essa dilatação de sentido que a revista estabelece, especialmente porque existe um “clássico” que é Cotes de veau en casserole à la Parmentier com a qual a receita de Menu nada tem a ver.

Ainda no terreno das designações, é louvável que Menu se proponha a fazer um glossário dos termos técnicos utilizados na edição. Ajudaria a introduzir os neófitos no assunto. Mas precisa ser mais rigorosa nas definições. Por exemplo: “azeite de pepita de uva”, é explicado como "óleo extraído de semente de uva" mas bastaria ser traduzido por completo do espanhol para o português (e não apenas aceite por azeite...). O leitor não é um néscio. Iquiriba, semente “muito usada para aromatizar caldas”. Digamos que esse uso não é popular, nem freqüente. A iquiriba é normalmente utilizada para aromatizar cachaça apenas. Outros usos experimentais são recentíssimos e restritos à pesquisa de vanguarda. Na definição imprecisa perde-se o movimento de deslocamento do ingrediente da culinária popular para a gastronomia “erudita”.

Mas, como sou implicante, o que me chateia mesmo é quando se borram as fronteiras entre o marketing, a publicidade, e a política editorial. Mês passado chamei a atenção para a matéria de capa sobre tiramissu na Gosto e o anúncio do Empório Ravióli na mesma edição. Não é que nesse número a imagem do tiramissu aparece já incorporada ao anuncio do Empório Ravióli? Infelizmente, eu tinha razão. E, agora, o movimento é do Vento Haragano. Uma matéria sobre os bravos empresários que são os donos e um anúncio do próprio restaurante, lá atrás, na página 75. Merchandising da pior espécie. Será que só são interessantes os empresários que anunciam?

Há também as matérias sobre os que não anunciaram. Os gêmeos Javier e Sérgio Torres, do Eñe (Gosto). Javier se deixou encantar pela mandioquinha, do mesmo modo que Laurent, décadas atrás. Que coisa esse poder da mandioquinha, não? Mas o que me aguça a curiosidade sobre eles é como tocam dois restaurantes “de longe”. Na ausência, diz a revista, quem toca a cozinha é Flavio Miyamura. Creio que este é o verdadeiro personagem a merecer um perfil nessas revistas.

Menu vai às compras como os meninos do Dois Cozinha Contemporânea, no Mercado da Lapa. Certamente porque o Mercado Central se tornou uma Disney culinária, restando-nos apenas a Lapa. Mas onde eles compram exatamente, em que Box? Fica faltando...

Maraacuthai (Gosto), o restaurante daquela mocinha de 21 anos que já se acha muito experiente, deixa na boca a sensação de lagostin caramelado que ela acha “surpreendente”. É mesmo, Deus me livre... O mais? Vinhos, vinhos, vinhos e vinhos....Mas junho vem ai e a esperança nunca morre.

10 comentários:

Luciana Betenson disse...

Dória, chamou minha atenção o fato de você não mencionar a revista Gula na sua matéria. Mês passado, saiu a Gula edição especial sobre vinhos e fiquei intrigada com algumas escolhas da revista. Em uma matéria na qual um dos critérios era relação preço-qualidade, a revista colocava, "em pé de igualdade" entre vinhos de R$ 350 para cima, um Vega Scilia Unico e um Almaviva com um vinho da Miolo. Nada contra a empresa, admiro muito a seriedade e o professionalismo da Miolo, mas a escolha claramente não atendia o critério. Também me incomoda esta indefinição entre as fronteiras do marketing e da política editorial. As revistas de gastronomia podiam seguir o exemplo da Viagem&Turismo, que mesmo falhando algumas vezes, procura estabelecer esta linha divisória.
Abraço,
Luciana

e-BocaLivre disse...

Luciana, tirante os colunistas que comentam vinho, as matérias editoriais me dão a impressão de que são catálogos de venda apenas. Há muito perderam a noção da separação entre jornalismo e marketing. Há quem diga que nem todos os colunistas se salvam. Prefiro não considerar essas partes das revistas de gastronomia.

limongigasparini@gmail.com disse...

Que pé que é esse mundo da gastronomia!

Por um lado, uma legião de chefs e cozinheiros que, metidos a antenados, servem gororobas, porções famélicas ou pratos sem pé nem cabeça a troco de preços escorchantes.

E agora, por outro, essas críticas acadêmicas e conceituais. Soa meio coisa de elite terceiro-mundista - para quem não sabe, nos ótimos restaurantes franceses e italianos sinceros e não estrelados, come-se bem o que o dono sugere, sem divagações teóricas totalmente mal situadas.

Consultar a enciclopédia para conferir a correição do nome do prato? Ah vá!!!!!

Sou também um leitor muito chato.

e-BocaLivre disse...

Caio, não se trata de "nome" de um prato. Mas de uma designação que permita saber do que se está falando. Um besouro, por voar, não é um pássaro, embora você possa chamá-lo poeticamente de pássaro...

Gastronomia e afins disse...

Dória,
algumas vezes leio algumas destas revistas e também alguns sítios. Concordo com voce em relação aos nomes. Os nomes são a nominação de um conceito, de uma técnica, de um patrimônio até.
Um Chef que se diz criativo na elaboração de um novo prato, com combinações ou técnicas diferentes, acho eu, deveria nominá-lo.
Mas, creio, que concordando com a outra parte do seu texto, é uma questão de mercadologia. Um prato novo, com um nome desconhecido, de um Chef não tão famoso, talvez não cole. Ou será que pega?
Não sou dono de revista, mas creio que o público não seja tão fiel a elas, talvez a tiragem não seja tão grande, talvez por isso, o patrocinador anunciante seja importante para manter a revista, que por sinal tem alguma qualidade gráfica. Talvez o corpo editorial se perca e acabe fazendo propaganda também dentro das análises e de receitas....
Acho, que como tudo o mais, faltam referências para o leitor, mais publicações, mais análises imparciais (dentro do possível). Como a que fazes. Curiosidade só não basta.
Saudações,
Estevão

Food and Photos disse...

Dória,

É importante ressaltar o trabalho pífio e pouco criativo dos mídias das grandes agências de publicidade, que só programam para seus clientes, a já conhecida mídia obrigatória, deixando no esquecimento as publicações segmentadas.
À elas cabe a difícil tarefa de ir atrás dos pequenos anunciantes, praticando preços de veiculação, que tornam quase inviáveis sua sobrevivência.
Mas isso não as isenta de terem uma postura ética, e transparente.
Forte abraço,

Mandacaru

e-BocaLivre disse...

Mandacaru,acho que a "fase heróica" dessas revistas já passou. No ultimo ano o segmento cresceu, em tiragem, mais de 30%. Novos títulos estão sendo preparados para lançamento. De verdade, tornaram-se caça-niqueis ligados à idustria do vinho. Só vendo em detalhe os balanços das empresas para mudar de impressão.
Abraços

Quentin Geenen de Saint Maur disse...

Cher Carlos,
Acho que vc acertou em cheio o perigo que a Gastronomia (todos os envolvidos) vai ter que enfrentar daqui para frente.
Gostei imenso da sua levantada de bola.
Não precisamos voltar para a avaliação em notas, vamos inventar, crear e testar novos metodos de apreciação mais sensiveis.
Gastronomicalement,
Quentin Geenen de Saint Maur

e-BocaLivre disse...

Quentin,
acho que o modelo convencional de revistas de gastronomia praticado no Brasil está mesmo deixando a desejar. Não que não haja alternativas, mas faltam razões objetivas para mudar. Por isso é necessário cobrar além do que elas entregam.
Abraços

Unknown disse...

Caro Carlos.
Aprecio a gastronomia e você citou alguns pontos interessantes quanto às revistas. Mas convenhamos que conseguir "ibope" para um blog através de críticas sem fundamento e sem comprovação é de muito mal gosto.
Acho que você precisa estudar um pouco mais o mundo gastronômico antes de falar de editores e revistas tão conceituadas no mercado.

Atenciosamente,

Adélia Rodrigues

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