10/05/2010

Caminhos da construção da brasilidade - II

De um ponto de vista metropolitano (se assim podemos chamar São Paulo), o Brasil é longe daqui. Não participamos intensamente de nenhuma grande tradição que possa ser chamada de “brasileira”. Por isso há várias dificuldades na aproximação ao país comestível. É difícil saber o que é “original”, por exemplo. Mas há que tentar, e os pesquisadores em geral escolhem um dentre três caminhos: técnicas, receitas e ingredientes.

As técnicas culinárias se difundiram pelo mundo, perdendo a capacidade de, sozinhas, diferenciarem uma culinária das demais. A sua vulgarização e estabilização no bojo das várias culinárias produziu uma homogeneidade que tende à monotonia. Alguns pesquisadores, para contornar essa situação, acreditam descobrir técnicas inéditas na culinária brasileira que, na verdade, não passam de gestos isolados, como o modo de picar couve na culinária mineira. É um auto-engano, pois técnica é palavra que reservamos para designar conjuntos de gestos e procedimentos que resultam num produto único. Talvez seja impossível se chegar a um conjunto de técnicas genuinamente brasileiras, como o raro caso da preparação do tucupi. Daí decorre que, como muitos chefes percebem, a capacidade de inovação (de “transgressão”) depende, de fato, do repertório de ingredientes e produtos utilizados na experimentação gastronômica. Mas, para chegar a eles, precisam compreender o significado das receitas.

As receitas plasmam produtos. Correspondem a modos mais ou menos rígidos de apropriação da biodiversidade através de matérias-primas culturalmente produzidas. Elas cristalizam matérias-primas e técnicas em produtos. O caminho é muito estreito. Há gente que diz ter receita original de feijoada, mas diante de uma feijoada sabemos como chegar a ela; como os vários caminhos que levam a Roma. Por isso, libertos das receitas em que são aplicados de modo tradicional, ingredientes e produtos brasileiros parecem descomprometidos com a história, provocando reações dos conservadores contra as propostas renovadoras dos chefes que investigam e buscam explorá-los de novas maneiras.

Mas a palavra “ingrediente” não é unívoca. No uso comum, é tudo o que entra na preparação de uma receita. Uma farinha, por exemplo, é ingrediente de um bolo, embora seja um produto industrial. Restrita a um produto ou a uma matéria-prima in natura a palavra pode nos levar a incorrer em erro, confundindo-se com a biodiversidade. Mais correto seria dizer que os chefes buscam desenvolver uma culinária de ingredientes e produtos que, no caso que nos interessa, seriam expressões de um país ou território.

A rigor, a condição de produto ou ingrediente depende da posição que ocupam no processo de produção: no seu início ou em fases intermediárias. Exemplificando: o leite cru é ingrediente do queijo minas artesanal, que é um produto; mas este mesmo produto é ingrediente do pão de queijo mineiro.

Contudo esta é uma falsa oposição, pois não é possível pensar qualquer ingrediente como algo desprovido de história, como um pedaço da natureza em “estado puro”. O trabalho humano, que conforma a natureza para o consumo alimentar, principia na identificação do que é útil. Espécies vegetais são nocivas ou benéficas, saborosas ou não, segundo uma experiência que, antes de ser individual, é grupal – às vezes tributária de milênios de experiências. Formigas são saborosas para quem não está submetido aos tabus que vedam insetos. A própria história da mandioca e como os indígenas conseguiram eliminar sua toxidade, tornando-a apta ao consumo, é um excelente exemplo do que dizemos. Nesse sentido preciso, a mandioca, mesmo in natura e porque cultivada, é um produto cultural milenar.

A passagem da “biodiversidade” à condição de “ingrediente” é um processo cultural. Estes são maneiras determinadas de se chegar a produtos; e a cultura, ao mesmo tempo que possibilita, limita o seu uso. Se nos ativermos, por exemplo, às maneiras tradicionais de utilização do dendê, nunca poderemos explorar convenientemente o potencial de usos que encerra além de integrar moquecas e servir de meio de fritura para acarajés. Desse ponto de vista, colecionar receitas, decalcá-las na história, é ver a árvore e não enxergar a floresta. É não perceber, por exemplo, que tudo e qualquer coisa que venha a se fazer derivado do pequi (Caryocar brasiliense) sempre terá enraizamento brasileiro – pois é um fruto exclusivamente nacional, domesticado há mais de mil anos pelos indígenas.

Ao tratar os ingredientes devemos observar nossa própria história culinária sob nova ótica - como história de coisas úteis plasmados pela cultura brasileira, sejam proedutos nativos ou exóticos aclimatados. A hierarquização histórica do trabalho culinário é essencial para que a “cozinha de ingredientes” não se perca em discussões estéreis que só limitam o impulso criativo e renovador dos chefes de cozinha atuais.

Se houve alguma virtude duradoura no período colonial ela se deve à mundialização da economia alimentar: uma enorme e ininterrupta transação de espécies, especialmente botânicas, envolveu a Ásia, a África, a Europa e as Américas. Este processo sucedeu as transações pré-colombianas, como foram aquelas responsáveis pela difusão da mandioca e do milho em território brasileiro num longo processo que durou de 500 a.C. até 1.500 d.C. e que nos dá um mapa que contrapõe a Amazônia e o litoral, até a altura do Rio de Janeiro, devotados à mandioca, e o Brasil meridional, que vem das cabeceiras da bacia amazônica até o pampa riograndense, avançando pelo planalto central em direção ao litoral paulista, onde o milho foi estratégico.

(Segue)

4 comentários:

Anônimo disse...

Dória,

Excelente panorama está nos oferecendo.
Parabéns!
Continuo te acompanhando amanhã,
Abçs,
Ana Paula

e-BocaLivre disse...

Obrigado, Ana.

Gastronomia e afins disse...

Prezado Dória,
tenho lido o seu blog, principalmente por ser interessado na cultura gatronômica como um dos sinônimos de identidade cultural. E desde seus livros e outros posts tenho aprendido a olhar a esta transformações que nosso grandes centros estão sendo submetidos.
Concordo com as suas colocações, mas fico com algumas dúvidas:
- como fica neste processo de identidade culinária brasileira os ingredientes e técnicas inseridos pelos imigrantes mais recentes (sécs. XIX e XX)?
- será que além das miscigenações negra, européia e indígenas ( a nossa base) dos sécs. XVI e XVII, houve um novo movimento posterior pelos imigrantes recentes?
- como voce vê os "novos" ingredientes, frutos de cruzamentos de laboratório e outros que não eram utilizados?
Abç.,
Estevão

e-BocaLivre disse...

Estevão, vamos ver se consigo deixar essas questões claras nos posts seguintes.
Grato

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