Voltado ao nosso observador de um ponto de vista metropolitano (paulistano, se é possível), temos que o seu primeiro impulso na busca de ingredientes é orientada por uma idéia de tipicidade regional onde ingredientes, cultura, etnicidade parecem se fundir em algo original. Nisso ele estará seguindo orientações tradicionais que nos reportam aos anos 1920, como no seguinte texto de Gilberto Freyre:
“Três regiões culinárias destacam-se hoje no Brasil: a Baiana, a Nordestina e a Mineira. A Baiana é decerto a mais poderosamente imperial das três. Mas talvez não seja a mais importante do ponto de vista sociologicamente brasileiro. Outras tradições culinárias menos importantes, poderiam ser acrescentadas, com suas cores próprias, ao mapa que se organizasse das variações de mesa, sobremesa e tabuleiro em nosso país: a região do extremo Norte, com a predominância de influência indígena e dos complexos culinários da tartaruga [...] e da castanha, que se salienta não só na confeitaria como nas próprias sopas regionais - tudo refrescado com açaí célebre[...]; a região fluminense e norte-paulista, irmã da nordestina em muita coisa pois se apresenta condicionada por idênticas tradições agrário-patriarcais e mais de uma sub-região fluminense, pelo menos uso farto do açúcar; a região gaúcha, em que a mesa é um tanto rústica, embora mais farta que as outras em boa carne [...]. O mais poderia ser descrito, do ponto de vista culinário, como sertão: áreas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste [...] e nas florestas do centro do país pela utilização da caça e do peixe de rio - tudo ascética e rusticamente preparado. A influência portuguesa onde parece manifestar-se ainda hoje mais forte é no litoral, do Maranhão ao Rio de Janeiro ou a Santos. [...] A influência africana sobressai na Bahia. A influência ameríndia é particularmente notável no extremo Norte [...].Mas como noutras artes, as três grandes influências de cultura que se encontram à base das principais cozinhas regionais brasileiras e de sua estética são a portuguesa, a africana e a ameríndia, com as predominâncias regionais já assinaladas”.( Gilberto Freyre, “O manifesto regionalista de 1926: vinte e cinco anos depois”, in Manifesto Regionalista de 1926. Recife: Região, 1952).
Esta passagem resume o discurso sobre a culinária brasileira vigente ainda hoje com pequenas variações. Ele equilibra os componentes do mito modernista – o índio, o negro e o branco – suprimindo exatamente a hierarquia real que houve entre eles. As contribuições são tomadas como equivalentes, sem reterem a história da opressão que marcou o colonialismo e, portanto, o poder seletivo que o colonizador exerceu sobre os colonizados, inclusive sobre o que comia.
Mais tarde, a partir do Estado Novo, a divisão do país em regiões sócio-políticas acabou prevalecendo e a indústria do turismo buscou caracterizá-las também em termos culinários criando “tipicidades”. O resultado foi um conjunto de generalizações sem sentido. Por exemplo, o churrasco como típico do gaúcho. Sabemos que o churrasco é, hoje, um prato consumido do Oiapoque ao Chui, de sorte que não é “típico” do Rio Grande do Sul.
Desse modo é perfeitamente possível (e desejável) abandonar a divisão sóciopolítica da nossa culinária, redesenhando o território segundo a tipicidade de ingredientes ou produtos de um ponto de vista estritamente culinário, como é do feitio da noção de “terroir”. Nesse novo “mapa” a continuidade territorial artificial (as “regiões” do IBGE) é substituída por manchas culinárias descontínuas e mais úteis. De maneira sintética, e apenas a título de exemplo, teríamos:
A culinária amazônica: caracterizada pelo uso amplo da mandioca e seus derivados (farinhas variadas e tucupi), além das frutas, peixes de rio e outros produtos da floresta;
A culinária da costa: que se estende do Ceará ao Espírito Santo, marcada pelo uso de peixes, frutos do mar e do leite de coco;
A culinária do Recôncavo Baiano: tipificada pelo uso do óleo de dendê a partir da laicização da “cozinha de santos”;
A culinária do Brasil meridional: onde é notável a difusão do cuscuz e outros pratos à base de milho, além da utilização farta das carnes, especialmente de pequenos animais, e preparações a partir de vísceras. Essa culinária apresenta manchas específicas a partir de outros ingredientes, tais como:
o pequi: especialmente no centro-oeste, estendendo-se até as franjas da Amazônia
o mate: em toda a área de influência dos guaranis, compreendendo a região sul, do Paraná ao Rio Grande do Sul e, no Centro-Oeste, o estado de Mato Grosso, alongando-se além fronteira pelo Paraguai, Uruguai e Argentina
o pinhão: a área da floresta original de araucária, onde ocorre o pinhão, constitui um ecossistema destacado do Brasil meridional, com culinária de traços originais
A culinária caipira: compreendendo especialmente o estado de São Paulo, Minas Gerais e franjas do Centro-Oeste, calcada no milho, no porco e no frango, além dos vegetais e legumes de horta, com grande assimilação de técnicas portuguesas de preparo.
O detalhamento dessas manchas descontínuas fica na dependência do conhecimento etnográfico de cada território. A riqueza de ingredientes de cada uma delas é que deve constituir o objeto de estudo de quantos se preocupem em traçar um quadro moderno da nossa culinária, assim como a proposição de outros recortes que façam sentido como tratamento alimentar ou do gosto.
Pode-se também classificar ingredientes a partir de outros critérios, como a sua adoção e difusão pela culinária brasileira ou mundial. Tal enfoque pressupõe o reconhecimento de que, desde o período colonial, na intensa transação de espécies em escala global, o Brasil foi fundamental na formação do repertório alimentar moderno de boa parcela do mundo. No conjunto, chegamos ao século XIX com a flora brasileira incorporada, de modo seletivo, à nossa culinária.
(Segue)
11/05/2010
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