12/05/2010

Caminhos da construção da brasilidade - IV

A ênfase em ingredientes não decorre apenas de um mapa de suas localizações, pois está na dependência da história da alimentação de um povo e de verdadeiras modas culinárias ou gastronômicas. Coerente com essa demanda, muitos pesquisadores tem se debruçado de modo útil sobre o repertório da nossa biodiversidade.

Dentre os vários interesses que orientam essas pesquisas, há aquela de investigação de plantas aromáticas da nossa flora; ela tem posto em destaque várias espécies, como o cumaru (Dipteryx odorata), a priprioca (Cyperus articulatus), a iquiriba ou embiriba (Xylopia sericea) e a “canela” (Otonia otonia), entre outras. Assim, plantas nacionais ou exóticas aclimatadas vão tendo seu lugar redefinido na culinária brasileira. Elas são extraidas dos seus contextos e reinterpretadas pela vertente de usos culinários.

O exemplo do cumaru é o mais ilustrativo. De uso corrente no exterior há várias décadas, especialmente pela indústria de alimentos e de charutos, tem sido revalorizado como se fosse uma descoberta original de agora. Contudo, no Brasil, não há uso popular em culinária, restringindo-se a usos em “banhos de cheiro”.
Quando examinamos outras utilizações, como óleos para fritura, temos que, além do cumaru, muitos outros capazes de aromatizar as frituras eram usados no passado: o de castanha-do-pará (Bertholletia excelsa); de sapucaia (Lecythis pisonis); de indaia-açu ou catulé (Attalea oleifera), da região de Goiás; o batiputá (Ouratea parviflora), da Paraíba e Rio Grande do Norte; o de umirium (Humiria floribunda), comum no Amazonas e no Pará e o já citado cumaru.

Com o desenvolvimento da indústria, prevaleceram os óleos mais “neutros” para a fritura, graças a um ideal da gastronomia européia desde o século 19, e os óleos regionais saporificates caíram em desuso, só restando “ativo” o de dendê. Desse modo vê-se que a “diversidade” culinariamente útil não depende tanto da sua ocorrência, mas de modas relacionadas com o estágio de desenvolvimento geral da sociedade, de ideologias nutricionais, gastronômicas, etc.

Além desses aspectos, outros concorrem para o desprezo de grande parte das possibilidades de uso culinário presentes nos ingredientes de um dado território. É o caso do sertão nordestino e sua culinária que manteve fortes os vínculos com a origem Ibérica.

Pouco do sertão se incorporou à culinária metropolitana. Isso é visível já na seleção de certos ingredientes básicos como a cabra e seus derivados, o carneiro, a galinha d´angola, o porco, etc.

Desde sua introdução no sertão, o leite de cabra tornou-se a principal alimentação das crianças, substituindo o leite de vaca, dedicado ao fabrico de queijo e coalhada, ou consumido misturado à batata, jerimum, farinha ou rapadura. Da mesma forma, a “carne de bode”, embora considerada inferior à carne bovina, ocupou papel de destaque. Seu consumo não se fazia apenas em ocasiões festivas, como acontece com a carne suína, mas concorria com a carne de galinha como fonte de suprimento protéico. Além disso, seu couro, de valor relativamente elevado, era uma das poucas mercadorias que o sertanejo podia produzir para um mercado situado nas cidades e feiras, onde podia se abastecer de sal e outras mercadorias básicas.

Dona de uma culinária surpreendentemente delicada, com sua profusão de refogados e ensopados - de frango, carneiro, cabrito, galinha d´angola (“capote”, dizem), pirões, além do arroz, do cuscuz de milho e da mandioca – tudo com o uso moderado da pimenta que vemos em profusão no litoral, o sertão nunca mereceu tratamento sistemático do ponto de vista da nossa sociologia alimentar.

Trata-se de coisa de gente pobre, de vida simples, portadora de uma tradição que, ainda hoje, mantém referencias fortes do mundo Ibérico; longe do exotismo africano e da fartura que se construiu como imagem sedutora da alimentação litorânea. No sentido culinário, a história plasmou esse modelo sertanejo desde os pampas gaúchos até as franjas da floresta Amazônica, nas terras do Maranhão e Piauí; em outras palavras, há enormes convergências no modo de comer desse Brasil meridional que o distingue de maneira inequívoca das culinárias urbanas litorâneas.

Na longa história nacional, este “gosto sertanejo” só adquiriu cidadania nos grandes centros urbanos onde é marcante a população de migrantes nordestinos. Pratos como a panelada (cozido que leva mocotó, miúdos de boi, toucinho e legumes), servido com pirão escaldado, feito do próprio caldo; o sarapatel (guisado de sangue, tripas e miúdos de porco ou carneiro, bem condimentado, originado no Alto Alentejo); a buchada (cozinhado de bucho, miúdos, tripas, sangue e cabeça de cabrito, carneiro, ovelha ou bode); o sarabulho (iguaria típica portuguesa, que se prepara com sangue, miúdos, gordura e pedaços de carne de porco condimentado e ensopado, com origem no Minho); o meninico (guisado preparado com vísceras de carneiro); assim como o milho torrado e pisado no pilão; as tripas de porco torradas no espeto, para café da manhã; o amendoim cozido em paneladas; o ouricuri cozido ou seco; a coalhada escorrida com mel de “abelha preta” – tudo isso nos dispõe à mesa um Brasil em torno do qual a sociedade culta e letrada jamais se propôs celebrar.

(Segue)

2 comentários:

Unknown disse...

outro ex.: a canjiquinha: milho moido fininho e carnes de porco.meu pai faz tão bem!!

Unknown disse...

na verdade a canjiquinha é caipira!

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