A sopa é o alimento que melhor retrata a evolução culinária. Não porque se sofistique quando tudo tende a isso, mas porque o seu lugar vai sendo ocupado por outras coisas e vai adquirindo uma marginalidade deprimente. A “sopa dos pobres” é uma imagem associada à crise, como se ela fosse o último estágio de degradação do comer.
Um restaurante só de sopas não resistiria a outra estação que não um único inverno. Mas no século XIX as sopas ocupavam, com freqüência, mais de um terço do volume dos livros de receitas. Então, o que os tempos fizeram com a sopa? Por que os chefs laureados da atualidade não olham para ela?
Consulto minha biblioteca e vejo no Libro de cocina Rupherto de Nola (1525) a relação de vinte e quatro potages. No Ma cuisine (1934), de Auguste Escoffier, cerca de centro e trinta sopas, divididas tecnicamente em tipos: consommé, soupe, potage, crème e veloutés. É uma simplificação, pois no seu Le Guide Culinaire (1902), escrito para profissionais, constam trezentas e dezoito receitas.
Em Paul Bocuse (La cuisine du marché, 1976), encontro cinqüenta e seis receitas da espécie “sopa”. No livro através do qual Gualtiero Marchesi buscou revolucionar a cozinha italiana (La mia nuova grande cucina italiana, 1980) constam apenas quatro receitas. Tenho um desses livros práticos norte-americanos, só de receitas de sopas. São setenta e oito. E chego a uma conclusão intempestiva: os modernos detonaram o capítulo tradicional das sopas! O século XIX foi o seu tempo.
Para Escoffier ela se situa no coração da vida familiar: não é concebível uma refeição que não tenha como prelúdio uma sopa. Ela resume também o “jantar completo do soldado e das classes laboriosas”. E não julga fácil fazê-la: é preciso contar com o melhor da qualidade das carnes e legumes.
Mas o que define a sopa não é qualquer ingrediente ou modo de fazer, e sim o seu veículo: a água. Ora, o que determina a vontade de comer com água?
Historicamente, o pão é a base da sopa, como mostra a própria palavra soupe, surgida por volta de 1185, vinda de soppe, por sua vez originária do latim suppus, derivada de supinus, “deitado, estendido”, indicando o pedaço de pão jogado no fundo da panela sobre o qual se derrama o caldo quente feito com os demais ingredientes.
O francês é língua arguta para registrar que souper é uma refeição que se toma avançada a noite, na hora burguesa posterior ao espetáculo, ao longo de uma soirée, o que nós traduzimos como “ceia”, frisando o seu evidente caráter sacrossanto. Em catalão é sopar. É inegável que à sopa cabe propiciar a reconciliação com a ordem familiar.
E, agora, lembremo-nos da mítica “sopa de pedras”... Mas tão essencial é a sopa que a grande indústria tratou da sua portabilidade, eliminando exatamente o seu veículo universal: basta acrescentar água a uma maçaroca produzida industrialmente e se tem, de modo instantâneo e em qualquer lugar, a sopa restaurada.
Fazer sopa é muito difícil, assegura Nina Horta. Se não for perfeita, é ruim. Sopas muito líquidas, geralmente salgadas, água quente com sal portanto, são horríveis. Sopas camponesas, pedaçudas, são reminiscências camponesas.
Talvez a sopa esteja fora do terreno do gosto moderno mais pela sua banalidade do que dificuldade; a pretensão atual a uma grande gastronomia renuncia à sopa. O glamour do chef moderno não prospera na água. É uma bruxaria de outro tipo, que nada tem a ver com aquela imagem clássica das preparações de poções de encantamento como se fossem sopas fatais.
Se formos “inventar” uma sopa iremos pensar nos ingredientes sólidos, de tal sorte que o essencial (a água) aparecerá como adjetivo de nossa “frase gastronômica” original. Ora, a água é um falso objeto de reflexão gastronômica. Ainda que esteja em moda “degustar” águas, suas qualidades jamais fundarão um capítulo da culinária.
Mas a água da sopa é a água desnaturada: o caldo. Falta-nos ainda o moderno historiador do caldo. Há indícios de que a ciência do caldo avança, se tornando autônoma lá pelo século XVIII, conformando a modernidade gastronômica. A forma primitiva e quase universal da refeição é um cozido. Um pote ao qual se acrescentam, sem grandes regras, carnes e legumes variados, segundo a disponibilidade sazonal e local. Povos africanos, chineses, europeus, americanos não fogem a essa regra, independente do grau civilizatório. Mas há um momento nessa história onde o “caldo” desse cozimento serve a outras preparações, numa clara manifestação de consciência de que o sabor se transfere.
A trajetória do pot-au-feu é ilustrativa. Sem ele não há molho. Ele é a ebulição de tudo. Os legumes, em parte, são plantados em função dele e é certo que todo esse universo se desenvolve a par com a arte da potaria. O nacionalismo francês soube tirar partido do pot-au-feu, como uma unificação nacional do gosto. Os molhos possuem por base sempre uma espécie de pot-au-feu que se “purifica” escumando, e retirando a gordura e os ingredientes pedaçudos.
As sopas se bifurcam em pratos substanciosos e caldos delicados. O caldo é uma coisa essencialista: a água em ebulição traz para fora das carnes ou legumes a sua “essência” e o molho tem por base a concentração dela. Neste sentido, as sopas são molhos diluídos, ou seja, entre eles haveria apenas diferenças de grau, mas não de natureza. Assim como há molhos “ligados” por algum amido, há sopas igualmente “engrossadas” por um amido, de sorte que ninguém pode duvidar desse diálogo permanente entre os dois produtos.
Mas os molhos precisam, necessariamente, serem portados por algum ingrediente sólido, como um bife; já as sopas parecem mais completas. Reza a tradição que, em suas formas mais simples, camponesas, o minestrone é uma panela que fica ao fogo quase permanentemente, onde vão se acrescentando ingredientes na proporção em que se vão retirando para comer. A sopa é o fundo geral desse processo interminável, mudando de forma e de gosto à medida que o tempo passa e as pessoas dela vão se servindo.
No caso dos caldos, as sopas são a arte da sutileza. A execução de um consommé absolutamente translúcido é, para um iniciante, de dificuldade de execução impar. E, como numa paleta de pintor, após consegui-lo é necessário, com igual maestria, aromatizá-lo como um pentimento. Com uma pequena dose de jerez, por exemplo.
Esta é uma arte tanto ocidental como oriental. Uma maravilha chinesa é o simples caldo de uma carcaça de frango lentamente cozida com cebolinha e fatias de gengibre, deixando-se esfriar e sedimentar para se colher apenas o liquida aromatizado ao qual se acrescenta, depois, antes de esquentar novamente, cogumelos reidratados, uma ou duas gotas de sohyu ou sakê e uns cubinhos de pepino com casca que devem ficar apenas semicozidos, sem perder a textura crocante. Acrescente-se um toque de açúcar e um toque de sal. Se há uma arte das sopas ela reside nos consommes, na alma que emprestam à água.
O consommé resvala do comer para o beber sem deixar de ser um “alimento” que, por sua delicadeza, recomenda-se também aos doentes. É nesse terreno que o duplo aspecto da “purificação” e da “nutrição”, essenciais ao doente, se encontram como veículo da cura.
As sopas “pedaçudas”, que equivalem a uma refeição completa, são de outra natureza. Elas estão na total dependência das coisas sólidas, às quais a água, teoricamente, só acrescenta maior “deglutição” e possibilidade de percepção sápida, já que é somente dissolvido em água, em saliva, que os sabores podem atingir os botões gustativos que os registram.
Essa função da água, que aproxima todos os sabores subsumidos, está em contradição com a lógica de moderna construção gastronômica. Esta cultiva a separação, a apresentação seqüencial, sem sobreposições; aprecia os diferentes “tempos” de liberação dos elementos sensíveis que podem estar reunidos nos vários ingredientes de um mesmo prato. Assim, se é possível “desconstruir” um prato, este não pode ser uma sopa, que não admite desconstrução – exceto se eliminarmos a água, desnaturando a própria sopa.
Nós, brasileiros, temos dificuldades de vislumbrar o capítulo das sopas em sua singularidade; somos uma cultura dos “ensopados” e dos guisados, essa grande classe que engloba as sopas e vai além delas, engolindo a própria feijoada. Em tudo metemos mandioca, ainda que sob a forma de goma, como no tacacá. São reminiscências portuguesas, sem dúvida, onde o pão manteve função primordial na assimilação da água da sopa.
E é entre migas e açordas portuguesas que devemos buscar a raiz do nosso vatapá, a sopa que nos remete à origem dos tempos – um caldo sobre pão - mas que se atolou em pão exagerado. No Cozinheiro Nacional que reúne um bom número de sopas ao estilo dos clássicos novecentistas, até os mingaus, como o curau, foram unificados sob a rubrica de sopas (capítulo das sopas de leite). Dona Benta já não é tão sugestivo quanto Cozinheiro Nacional. Em nenhum dos dois, contudo, figura a nossa criativa sopa de grelos de ervas, cambuquira (em tupi, kãbu'kira) com fubá.
Por mais que procuremos um caminho de modernização das sopas, não encontramos. Vamos nos deparar sempre com um minguar lento e inexorável, a perda de riqueza e diversidade cujo apogeu, na gastronomia, parece ter se situado no século XIX.
Entre os paulistanos, pesquisa empírica de Donald Piersons mostra a sopa onipresente na mesa do rico e do pobre por volta dos anos 1930/40. Depois, veio a queda.
20/05/2010
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3 comentários:
Doria,
você que se dedica(também e tão bem) à reflexão da gastronomia no Brasil, e dá importancia ao processo de construção da imagem gastronomica e sua recepção aqui,e sempre estabelece relaçoès entre fazer e pensar o tempo e o real, uma pergunta estética:
o que é gastronomico na gastronomia?
Realmente a sopa já viveu dias melhores...mas eu acho que a oferta é proporcional à procura. As pessoas não querem mais tomar sopa fora de casa, ninguém pede sopa. Em diversos eventos tentamos "vender" sopa e ninguém tem interesse. Nos eventos em que foram servidas, poucos tomam. É lamentável...
Imagino que neste post a referência explicita foi, como nos vem à cabeça de imediato, as sopas quentes, remetendo àquela imagem do prato fumegante numa noite fria.
E o que dizer então das sopas frias, e suas infinitas possibilidades especialmente num país tropical como nosso?
Abraços.
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