12/09/2011

Reflexões entre galinhas, peixes, tartarugas, o padre e o governador - final

Miguel Fernandes de Araujo foi seringueiro; depois, regatão; depois, comerciante de atacado e varejo em Rio Branco. Hoje é fazendeiro de bois, peixes e tartarugas. Ele aparece na foto, contemplando seu curral de 100 mil tartarugas, dadas pelo Ibama à razão de 10 mil por ano.
A fazenda de Miguel em Xapuri, Acre, parece escorregar do Brasil, pela encosta da Cordilheira dos Andes, para chegar a Lima. A Carretera Del Pacífico, que liga Rio Branco aos portos Andinos, será o novo corredor para exportação de produtos brasileiros para a Ásia.

“Antes tinhamos que atravessar o país em direção ao porto de Santos. Esperar vários dias para embarcar uma carga. O navio subia até o canal do Panamá e pagava R$ 5 milhões para atravessar para o Pacífico. Levavamos no mínimo 45 dias para entregar uma mercadoria em Tóquio. Hoje, em dois dias estamos em Lima e em mais sete dias em Tokio”, diz Miguel enquanto passeamos num jeep John Deere por sua fazenda de 25 mil hectares, entre os 200 açudes com cerca de 3 mil peixes cada um.

São matrinxãs (Brycon amazonicus), pirarucus (Arapaima gigas), tambaquis (Colossoma macropomum), pacus de várias espécies, surubins ou pintados (Pseudoplatystoma corruscans), cacharas outros menos votados e alguns híbridos produzidos ali mesmo. Mas um dos lagos tem a atenção especial de Miguel: o das tartarugas.

Nele, estão os exemplares de tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa), de tracajá(Podocnemis unifilis) e de pitiú (Podocnemis sextuberculata). Além dessas três espécies de quelônios de água, Miguel cria jabotis (Chelonoidis denticulata) em terra firme.

“Isso aqui não é para vender. Só para o meu consumo. Sabe, eu sou amazonense, da Boca do Acre, e tinha uma dificuldade louca para comer tartaruga. Até que um amigo, do Ibama, me disse: `já sei. Tem um jeito de você comer tartaruga. Você se registra como criador e te damos uns filhotes para você criar´. Foi o que aconteceu”.

Mas dá para desconfiar. Uma vida é pouca para 100 mil tartarugas. Naquele mesmo dia, por exemplo, comeríamos duas tartarugas de 10 quilos, numa refeição para vinte pessoas aproximadamente.

Aos poucos Miguel relaxa e vai entregando os pontos. Já vende tartarugas para os estados da Amazônia, para o Peru e para a Bolívia. “Só há mercado regional. Fora da Amazônia não se come tartaruga. Tivemos algumas consultas do Canadá, é verdade. Mas não temos SIF. Então, exportar por enquanto só para o Peru e Bolivia, que não exigem o nosso SIF”.

“Nos dê uns meses e teremos SIF sim”, garante o governador Tião Viana enquanto espera o banquete de tartarugas. O assunto é de minha predileção, e fico admirado pois o SIF para o queijo Canastra, sabemos, não sai - apesar das promessas de Brasília. Mas um governador, creio, merece crédito nesse tema. Talvez o governador de Minas não se empenhe o suficiente com seus queijos...

Os peixes, sim, logo terão imenso frigorífico cooperativo, incentivado pelo governo. A produção será dirigida, em sua maioria, para a China e Japão. Entendo, então, o que quer dizer que o Acre, de “fim de mundo”, tornou-se o “começo do mundo”. De um mundo novo, voltado para os negócios da China. Cansou de ter o Brasil de costas para o seu território e produção.

Dona Maria, uma senhora de mais de 80 anos, escondida atrás de um óculos que lembra Fitipaldi, dispõe, numa bancada, oito diferentes pratos feitos a partir da tartaruga. Enquanto discorre sobre cada um me vem à mente o “complexo da tartaruga”, como o chamou Gilberto Freire na sua classificação da culinária brasileira.

Trata-se do que de mais original o país jamais produziu, visto como “contribuição” das várias culturas que aqui se mesclaram. Complexo que foi silenciado não só pela legislação que proibiu a captura dos animais como também pela imposição secular do frango, comida de homem branco, conforme sugere a leitura do Pe. João Daniel. Indio, recordemos, não comia frango. Comia tartaruga.

É um animal multi-gastronômico. Partes remetem aos sabores do frango; outras, ao sabor da carne bovina; por fim, umas ainda ao porco. Versátil em sabores, é natural que seja versátil em preparações. Guisada, assada, em farofa. O fígado, em especial, me surpreendeu: quase negro, fino e longo, tem sabor mais delicado do que o fígado dos animais domésticos.

Sem dúvida há uma sabedoria milenar no consumo de tartarugas. Não é de toda absurda a hipótese que geoglifos fossem tanques de criação de tartarugas. Como nossos antigos galinheiros no fundo das casas...

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