06/11/2011

Cozinha hiper-midiática não é boa para a gastronomia

Questionamentos, venham de onde for, são sempre provocações à inteligência. Como a citação abaixo, de um ensaio que o filósofo Robert Redeker publicou recentemente no Le Monde (La cuisine dénaturée par sa surmédiatisation, 12.09.11).

Redeker não é exatamente o filósofo que aprecio. Em especial por sua posição anti-Islã. Mas, ao ver na TV o programa Master Chef, que incentiva a competição e não a colaboração, escreveu esse ensaio “com o fígado” e vale pensar sobre as suas palavras (tradução livre):

“"Master Chef"! "Um jantar quase perfeito!" A cozinha invade todos os dias o espaço público. Além desses, programas sobre a preparação de alimentos, centenas de blogs dedicados a esta atividade, florescem na web. Esse estranho fenômeno nos força a fazer duas perguntas: qual é o significado disso? Nossa sociedade não estaria dando muito espaço à cozinha?
(...)
Em "Master Chef" - assim como em "jantar quase perfeito" na M6 - TF1, não se valoriza a cozinha, mas a competição. Na verdade, transforma-se a cozinha num avatar do espectáculo desportivo para destruí-lo. Assim, como nos reality shows, "Master Chef" celebra o culto da concorrência, a lei do mais forte, desloca violentamente a atividade culinária para o universo da máxima bárbara: “o homem é o lobo do homem. "

Temos vivido por longo tempo sob a identidade propiciada pela religião e pela cultura. A religião embasa a identidade de uma civilização. Sua patrimonialização - a mortalha e o túmulo que são o patrimônio - assinalam a morte da religião como alfa e ômega da vida coletiva. Agora, é o patrimônio que se torna objeto de culto, e não mais Deus ou um profeta - nós visitamos as igrejas e os monastérios pela sua beleza, não para rezar.

A loucura coletiva pela cozinha prepara, a médio prazo, a sua morte pela patrimonialização (a cozinha francesa acaba de se tornar patrimônio mundial definido pela Unesco), substituindo a velha identidade entre o religioso e o cultural por uma nova identificação: aquela entre o culinário e o cultural. A identidade de uma civilização não é mais a religião; é a sua cozinha.

A situação extravagante em que se encontra a cozinha não é nada além do sintoma de uma sociedade doente, ou de uma “sociedade à deriva", nas palavras do filósofo Cornelius Castoriadis. Isto significa que a cozinha é vivida, de maneira imaginária, como o último lugar de estabilidade, a última marca ainda de pé de um mundo em vias de liquefação. Em torno de uma mesa, a ilusão de uma comunidade unida pode se reformar. Em torno de receitas, de modos de comer, a ilusão de comunicação com toda uma civilização pode renascer - graças a uma paródia involuntária da Eucaristia.

A televisão multiplica essa ilusão de infinito, atribuindo a um transmissão sobre culinária a mesma função social que um jogo de futebol ou de rugby: solda, na duração de um espetaculo mercantil, os milhões de pessoas e faz crer que, nessa ocasião, sobrevive algo que já se perdeu: a comunidade real. A cozinha se faz passar por remédio da crise de sentido que a todos alarma.

A ascensão e força da cozinha e sua exploração midiática letal, dizem da patologia social. Prova-o o papel que desempenha ao jogar com os fantasmas dos sentidos. Os verdadeiros apreciados da mesa e de seus prazeres vêem com maus olhos essa promoção. Eles sabem, de fato, que a cozinha não é um um torneio, não é um espetáculo nem uma apoteose, nem sobretudo o último reduto dos sentidos e da cultura nacional".

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