Todo sacoleiro sem fronteiras é um gourmand adormecido; em geral conformado com as compras que, semana após semana, mês após mês, ano após ano, sua mãe ou sua mulher fazem para suprir a casa. Ele sabe que cozinha não é lugar só para mulher, mas é conformista.
Um dia, por um impulso que os psicólogos ainda não compreenderam, ele diz: “hoje eu vou às compras e depois vou cozinhar!” Baixa os livros de receita da estante, folheia como quem procura algo, mas não encontra. “Bem, vou ver o que tem no mercado”, pensa, na certeza de que este é um bom começo. Veste sua bermuda de fim de semana, o tenis novinho, a camiseta, empunha a sacola e sai.
Mas janeiro é uma merda. Os clientes que lhe devem estão de férias e nem há como cobrar. Aqueles que, esperançoso, o sacoleiro prospectou (sic) em dezembro também não voltaram de férias - de sorte que são uma quimera. E a fatura do cartão de crédito do Natal já chegou; então ele não pode ir ao Santa Luzia e meter o pé na jaca.
Se sente o gourmand mais infeliz do mundo! Tem que maneirar. Vai à feira do Pacaembu, à busca de algo sensacional que ainda não sabe o que é. Uma sacola na mão, nenhuma ideia na cabeça.
Virgem de projetos culinários, ao estacionar o carro, vislumbra um: “já sei! Vou fazer frutos do mar no cartoccio!”. Mas, já ao estacionar o carro, o tomador de conta vai avisando, como se adivinhasse seu pensamento: “Doutor, a feira hoje está fraquinha. Nem o peixeiro veio...”.
Ele não desanima. Percorre a feira como um fiscal, olhando tudo. Os preços pela hora da morte. RS$ 30 o quilo de morango hidropônico. É melhor que o outro? Não sabe. Não compra.
Enfim, umas ervas doces bonitas! Pessoalmente não gosta, se sente um coelho ao comer, mas sabe que sua mulher gosta. Compra quatro. O importante é sempre voltar para casa com algum triunfo. Mais adiante compra feijão, grão de bico, e um pedaço de queijo minas “dos bons”, da Canastra. Monotonia.
De repente, vê umas jacas maravilhosas! Jacas, jaqueiras, visgo... e aflora uma torrente de lembranças da infância. “Me dê uma bandeja”, ordena sem pestanejar. Enquanto o feirante vai tirando os gomos e colocando na bandeja, troca ideias sobre jaca. Admira-se dele saber distinguir a dura e a mole só de olhar. Pessoalmente, não tem essa habilidade, mas conta que caçava canarinhos da terra com visgo de jaqueira. O feirante olha incrédulo. E volta para casa compensado pela jaca. A sensação de indenização por uma feira tão fraca.
Quando dispõe as coisas sobre a mesa da cozinha, exibindo a proeza, ouve a mulher, dedo em riste: “o que é isso???” E responde: “Jaca...” Foi o que bastou. “Quinze anos de casado e você ainda não sabe que não suporto jaca? Não suporto nem o cheiro! Vai comer essa porcaria lá fora, no quintal!”. E saiu batendo a porta... O cheiro inebriante fez a erva doce desaparecer como por encanto.
Lá no fundo do quintal, entre as imagens de passarinhos presos no visgo da jaqueira, também lhe veio à mente o recitar surdo do poema de Gonçalves Dias, que ia ruminando entre dentes enquanto ia para a escola, entre uma caçada de passarinho e outra:
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.
Sacoleiro sem fronteiras é a nova seção do E-boca livre. Será publicada aos sábados, tendo como tema a deambulação do gourmand paulistano.
07/01/2012
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7 comentários:
Dória, que crônica deliciosa você oferece!
Não vou perder nenhuma seção de Sacoleiro sem fronteiras!
Ah, já anotei também a sua lista de bons e baratos!
A propósito, me deu vontade de me esbaldar com uma bandeja perfumada de jaca!
Beijo carinhoso,
Ana Paula
Ana Paula,
obrigado pelo seu incentivo. A idéia é ir dando forma a esse personagem, educado no paladar doméstico, controlado pela mãe e pela mulher e que, um dia, se rebela e sai a comprar, trazendo para dentro de casa coisas perturbadoras do gosto. Vamos ver se consigo seguir adiante.
Bjs
Eu amo ler tudo que vc escreve! Quase uma poesia! Vou mandar uma foto da jaca que ganhei ontem de um funcionário da Clinica São Vicente da Gávea que tem jaqueiras por todos os lados! E viva as frutas brasileiras! Eu como baiana, tenho orgulho das nossas frutas! Cresci no meio de mangaba, umbú, siriguela.... Chega que ja deu água na boca!
Dória,
a ideia não podia ser melhor e tenho certeza que você irá nos brindar com momentos inesquecíveis na leitura. Adoro como você escreve e defende seus pontos de vista. Linda contribuição você tem dado a cultura gastronômica e aos costumes, alargando as fronteiras das percepções de quem o lê.
Obrigada,
Bjs
Beth, só um reparo: a jaca não é brasileira, mas indiana. O que em nada diminui sua excelência...
Ótimo texto e ótima a idéia de extrapolar as fronteiras dos restaurantes.
Há algum tempo não passava por aqui, mas já coloquei a leitura em dia e estou intrigadíssima com os últimos posts; devo ser absolutamente tapada, pois nunca pensei em cachaça e rum como semelhantes. Fui procurar um pouco mais sobre e quase morri de rir com os sinônimos da branquinha [http://en.wikipedia.org/wiki/Cacha%C3%A7a]; são tão bons, ou melhores do que os do diabo!
A carta aberta, então, é a personificação do tapa com luva de pelica; excelente resposta a algo tão nojento! Mas nada foi mais gostoso do que este texto; crônicas de costumes sempre me cativam por sua aparente simplicidade... Quero mais!!! Bjs
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