05/04/2012

Da sopa às cinzas

Carlos Alberto Dória
A sopa é provavelmente o alimento que melhor retrata a nossa evolução culinária. Não porque se sofistique quando tudo tende a isso, mas porque o seu lugar vai sendo ocupado por outras coisas e vai se impondo a ela uma marginalidade deprimente. A “sopa dos pobres” é uma imagem associada à crise, como se ela fosse o último estágio de degradação do comer.
Estamos seguros de que um restaurante só de sopas, por exemplo, não resistiria a outra estação que não fosse um único inverno. Se algum foi tentado, teve este destino. Mas no século XIX, as sopas ocupavam com freqüência mais de um terço do volume dos livros de receitas. Então, o que os tempos fizeram com a sopa? Por que os chefs laureados da atualidade não olham para ela? Ao menos enquanto não surge um Adrià-das-sopas, a última pergunta parece pertinente.
Consulto minha biblioteca e vejo no Libro de cocina Rupherto de Nola (1525), uma preciosidade bibliográfica, a relação de vinte e quatro potages. No Ma cuisine (1934), de Auguste Escoffier, cerca de centro e trinta sopas, ainda que divididas tecnicamente em tipos: consommé, soupe, potage, crème e veloutés. É uma simplificação, pois no seu Le Guide Culinaire (1902), escrito para profissionais, constam trezentas e dezoito receitas. No grande apanhado sobre o oriente gastronômico, o L´art culinaire asiatique, de Charmaine Salomon, constam um pouco mais de sessenta receitas. Em Paul Bocuse (La cuisine du marché, 1976), encontro cinqüenta e seis receitas da espécie “sopa”. No livro através do qual Gualtiero Marchesi pretendeu revolucionar a cozinha italiana (La mia nuova grande cucina italiana, 1980) – obra que contém ao menos um prato imorredouro, que é a sua natura morta com seppia - constam apenas quatro receitas que podem ser classificadas como sopas. Tenho também um desses livros práticos norte-americanos, só de receitas de sopas. São setenta e oito. Bem, chego a uma conclusão intempestiva: os modernos detonaram o capítulo tradicional das sopas!
Mafalda, a pequena personagem de Quino, a mais moderna das crianças, detesta sopa; mas Auguste Escoffier situa-a no coração da vida familiar. Para ele não é concebível uma refeição que não tenha como “prelúdio” uma sopa. Ela resume também o “jantar completo do soldado e das classes laboriosas”. E não julga fácil fazê-la: é preciso contar com o melhor da qualidade das carnes e legumes. Mas o que define a sopa não é qualquer ingrediente ou modo de fazer, e sim o seu veículo: a água. Ora, o que determina a vontade de comer com água?
O francês é língua suficientemente arguta para registrar que souper é uma refeição que se toma avançada a noite, na hora burguesa posterior ao espetáculo, ao longo de uma soirée, o que nós traduzimos como “ceia”, frisando o seu evidente caráter sacrossanto. É inegável que à sopa cabe propiciar a reconciliação com a ordem familiar.
O pão é a base da sopa, como mostra a própria palavra soupe, surgida por volta de 1185, vinda de soppe (meados do século XII), por sua vez originária do latim suppus, derivada de supinus, 'deitado, estendido', indicando o pedaço de pão jogado no fundo da panela sobre o qual se derrama o caldo quente feito com os demais ingredientes”.
Mas a etimologia da palavra não é precisa. No processo formativo de soupe, além da origem latina deve ter havido o reforço do germânico supôn, 'temperar` e também, ao que parece, sinônimo de pão empapado em líquido. A variação mais fina, o potage, caldo de alimentos cozidos em um grande recipiente (pot), surgiu em torno do século XIII.
O tema remete-nos também a Apicius. Nele, há referências ao pulmentum, que seria uma espécie de pirão ou polenta feito à base de legumes e algum tipo de espessante, como farinha ou pão6.
E, agora, lembremo-nos da mítica “sopa de pedras”... Mas tão essencial é a sopa que a grande indústria tratou da sua portabilidade, eliminando exatamente o seu veículo universal: basta acrescentar água a uma maçaroca produzida industrialmente e se tem, de modo instantâneo e em qualquer lugar, a sopa restaurada. Mas isto tudo é sobrevivência do passado.
Os tempos modernos não gostam de sopas. Os chefs, que são as “antenas do gosto” (espécie de “espírito da época”) não contrariam essa tendência. Assim, a grande tradição francesa nos legou mais de quatrocentos molhos e mais de trezentas sopas, mas no último século tudo isso se reduziu a quase nada na vida cotidiana e nos livros inovadores. O século XX entrará para a história culinária como aquele no qual desapareceram os molhos e as sopas em suas antigas complexidades, quando o mastigar marginalizou o sorver.
Fazer sopa é muito difícil, assegura Nina Horta, autora do Não é sopa7. Se não for perfeita, é ruim – e a obrigação de tomar um prato, antes do jantar propriamente dito, podia ser um suplício para as crianças como Mafalda. Sopas muito líquidas, geralmente salgadas, água quente com sal portanto, são horríveis. Sopas camponesas, pedaçudas, são reminiscências étnicas. No geral, sopa quente só é boa no inverno, e os capítulos das sopas frias ou doces caíram de moda há mais tempo.
Mas talvez a sopa esteja fora do terreno do gosto moderno mais pela sua banalidade do que dificuldade e a pretensão atual a uma grande gastronomia signifique renunciar à sopa. O glamour do chef moderno não prospera na água. É uma bruxaria de outro tipo, que nada tem a ver com aquela imagem clássica das bruxas preparando as poções de encantamento como se fossem umas sopas fatais. Claro, há exceções, como a Soupe Elisée de Paul Bocuse, um simples caldo aromático de frango, apoiado na trufa, que revela todas as suas qualidades quando rompemos a croûte de massa folhada que a recobre. Mas, nesse caso, o pão (croûte) não foi usado para esconder algo? Além do mais, o crítico espanhol Rafael Garcia Santos, defensor numero um da novíssima gastronomia daquele país, ao me ouvir elogiar a Soupe Elisée corta minhas palavras e sapeca maldosamente a pergunta: “mas era preciso ser Bocuse para fazer isso?”. Ok, não se pode imaginar mesmo que um grande chef do presente nos apresente como criação uma simples sopa; antes, procurará subsumi-la no jogo do frio/quente, ou geleificar a água, isto é, solidificar o que era fluido. A sopa define uma fronteira e um limite para a criação, pois a água dissolve as boas idéias.
De fato, se formos “inventar” uma sopa iremos pensar nos ingredientes sólidos, de tal sorte que o essencial (a água) aparecerá como adjetivo de nossa “frase gastronômica” original. E chegamos, então, a um beco sem saída. Subitamente compreendemos que a sopa haja desaparecido da ementa moderna mas, como intelectuais persistentes, nos perguntamos: então, por que durou tantos séculos antes de decair?
Ora, a água é um falso objeto de reflexão gastronômica. Ainda que esteja em moda “degustar” águas, suas qualidades jamais fundarão um capítulo da culinária. A água da sopa, ao contrário, é a água desnaturada: o caldo.
Falta-nos ainda o moderno historiador do caldo. Mas há indícios de que a ciência do caldo avança, se tornando autônoma lá pelo século XVIII, conformando a modernidade gastronômica. A forma primitiva e quase universal da refeição é um cozido. Um pote ao qual se acrescentam, sem grandes regras, carnes e legumes variados, segundo a disponibilidade sazonal e local. Povos africanos, chineses, europeus, americanos não fogem a essa regra, independente do grau civilizatório. Mas há um momento nessa história onde o “caldo” desse cozimento serve a outras preparações, numa clara manifestação de consciência de que o sabor se transfere.
A trajetória do pot-au-feu é ilustrativa. Sem ele não há molho. Ele é a ebulição de tudo. Os legumes, em parte são plantados em função dele e é certo que todo esse universo se desenvolve a par com a arte da potaria. O nacionalismo francês soube tirar partido do pot-au-feu, como uma unificação nacional do gosto. Os molhos possuem por base sempre uma espécie de pot-au-feu que se “purifica” escumando e retirando a gordura.
Deixando de lado a classe dos “cremes” e dos caldos engrossados com amido, as sopas se bifurcam em pratos substanciosos e caldos delicados.
O caldo é uma coisa essencialista: a água em ebulição trás para fora das carnes ou legumes a sua “essência” e o molho tem por base a concentração dela. Neste sentido, as sopas são molhos diluídos, ou seja, entre eles haveria apenas diferenças de grau, mas não de natureza. Assim como há molhos “ligados” por algum amido, há sopas igualmente “engrossadas” por um amido, de sorte que ninguém pode duvidar desse diálogo permanente entre os dois produtos. Mas os molhos precisam, necessariamente, serem portados por algum ingrediente sólido, como um bife; já as sopas parecem mais completas. Ao menos podem ser vistas assim, como o minestrone italiano.
Reza a tradição que em suas formas mais simples, camponesas, o minestrone é uma panela que fica ao fogo quase permanentemente, onde vão se acrescentando ingredientes na proporção em que se vão retirando para comer. A sopa é o fundo geral desse processo interminável, mudando de forma e de gosto à medida que o tempo passa e as pessoas dela vão se servindo.
No caso dos caldos, as sopas são a arte da sutileza. A execução de um consommé absolutamente translúcido é, para um iniciante, de dificuldade de execução impar. E, como numa paleta de pintor, após consegui-lo é necessário, com igual maestria, aromatizá-lo como um pentimento. Com uma pequena dose de jerez, por exemplo.
Esta é uma arte tanto ocidental como oriental. Uma maravilha chinesa é o simples caldo de uma carcaça de frango lentamente cozida com cebolinha e duas fatias de gengibre, deixando-se esfriar e sedimentar para se colher apenas o liquida aromatizado ao qual se acrescenta, depois, antes de esquentar novamente, cogumelos reidratados, uma ou duas gotas de sohyu ou sakê e uns cubinhos de pepino com casca que devem ficar apenas semicozidos, sem perder a textura crocante. Acrescente-se um toque de açúcar e um toque de sal. Se há uma arte das sopas ela reside nos consommes, na alma que emprestam à água.
O consommé, por sua natureza, resvala do comer para o beber sem deixar de ser um “alimento” que, por sua delicadeza, recomenda-se também aos doentes. É nesse terreno que o duplo aspecto da “purificação” e da “nutrição”, essenciais ao doente, se encontram como veículo da cura. Mas talvez pela ausência de sólidos o consommé traga em si, em suspensão, uma idéia de saúde frágil à qual o mundo moderno é refratário.
As sopas “pedaçudas”, que equivalem a uma refeição completa, são de outra natureza. Elas estão na total dependência das coisas sólidas, às quais a água, teoricamente, só acrescenta maior “deglutição” e possibilidade de percepção sápida, já que é somente dissolvido em água, em saliva, os sabores podem atingir os botões gustativos que os registram.
Essa função da água, que aproxima todos os sabores nela subsumidos, está em contradição com a lógica de moderna construção gastronômica. Esta cultiva a separação, a apresentação seqüencial, sem sobreposições; aprecia os diferentes “tempos” de liberação dos elementos sensíveis que podem estar reunidos nos vários ingredientes de um mesmo prato. Assim, se é possível “desconstruir” um prato, este não pode ser uma sopa, que não admite desconstrução – exceto se eliminarmos a água, desnaturando a própria sopa.
Nós, brasileiros, temos dificuldades de vislumbrar o capítulo das sopas em sua singularidade; somos uma cultura dos “ensopados” e dos guisados, essa grande classe que engloba as sopas e vai além delas, engolindo a própria feijoada. Em quase tudo metemos farinha de mandioca, ainda que sob a forma de goma, como no tacacá. São reminiscências portuguesas, sem dúvida, onde o pão manteve função primordial na assimilação da água da sopa.
E é entre migas e açordas portuguesas que devemos buscar a raiz do nosso vatapá, a sopa que nos remete à origem dos tempos – um caldo sobre pão - mas que se atolou em pão exagerado. No Cozinheiro Nacional - livro anônimo do século XIX, nacionalista, decalcado na cozinha francesa e que propõe a transliteração de ingredientes brasileiros para o terreno do francesismo – que reúne um bom número de sopas ao estilo dos clássicos novecentistas, até os mingaus, como o curau, foram unificados sob a rubrica de sopas (capítulo das sopas de leite). Dona Benta10 – o livro que Monteiro Lobato editou, com a esperança de fixar uma culinária nossa, e que reúne uma quarentena de receitas de sopas - já não é tão sugestivo quanto Cozinheiro Nacional. Em nenhum dos dois, contudo, figura a nossa criativa sopa de grelos de ervas, cambuquira (em tupi, kãbu'kira) com fubá.
Ora, por mais que procuremos um caminho de modernização das sopas, não encontramos. Vamos nos deparar sempre com um minguar lento e inexorável, uma perda de riqueza e diversidade cujo apogeu, na gastronomia, parece ter se situado no século XIX. Hoje, dedicar-se à arte das sopas é estar de costas para a modernidade e fazer vista grossa para o seu desenrolar, fixando num ponto qualquer do passado um apoio para o que já não somos nem voltaremos a ser. A sopa é aquela coisa morta que nenhum gourmet glosará entre as experiências imorredouras, que para ele são obrigatórias, conforme um arguto analista11. Ao contrário, assemelha-se ao morto que, feito em cinzas e misturado a outras coisas, os índios ianomâmi comem em silêncio para que seja esquecido e, assim, possa ultrapassar os umbrais do Paraíso.

2 comentários:

Senador disse...

Nossa mãe. Que valioso arrazoado sobre a arte da sopa e o desprezo de que é vítima pelos nossos chefs. Um texto notável, no continente e no conteúdo.

Gabriel Kwak
-
São Paulo

Anônimo disse...

Somente hoje tive a oportunidade que conhecer e me deliciar com este blog. Esse artigo sobre sopas está fantástico. Parabéns.

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