É tremenda, hoje, a banalização do conceito de "cultura". Qualquer produto da sociedade é classificado como "cultura" num sentido nem sempre explicito ou conhecido. E banalizar não é exatamente democratizar, como pode parecer à primeira vista; é desprezar o problema que o conceito coloca para o pensamento reflexivo.
"Definição de cultura.
Há muitas noções de cultura. No essencial, elas remetem a duas concepções do termo, uma de origem filosófica e alemã (Kultur), outra de origem antropológica e anglo-americana (culture). Ambas consolidaram seu significado teórico na segunda metade do século XIX. Em 1860, Jacob Burckhardt publicou Die Kultur der Renaissance in Italien; em 1865, E.B. Tylor publicou Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization e em 1871, Primitive Culture, obras fundadoras respectivamente da concepção histórico-filosófica e da concepção etnológica do termo. A de E.Tylor é a mais célebre:
“Cultura ou Civilização, tomados em seu mais amplo significado etnográfico são aquela totalidade complexa que inclui conhecimento, crença, artes, moral leis e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade”.
Significativamente, o livro de Burckhardt foi traduzido para o inglês sob o título de The Civilization of the Renaissance in Italy. Anunciava-se assim o recorte semântico do léxico inglês que privilegiava o sentido etnológico da palavra “cultura”, reservando o termo “civilização” para denotar as idéias (hegelianas) de “espírito do povo” e “espírito do tempo”. A rigor, a diferença de concepção pode se resolver em diferença de objeto. Os correlatos objetivos de cultura e civilização seriam genericamente os mesmos, mas as duas categorias aplicar-se-iam, respectivamente, a sociedades “simples”, outra a sociedades “complexas”. Em léxico filosófico, cultura seria civilização em si e civilização, cultura para si. A dificuldade, entretanto, está em encontrar a definição que dê conta do caráter complexo e multiforme dos fenômenos culturais, que interessam a praticamente todos os aspectos da atividade humana. Tanto assim que há definições filosóficas, históricas, sociológicas, antropológicas, políticas, etc. dos fenômenos, objetos, processos e instituições culturais.
Considerações análogas valem para noções conexas ou complementares, como civilização, técnica etc., que, sendo elas próprias culturalmente condicionadas, refletem as culturas que as condicionam. Tentar conciliá-las seria ingenuidade, mesmo porque, não sendo ideologicamente neutras, elas não escapam à polarização entre a posição idealista e a posição materialista. Optar por uma delas, sem perder de vista a objetividade teórica, é tarefa delicada. Teremos, pois o cuidado, sempre que necessário, de referir os sentidos mais gerais e usuais do termo “cultura”, bem como os dos demais conceitos que articulam a presente exposição, cujo principal objetivo é oferecer subsídios para o aprofundamento crítico das idéias dominantes, tanto as de ontem quanto às de hoje.
Por pressuporem um abismo ontológico entre o “espírito” e a matéria, os idealistas enfatizam a irredutibilidade das disciplinas culturológicas. As crenças religiosas conferiram a esta separação o estatuto de verdades do senso comum. Mesmo em ambiente acadêmico, a tradicional oposição entre ciências naturais e ciências humanas, quando não assume explicitamente o idealismo metafísico (a essência do homem consiste na razão, na consciência etc.) classifica as ciências “naturais” de exatas e as “humanas’’ de inexatas. Oposição epistemologicamente insustentável. De modo geral, a exatidão do conhecimento é inversamente proporcional à complexidade do objeto conhecido, pouco importando se o objeto é sideral, geológico, botânico ou mental. Basta considerar que não há realidade mais caracteristicamente cultural do que o idioma. Ora, a característica básica de um idioma é seu sistema fonético, que é rigorosamente verificável em laboratório, cada um dos fonemas que o compõe sendo definido com precisão completa por seu ponto de articulação no aparelho fonador. Por outro lado, mesmo nas ciências ditas exatas, a possibilidade de determinar completamente um fenômeno é inversamente proporcional a sua complexidade. A astronomia, há milênios (quando se confundia ainda com a astrologia), é capaz de prever com precisão o movimento dos corpos celestes, mas a meteorologia, freqüentemente frustrada em suas previsões pela multiplicidade de fatores responsáveis pelo clima, é muito menos exata do que a fonologia, ciência humana.
O trabalho, criação de formas úteis
Estaríamos sendo toscamente materialistas se sustentássemos que entre cultura e agricultura há uma profunda proximidade conceitual? Temos uma longa tradição de nosso lado. Nem sempre, é verdade, a tradição é boa conselheira. No caso, entretanto, estamos apenas nos distanciando criticamente das filosofias idealistas da cultura, que a identificam ao “espírito do povo” e ao “espírito do tempo”, opondo-a metafisicamente às condições materiais objetivas. Sabemos que a expressão “cultura material” tornou-se corrente entre historiadores e antropólogos. Aceitável para fim pragmáticos do ensino e da pesquisa, ela tem o defeito de sugerir que há uma cultura espiritual separada de sua expressão material. Mas se considerarmos como o especialista distingue uma pedra intocada pelo homo sapiens de uma pedra polida, objeto por excelência da “cultura material” pré-histórica, veremos que o caso limite da identificação do caráter cultural de uma pedra lascada é saber se a forma útil da lasca resulta da percussão e da raspagem, ou se é mero fruto do acaso. Como observou um dos maiores antropólogos franceses do século XX:
“o reconhecimento dos primeiros produtos da indústria humana não é cômodo [...]. Se é fácil reconhecer ferramentas a partir do momento em que manipulações complementares lhes conferem uma forma constante, é difícil pronunciar-se a respeito de pedras lascadas que seriam meros fragmentos brutos. As rochas clássicas, como o sílex e os quartzitos, submetidas a um choque violento, liberam estilhaços que apresentam no plano em que se estilhaçaram uma superfície conchóide , o bulbo de percussão. O choque, para determinar os estilhaços, deve ser aplicado numa direção e com uma força que, na maior parte das vezes ressupõem uma intervenção consciente, mas em bilhões de choques provocados pela ressaca nos seixos ou pela queda de uma cascata, o acaso determina um certo número de lascas de aparência humana”.
Se a pedra foi apenas lascada, o traço cultural permanece incerto. Mas se ela foi polida, o reconhecimento da forma que lhe imprimiu o trabalho (o “espírito” segundo os idealistas) está inscrita em sua materialidade, caracterizando-lhe o caráter cultural.
No capítulo do Capital, livro I, que leva por título "Processo de trabalho e processo de valorização", Marx define o trabalho como processo entre o homem e a natureza, no qual o homem, por sua própria ação, medeia (vermittelt), regula e controla seu metabolismo (Stoffwechsel) com a natureza. Ele próprio se conduz diante do substrato natural (Naturstoff) como uma força natural. Põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar através desse movimento sobre a natureza exterior a ele, e ao modificála, ele modifica conjuntamente sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nele adormecidas e subordina o jogo de suas forças a sua própria dominação.
O trabalho aparece aqui no pólo oposto à natureza, embora a ela umbilicalmente ligado. O homem está posto, enquanto se constitui pelo trabalho, como força natural. Mas ao moldar e transformar a natureza externa, ele transforma ao mesmo tempo sua própria natureza. Resta determinar o significado (ontológico, diriam alguns) desta transformação em que o trabalhador ainda não humano, ao apropriar-se da matéria natural numa forma útil para a conservação de sua própria vida, auto-produz uma natureza própria que já não é mais a própria natureza. A questão não escapou a Marx, que esclarece:
Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. O estágio em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que o trabalho humano ainda não se tinha desfeito de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que ele pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera”.
Excluir do foco teórico as “primeiras formas instintivas, animais, de trabalho”, portanto ressupor o homem, é um procedimento inteiramente válido na economia política, como também é, para o biólogo, pressupor a vida. Assim como Darwin desvendou a lógica da evolução das espécies bem antes de Mendel desvendar as leis da hereditariedade e da bioquímica descobrir o ADN[6], Marx deslindou a lógica objetiva do capital, deixando em aberto o esclarecimento do processo que conduziu o hominídeo a produzir seus meios de existência material por uma forma exclusivamente humana de trabalho. Evidentemente, nem por isso a biologia deixa de se interessar pela origem da vida e o materialismo histórico pela do trabalho.
Marx não se limitou, entretanto, a declarar no Capital que seu ponto de partida é o trabalho humano e que, portanto a hominização (=o processo em que primatas se tornaram homens) está pressuposta. Assinala a técnica embrionária de outros viventes, notando porém que “o emprego e a criação dos meios de trabalho, embora se encontrem em germe em algumas espécies animais, caracterizam o processo de trabalho especificamente humano”, que ultrapassa a “primeira forma instintiva” de trabalho. O que distingue a aranha do tecelão e o pior arquiteto da melhor abelha é que eles constroem o tecido e o favo na cabeça, antes de produzi-los. Mas então em que estaria superada a velha metafísica que distinguia o homem dos demais animais pela consciência e pela razão? Contentar-se com a resposta habitual, a saber, que o homem se auto-produz pelo trabalho seria cometer petição de princípio: o trabalho produz o homem quando e porque ele começa a trabalhar de forma exclusivamente humana. No mínimo, seria preciso saber se a mão não foi tão importante quanto o cérebro para o salto evolutivo do homo sapiens.
É de Friederich Engels, apoiado em sua notável cultura científica, o grande mérito de ter encarado, em um dos mais notáveis tópicos de Dialética da Natureza, “o trabalho como fator da hominização do macaco”, a até então não estudada questão da determinação recíproca do trabalho e da hominização. Consideremos, para permanecer na ordem animal a que pertencemos, dois primatas, um macaco e um homo sapiens. Por que o macaco, quando colhe um fruto, não trabalha, mas o homo sapiens trabalha? Seria porque o fruto, no alto da árvore, refletiu-se em sua percepção visual? Não, porque os macacos, salvo acidente individual, tampouco são cegos. Se a “ideia” de apanhar o fruto, que surgiu no cérebro do homo sapiens, não tivesse surgido no cérebro do macaco, ele teria permanecido tranqüilo em seu galho. Seria então porque falta aos demais primatas a capacidade de antecipar no cérebro a colheita do fruto como satisfação de uma carência alimentar, isto é, de passar do reflexo ao télos? Esta é a resposta de Marx, mas cabe então esclarecer em que consiste o telos compreendido como antecipação cerebral do ato aquisitivo e como provar que é monopólio do homo sapiens? Pela consciência? Não estaríamos diante de um círculo: provamos o telos pela consciência e esta por aquele?
Ao muito pouco conhecido entre nós, mas imprescindível filósofo marxista Tran-Duc-Thao, devemos a mais avançada reconstituição hipotética da evolução dos antropóides aos pré-hominídeos e destes ao homo habilis, através notadamente da sinergia entre mão e cérebro, trabalho e linguagem. A destreza das mãos do homo sapiens, assim como o exponencial desenvolvimento de sua capacidade cerebral resultam de respostas adaptativas bem sucedidas, mas sempre aleatórias (salvo a reintroduzir o dedo de Deus na seleção natural) aos impasses da evolução. Permitiram, notadamente, o salto evolutivo decisivo que consistiu em passar da utilização de instrumentos stricto sensu (objetos naturais utilizados como meios para obter um bem de consumo) à produção de ferramentas, isto é, de meios de produção produzidos pelo trabalho, em que se concretizou a capacidade propriamente humana de impor formas úteis aos objetos naturais. Todo instrumento serve para, mas a ferramenta, instrumento autonomizado em relação à situação biológica concreta, é produzida afim de servir para. Só quando o hominídeo, ultrapassando a atitude aquisitiva própria ao aqui e o agora (condicionada pelo reflexo sensório-motor no contexto biológico imediato), tornou-se capaz de elaborar a imagem abstrata da forma instrumental, configurou-se o processo de trabalho especificamente humano, que consiste em impor aos objetos naturais uma forma útil plenamente adaptada a seus fins.
Historicidade da noção de forma
O significado histórico da noção de forma e das relações entre suas duas acepções principais. Na mais trivial, em que se opõe a conteúdo, ela denota configuração exterior, aparência, ao passo que, oposta a matéria, assume o significado ontologicamente forte de essência, que a escolástica medieval herdou da filosofia aristotélica. O primeiro sentido predomina na linguagem corrente, o segundo na linguagem filosófica.
A concorrência destes dois significados de forma remonta ao latim clássico. Arriscamo-nos a afirmar que o sentido filosófico forte, próximo ao de essência e explicitado na expressão forma substancial, provém da tradução pelos filósofos romanos dos termos gregos eidos, idea e ousia, consolidada no léxico filosófico medieval. Tanto assim que sofreu duro contra-golpe com o surgimento da moderna ciência da natureza. Ao explicarem os fenômenos físicos em termos de extensão ou distância, massa e força, portanto de matéria em movimento, a filosofia cartesiana, a cosmologia heliocêntrica e a física newtoniana excluíram das leis naturais a noção de forma, dissociando-a de matéria, a qual, entendida como “res extensa”, massa corpórea, adquiriu significado autônomo, portanto não-relacional. Sustentando que o cosmos é matéria em movimento, a filosofia materialista evidentemente reforçou esta mutação semântica.
Nem por isso, entretanto, a noção física de forma foi abolida. Continuou a ser utilizada para denotar agregados estáveis de matéria, das concentrações de massa que formam os corpos siderais, às partículas intra-atômicas que formam os átomos. Na física moderna, este uso, implícito na noção de corpo, permaneceu descritivo. Mas quando passamos dos átomos às células e destas aos organismos, portanto da física à biologia, a consideração da forma, manteve, sobre uma nova base teórica (a evolução das espécies), importância decisiva. Compreendida como espécie em ato (e não apenas como noção classificatória), a forma é o patrimônio, enraizado no código genético, que uma geração transmite à seguinte. No estudo da vida, ela é, pois tão importante quanto a matéria. É impossível estudar um organismo sem determinar a função dos órgãos que o compõem, sem, portanto levar em conta sua teleologia imanente: não podemos compreender o pulmão sem relacioná-lo com a oxigenação da corrente sangüínea, nem o fígado e o estômago sem a digestão etc. A biologia científica se distingue das velhas metafísicas do princípio vital por considerar as formas orgânicas produtos da evolução natural, cuja teleologia interna é o resultado aleatório de uma adaptação àquilo que hoje chamamos “ecossistema” e não a objetivação de essências eternas ou criadas por Deus “ex nihilo” e salvas da extinção aquática pela arca de Noé".
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