09/03/2016

Na Casa do Porco moram o excesso e a indulgência...

Hubo seis cosas
en la boda de Antón:
cerdo, cochino,
guarro y lechón.
(Aragón)

Não há ali nada que lembre a sujidade. O porco da Casa do Porco é limpo. São mais de 10 mil clientes por mês dispostos a esquecer que esse animal, outrora, foi o símbolo da impureza. Até hoje judeus e mouros o evitam e, não por acaso, na Península Ibérica, na Espanha dos Reis Católicos, funcionava como um importante marcador das fronteiras da cristandade. O jamón ibérico era uma espécie de múmia cristã, comida em finas fatias como uma hóstia. Mas na Casa do Porco as pessoas em geral - inclusive judeus pouco afeitos à ortodoxia religiosa - se fartam e se lambuzam no porco. Não há religião nem vegetarianismo (essa proto-religião) que sirva de freio.

Sim, come-se bem. Como em todo lugar onde Jeferson Rueda cozinha ou cozinhou (como naquele lugar de onde foi expulso há cinco anos), pois se trata de um cozinheiro de primeira linha. Liberto, resolveu dar asas à sua paixão monotemática pelo porco.

Evidentemente, ele sabe, poderia fazer coisa melhor. E está lutando por isso, procurando normalizar uma produção suficiente de porcos que não nos remetam àquela coisa industrializada da Sadia, através da recuperação de plantéis de porco caipira. Em breve conseguirá, e tenho certeza que não teremos mais saudades daqueles cochinillos que se pode comer em Espanha e Portugal e raramente aqui.  Esse porco - o bom porco - está tão enraizado em nossa alma que não é à toa  que o prato mais célebre daquele que pode ser o mais antigo restaurante do mundo - o Sobrino de Botin - é o leitãozinho assado em forno multicentenário. Quando esse dia chegar, é provável que mesmo os embutidos que Jefinho coleciona, de alguns fornecedores artesanais daqui, serão substituídos por aqueles exclusivamente seus. 




Na Casa do Porco Jefferson abandonou a fixação pelo vago “porco à paraguaia” e se entregou em livre imaginação ao porco sob várias formas. Até mesmo ao japonismo embutido no porco e desperto pela Saiko, sua parceira de cozinha.

E paulistano gosta mesmo de coisa didaticamente monotemática. Vide as churrascarias onde, num mesmo prato, a fraldinha faz companhia para a picanha e esta para o cupim ou a costela, todos ladeados pelo contra-filé... Nesse mundo das diferenciações sutis entre o mesmo (e não há outra razão para que exista o "rodízio de carne"), Jefferson foi buscar até a goiabada para destacar a barriga de porco das barrigas de porco que infestam a cena culinária há anos, como se fosse um sushi. A casa é frequentada também por muitos japoneses, o que confere um certo verismo a esta estratégia.

Pois esse pot-pourri de porco compõe mesmo uma boa refeição, além de única na cidade. Só isto bastaria para se reconhecer que os méritos do Jefinho vão além da exatidão diante do fogão. Talvez ele tenha restaurado, mesmo que sem querer,  exatamente aquilo que vigorava na Espanha católica: a noção de fronteira, tendo o porco por epicentro.

Em primeiro lugar, uma fronteira entre a cidade considerada podre (o centrão) e a cidade limpinha, na qual circulamos sem olhar em volta. Plantado no centrão, não há como ignorar o que está em volta e se dar conta de que a vida pulsa muito além dos jardins; e se essa estratégia urbana prosperar, a pocilga humana certamente desaparecerá daquele horizonte.

Em segundo lugar, mostra que é possível desbancar o boi do centro dos desejos da carne. O mundo Friboi não é um universo em expansão ilimitada e isso precisa ficar claro. Há alternativas, como se vê. Por fim, mas não menos importante, rompe os espartilhos do prazer, apertadinhos nos limites das dietas modernas. A Casa do Porco é um lugar de excessos.

E se é um lugar de excessos, por que tanta gente se acotovela horas na fila para “provar” do porco excessivo? Talvez caiba como explicação generalizar o que diz Montalbán exclusivamente sobre o presunto ibérico: “perseguido durante décadas por dietistas insuficientes e inquisidores, o presunto foi reabilitado como a sardinha e embora aporte mais colesterol do que o devido, não complica as calorias e se come com prudência e engorda a alma mais que o colesterol ou o ácido úrico em tempos em que a alma está tão anoréxica que seria extrema crueldade proibir-lhe o presunto”.

1 comentários:

marco disse...

Primorosa análise histórica e culinária do ingrediente e do trabalho consistente e corajoso de Rueda. Texto de um esteta, verdadeira aula. Ou seja, aplausos a ao chef e ao autor.

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