09/06/2016

Gastronomia molecular: quando ter história não é o mesmo que envelhecer


Às vezes é preciso ganhar perspectiva para poder melhor compreender uma obra. E, como dando um passo atrás no museu, a gastronomia molecular pode ser melhor vista dessa perspectiva de seus quase 30 anos de surgimento. Pois ela foi fruto da associação entre dois cientistas - Nicholas Kurti e Hervé This - com o propósito de introduzir o espírito cientifico num domínio da cultura absolutamente cristalizado, esclerosado tecnicamente, como se vivêssemos em 1900.

Desde os “seminários de Erice” em 1990, quando esses dois cientistas começaram a fazer uma discussão sistemática dos fenômenos físico-químicos que ocorrem nas panelas em estreita colaboração com cozinheiros profissionais, e chamaram a cozinha, metaforicamente, de “laboratório”, despertou-se um novo tipo de curiosidade entre os profissionais da área. Aliás, a ciência já vinha avançando em terreno próximo, a enologia, desde 1980, quando surgiu o livro Le goût du vin, do químico Émile Peynaud, mostrando o quanto era amplo o deficit de conhecimento materialista.

O expoente da nova corrente gastronômica, Ferran Adrià, registrou que sua vida mudou totalmente quando assistiu a uma conferência de Hervé This e percebeu que poderia construir uma cozinha em bases absolutamente novas - o que resultou na “culinária molecular” (termo utilizado por Hervé para diferenciar a aplicação técnica das noções propriamente científicas da física e da química, e que Adrià odiou, preferindo rebatiza-la de cozinha “tecnoemocional”). O fato é que a cozinha experimental mudou mesmo, cumprindo um ciclo que, simbolicamente, se encerrou com o fechamento de El Bulli. Mas, qual foi o legado desse longo período?

Do ponto de vista da gastronomia molecular, foi possível desde responder a questões banais - como, por exemplo, por que a cocção do brócolis produz mau cheiro; se acrescentar açúcar ao molho de tomate reduz de fato sua acidez; que o bolo cresce por conta do fermento e não da clara batida; etc - até mostrar a caducidade de velhas noções como a de que cozinhar é submeter uma matéria prima alimentar a uma fonte de calor, desconsiderando outros procedimentos que, igualmente, produzem a desnaturação das proteínas. Essa revisão de processos culinários permitiu, num plano estrutural, rever a própria organização das receitas tradicionais, mostrando que elas, além da indicação de matérias primas e quantidades, da eleição de processos de cocção, escondiam normalmente noções absolutamente impertinentes - como afirmar que mulher menstruada não pode fazer maionese que esta desanda… A esses ruídos nas receitas Hervé chamou “precisions”, abrindo o terreno para a crítica da literatura culinária do ponto de vista da física e da química. 

Ainda é necessário fazer um balanço de todos os impactos duradouros da gastronomia molecular, mas muita coisa já é visível. Por exemplo, a simplificação de processos, como as maneiras de fazer mousse a partir da compreensão do comportamento físico das emulsões em geral, ou ainda a produção das famosas “espumas”; o impacto do binômio tempo/temperatura na cocção de diversas matérias primas (o ovo, as carnes, os legumes); o desvendamento das estruturas presentes por trás de um sem número de receitas, como os molhos, a partir do estudo do “formalismo” em química, assumindo-se que os “sistemas dispersos” permitem uma análise combinatória que reduz os mais de 400 molhos da cozinha francesa a pouco mais de 26 fórmulas. 

Por fim, mas não menos importante, registre-se o destaque que Hervé This deu à nova compreensão da fisiologia humana, baseada em estudos genéticos e neurológicos das últimas décadas, que nos mostram que o “gosto” não é o mesmo que “sabor” e que o organismo humano, na própria apreciação do alimento, é uma “totalidade que conhece” através da mobilização de todos os sentidos. Tudo isso e muito mais tem um grande impacto na explicação e aprendizado dos processos culinários, que só mostrarão plenamente sua utilidade quando o sistema de ensino conseguir se abrir para questionamentos que, pelo apego à tradição como valor cultural, ainda recusam. Independente das “resistências”, as experimentações prosseguem, ainda que em menor rítmo e devem produzir inovações futuras - como a cocção com ultra-som…

Já o impacto e assimilação das “descobertas” científicas na cozinha dos restaurantes, quase sempre tendo um chef curioso e inovador à frente, resultou na “cozinha molecular” cuja principal característica foi adotar os processos revelados para produzir pratos surpreendentes, em geral apoiados numa nova geração tecnológica de equipamentos que incorporam a precisão da nanotecnologia, permitindo redefinir, através dos novos efeitos levados à mesa, o que a sociedade entendia por “gastronomia”. 

Essa demanda por inovação tecnológica foi tão forte que ensejou o surgimento de empresas como a International Cooking Concepts, especializada nos novos gedgets culinários para profissionais, e a abertura das universidades - especialmente espanholas - para formas inéditas de cooperação com cozinheiros, resultando no desenvolvimento de máquinas improváveis, como a Gastrovac, que permite cozinhar a pressões bem inferiores a uma atmosfera, produzindo efeitos nunca vistos. O próprio Adrià cuidou de lançar uma linha de produtos químicos úteis na cozinha. 

No conjunto, os chefs, considerando o conhecimento da nova fisiologia humana, puderam construir pratos capazes de impactar de maneira mais ampla os comensais, criando a magia da ilusão que a aplicação de novas técnicas permitia (como o famoso caviar de melão de Adrià ou o recente tomate em forma de morango de Achatz); das novas texturas (a maciez da carne a baixa temperatura, do “ovo perfeito”, dos gels, dos azeites solidificados pelo nitrogênio líquido) etc - tudo construindo o encantamento de uma cozinha que nunca antes existiu. Mais do que nunca, a “surpresa” passou a ser o adjetivo gourmet de maior circulação nos restaurantes estrelados mundo a fora.

Mas a sociedade moderna está submetida a mecanismos incontornáveis de saturação, de modo que o marketing rapidamente assimilou os conceitos e inovações como base de um novo avanço sobre o mercado alimentar, vendendo a idéia de que um mundo novo é possível desde que se tenha dinheiro e conhecimento específico, entendido este como refinamento cultural de natureza “gourmet”. Ao fazer isso, escancarou o DNA da inovação culinária moderna e os chefs, de repente, viram seu conhecimento banalizado, necessitando de novas estratégias para prosseguir surpreendendo. 

A descoberta do Noma foi o sinal dos novos tempos, e os chefs foram busca a  “nova inovação” nos discursos que a sociedade balbuciava sobre a necessidade de reverter a destruição ambiental, ter uma alimentação mais “saudável”, revalorizar o artesanato diante da brutalidade da indústria, etc. Mas é certo que o atual “culto aos ingredientes” e a consequente mistificação dos seus territórios, ainda que coerente com o discurso desejado pela sociedade a respeito da alimentação, traz o risco de uma guinada reacionária, na medida em que se volta à tradição e se reduz a cooperação científica com a cozinha a uma “moda” semelhante a toda e qualquer “moda gastronômica”.


O próprio Hervé parece ter abandonado o terreno hard das ciências para se dedicar a composições culinárias baseadas nos ensinamentos que divulgou, como a mostrar que é possível ser ainda “mais criativo” utilizando compostos puros ou misturas de compostos, obtidos pelo fracionamento de tecidos de plantas ou animais, o que ele chamou de “cozinha nota a nota”. É bem provável que esta não chegue a ser uma nova moda, mostrando como a gastronomia molecular é ainda um conhecimento confinado no seu próprio tempo.

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