Há muitos graus de institucionalização do cozinhar para o público. Em geral as análises se demoram nos graus superiores, isto é, nos restaurantes, lanchonetes, rotisseries com portas abertas para a rua. Esses são sempre submetidos às normas da vigilância sanitária e outros parâmetros do poder público para que possam funcionar. Por esse enquadramento inflexível, também são eles que sentem os impactos da crise econômica de maneira quase insuportável.
Como adaptação mais flexível, recentemente assistimos ao boom dos foodtrucks, uma espécie de instituição sobre rodas, um menor investimento de capital que o poder público determinou onde pode e onde não pode estacionar, limitando seu escopo. No extremo oposto, temos pessoas “não-institucionalizadas” que percorrem as ruas com sacolas, tabuleiros desmontáveis, carrinhos de pedreiro improvisados em expositores, kombis caindo as pedaços, que fornecem alimentação a milhares e milhares de pessoas cotidianamente. São cercados de informalidade, mas também de desconfianças em relação à qualidade, higiene, etc.
Mas comer é um problema com múltiplas soluções urbanas. Uma delas é um movimento genuíno de inovação em curso. O tipo de atividade que vem se multiplicando nesse cenário, e em ritmo acelerado, é a produção quase monotemática feita por pessoas em geral de classe média, com algum tipo de formação em gastronomia ou nutrição, ou que, explorando a tradição familiar, entendem que podem ocupar um lugar ao sol. Oferecem sempre algo que tem um toque de "único" ou "exclusivo" e esse é seu charme.
Como formigas, trabalham sem jornada estabelecida, segundo o ritmo variável da demanda. São quase todos artesãos especializados que escoam seus produtos por canais familiares, informais, ou através das redes sociais. Propagandeiam o que fazem pela net, tomam pedidos, entregam em casa através de serviços de motoboys, de bicicleta ou diretamente. A marca desse estilo de trabalho artesanal é a especialidade, flexionada pela percepção de nichos (comida “natural”; vegana; pães especiais; comidas étnicas, etc) e pelo serviço conveniente de entrega. Um sintoma de crescimento desse segmento é a multiplicação de cursos de formação em panificação, geléias, etc.
Esses pequenos empreendimentos incluem desde sítios com produção “orgânica” de hortaliças comuns ou incomuns (PANCs), até produtos diversos, elaborados domesticamente: bolos com receitas de família, tortas, iogurtes, sopas, molhos e temperos, botarga, confits de pato e outras carnes, massas recheadas, geleias, etc. É o home made que dá as caras para um público cada vez mais amplo mas, não raro, de costas para as exigências do poder público para esse tipo de atividade.
Do ponto de vista da formalidade, alguns são microempresas para poderem se relacionar com o mercado institucional nas operações de compra e venda, mas muitas sequer são empresas constituídas. Não é impossível encontrar coisas produzidas por elas no Santa Luzia ou em prateleiras de alguma delicatessen de bairro. Às vezes também aparecem em feirinhas ou eventos “gourmets”. Todas certamente zelam por padrões de qualidade e higiene que, com freqüência, podem faltar em restaurantes, lanchonetes e rotisseries institucionalizadas.
Talvez o horizonte dessas unidades de produção doméstica seja, algum dia, se formalizarem para abrir uma porta na rua, dar a cara pra bater pra valer. Há exemplos bem sucedidos de trajetórias nesse sentido, o que incentiva as expectativas gerais. Enfim, um empreendedorismo que hoje dinamiza o setor de alimentação de maneira muito própria.
É difícil avaliar sua extensão, mas é importante estar atento a esse tipo de artesanato por varias razões. Em primeiro lugar porque é um modelo de negócio que cresce numa época de crise econômica, quando o custo do capital é insuportável para o pequeno produtor. Em segundo, porque desnuda desejos do publico consumidor que os grandes e médios comércios alimentares não são capazes de atender a contento. Por fim, porque potencialmente reviram a pauta de consumo da sociedade num plano micro, mas não por isso menos eficaz.
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