08/09/2016

Dois ou três pontos sobre o “ponto correto" das carnes

Esse negócio de “ponto” correto da carne ou do peixe sempre me intrigou. É mais ou menos claro que o assunto aflora na rabeira da nouvelle cuisine, portanto faz quase meio século. 

Surge escancarado em Bocuse que, depois de visita ao Japão, se deu conta de que era possível cozer de outra maneira a ervilha. Gualtiero Marchesi leva a questão para a culinária italiana e surge a massa “al dente”, assim como o risoto, e o molho de tomate de cocção leve. As tradições francesas e italiana não eram assim. Ao menos como moda (no sentido estatístico da palavra).

Ao contrário do que parece, o cozido não é gradual, mas um umbral. Não existe o “meio cru” nem o “meio podre”, e o cru se opõe ao cozido não em termos absolutos, mas nos termos consagrados pela cultura. Para os franceses, mi-cuit se aplica a coisas que se comeriam cruas. Já os chineses, antes da invasão dos mongóis, os consideravam “bárbaros" por comerem carne crua. Os chineses raramente se limitam a utilizar uma só técnica de cocção em um prato. Associam várias. E nem colocam a água “crua” na boca. Seriam a civilização do over cooked por excelência?

A tradição brasileira. O moquém é sempre over cooked, especialmente porque a sua função, muitas vezes, é desidratar ao máximo a carne que, depois, será reidratada. Temos também a carne de sol, que fornece outro parâmetro. E as moquecas, onde o peixe fica lá, perdendo suco, pois se quer confundi-lo com o próprio molho.


O “ponto” tornou-se um cânone da boa cozinha. Como um meme, viajou pelas mentes dos cozinheiros e críticos gastronômicos pelo mundo todo. Hoje virou um discurso propriamente gastronômico, onde se compara o ponto da carne servida com o ideal da carne cozida. Ninguém mais parece ter dúvidas a respeito.

Mas ainda há os “pontos” que não pegaram entre nós. Como o do peixe. O rosé à l´arêteMuitos chefs dizem não praticá-lo porque não é incomum os clientes devolverem, dizendo que está “cru”. Mesmo aqueles acostumados ao sushi-sashimi. Não se trata, pois, de um “ponto”, mas de um nó cego na cultura.

Cozinha-se sempre de um modo determinado, que inclui o “ponto”. A mudança desse paradigma na cultura culinária ocidental faz-se aos poucos, e através de mecanismos de imposição (escolas de gastronomia, crítica especializada, etc). E, justamente porque o novo paradigma ainda não se impôs por completo, é preciso ser tão enfático quando se fala em “errar o ponto”. 

Há uma idéia evolucionista por trás disso: se supõe que a gastronomia vá sempre “para a frente”, quando, na verdade, apenas varia de modo mais ou menos errático…

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