23/09/2016

Um “esmeril de civilização" para a gastronomia brasileira


Conheci o professor Paulo Duarte nos anos finais de sua vida (morreu em 1984). Sua aparência era ainda a de um perfeito dândi, em sua inefável gravata borboleta, e confesso que tinha dificuldade em conjugar a pessoa com os feitos heróicos que lhe eram atribuídos. Como a luta incansável pela preservação dos sambaquis, ou o dia em que enfrentou o ministro da justiça da ditadura, Gama e Silva, no Conselho Universitário da Usp que, depois de ameaçar os seus pares, se auto denominou dedo-duro. E Paulo Duarte acrescentou, na lata: “Dedo-duro e miolo mole!”, o que certamente foi a causa primária da sua aposentadoria compulsória e cassação de direitos.

Era um homem de perfeita cultura francesa, tão ao gosto das elites paulistanas às quais pertencia.  França que, para ele, era sinônimo de erudição e refinamento dos costumes. Inclusive gastronômicos. E é nessa linha que se situa um pequeno livro seu, escrito quando vivia em Portugal, intitulado Variações sobre a gastronomia, surgido em 1944 em Lisboa.

Um livro eclético, de ensaios, ocupando-se da “cozinha e sociologia”; dos vinhos - especialmente de Portugal; dos seus encontros com Curnonski; de curiosidades sobre culinária que abarcam dos antigos romanos à França moderna, etc. Mas em certa passagem, em que se ocupa das cozinhas ibérica e latino-americana, encontram-se as considerações mais interessantes. 


De saída, diz reconhecer que a base da cozinha brasileira é a portuguesa, “com três fortes influencias: indígena, negra e francesa e, mais no centro do país, um influxo sensível da cozinha espanhola”. A influencia portuguesa é clara nas peixadas derivadas do uso do bacalhau; a espanhola, no arroz de forno; a francesa, “nos centros mais adiantados, lixando arestas, equilibrando os ingredientes, de maneira a dar-lhes umas tintas suaves a que o trópico resiste com veemência. Uma das raras comidas refratárias a essa influencia amenizada é a célebre, rude e, às vezes, brutal feijoada que, erradamente, muitos crêem ser o prato típico brasileiro. O prestigio culinário francês também se manifesta em algumas partes do Brasil pelo amor à variedade de legumes, ao contrario do que se passa com os portugueses que são pouco vegetarianos”.

Entre as adaptações puramente brasileiras da herança lusa assinala a substituição, nos cozidos, da carne de porco pela carne de boi. Mas, mais do que a história, Paulo Duarte fixa-se nos “estilos”, e sobre a cozinha brasileira - como à latino-americana em geral -  parece-lhe que , “embora saborosíssima, ressente-se muito de um defeito comum também na portuguesa e espanhola: a preocupação da quantidade e o abuso de certos temperos, como o alho, a cebola, as pimentas, o orégano, o cominho”.  Em outras palavras, faltam a essas cozinhas o “afrancesamento” ou, como ele diz, “um esmeril de estilização”.

Compara-nos à situação da França no século XVII, sob Luiz XIV, olhando mais a quantidade dos pratos do que “aquela finura que Carême haveria de fixar para sempre”. E, nos vê num momento de transição semelhante, isto é, como “uma cozinha que andou amealhando material durante alguns séculos e está esperando um grande artista para ordenar, classificar as coleções, estabelecer a sua sistemática, dar um estilo próprio ao grande monumento”. 

E eis que ele mesmo se inscreve nessa história: “Houve um tempo em que, à espera desse gênio, pensei fazer qualquer coisa, no Brasil. Cheguei mesmo a obter uma lei municipal da cidade de São Paulo, para a criação de um restaurante onde técnicos procurassem estilizar os pratos nacionais, dando-lhes essa dosagem que é a alma da finura gastronômica da França e de alguns poucos países. Minha lei não chegou a ser executada, porque os estadistas modernos, em geral, preferem a cozinha em sua primeira fase”.

Informação que eu desconhecia e que, certamente, vale como tema para os estudiosos de nossa história. O “estilo francês” era sua preferencia pessoal (ele que era praticamente um francês expatriado...), numa época em que Gilberto Freyre já havia publicado seus livros e Camara Cascudo trabalhava no seu. Agora, a precisão  de “ordenar, classificar as coleções, estabelecer a sistemática” da cozinha brasileira continua como necessidade não atendida, visto que muito de nossa culinária não cabe no figurino francês ou qualquer outro figurino estrangeiro. Afinal de contas, como você classificaria, por exemplo, a paçoca de amendoim?



1 comentários:

Felipe BRUK disse...

Gostei bastante da matéria professor! Adorei as referências bibliográficas.

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