A história da gastronomia moderna inclui a consciência de que o prazer à mesa transcende as sensações do paladar, abarcando os demais sentidos que possam ser mobilizados na mesma experiência alimentar. Um deles, a visão. O food design é expressão disso, mas não só ele.
Desde a nouvelle cuisine, que adotou a prática de servir a comida já empratada, o prato em si tornou-se uma superfície passível de ser trabalhada num sentido plástico, como expressão do cozinheiro. A comida passou a ser similar a uma composição sobre a tela em branco (canva).
Mas a moderna gastronomia foi indo, foi indo, e se emperiquitou demais. Até os pratos sofreram por essa diretriz over. Sim, porque depois da chamada “crise do suporte” nas artes plásticas, houve a crise do suporte-prato de porcelana (china). Uma série de novos materiais surgiu em seu lugar, incluindo cerâmica, metais, vidros e até espelhos sendo que, no limite a comida pode ser disposta diretamente sobre a superfície da mesa ou balcão.
No principio reconheceu-se a influência do japonismo que, depois, foi nominalmente deixado de lado, apesar de que a atual hipervarização das cerâmicas é um traço remanescente dele.
Mas, no Japão, não há distinção entre continente e conteúdo no prato. A cerâmica, como a comida, estão no mesmo nível de importância na produção do prazer. É possível comer-se numa cerâmica de 500 anos - uma verdadeira relíquia - e, obviamente, a mesma comida será ofertada com preços distintos, conforme me explica Telma Shimizu Shiraishi. Come-se a plasticidade, sem distinção entre o artista e o artesão, o cozinheiro e o ceramista.
No Ocidente, onde essas duas dimensões são separadas, muitas obras entraram para a história da gastronomia mais pelo apelo visual do que pelo sabor tradicional. Como o magnífico risotto al nero di seppia, de Gualtiero Marchesi, de 1995; isso depois do sucesso do seu risso all´oro - certamente decorado com ouro para "agregar valor" ao prosaico risoto milanês, tornando-o desejável para os endinheirados árabes do petróleo que, naquela época, passaram a circular pela Europa.
Hoje reina a aparência de extrema liberdade na composição culinária, mas se nos ativermos ao que aconteceu com a porcelana e seus substitutos não é bem assim.
Todo mundo lembra da ardósia à mesa. Agora, vivemos o império da cerâmica em colorações que vão do marrom ao azulado, passando pelo preto - tudo em infinitas formas.
Todo mundo lembra da ardósia à mesa. Agora, vivemos o império da cerâmica em colorações que vão do marrom ao azulado, passando pelo preto - tudo em infinitas formas.
A rigor, foi o “neutro” branco da porcelana que cedeu lugar a um cromatismo e variação de formas que passou a integrar a intenção criativa dos chefs. As filières, moda derivada da apresentação dos sushi, exigiram pratos horizontais diante do cliente. E o diálogo ceramista-chef tornou-se uma necessidade. Mas, para além da forma, foram as cores que mais impactaram a gastronomia.
Valorizando contrastes, um molho marrom não pode ser servido numa cerâmica marrom, por exemplo. Desse modo, uma “amarração” que não existia sobre o branco, passou a existir e a influenciar toda a produção comestível ao estabelecer uma relação suporte-cor da comida.
Isso é bem notável ao se analisar as fotos dos pratos dos chefs ranqueados no 50 Best-América Latina. Dê uma olhada. Predominam o marrom, o cinza, o beje, o azulado. E o contraste com a cor escolhida exige, no que é comestível, o uso de ingredientes vermelhos, amarelos, brancos e assim por diante. Uma dialética da cor sobredetermina aquela dos sabores.
Isso é bem notável ao se analisar as fotos dos pratos dos chefs ranqueados no 50 Best-América Latina. Dê uma olhada. Predominam o marrom, o cinza, o beje, o azulado. E o contraste com a cor escolhida exige, no que é comestível, o uso de ingredientes vermelhos, amarelos, brancos e assim por diante. Uma dialética da cor sobredetermina aquela dos sabores.
Desse modo, certos cacoetes vão se formando, à semelhança da moda dos crocantes. A razão profunda é essa: “cromatizar” a comida.
Na medida em que a gastronomia vai sendo pensada “para o Facebook ou Instagram”, mais se aprofunda a preocupação plástica. Nessa linha, as antigas receitas vão cedendo espaço para as novas composições, consolidando um momento cultural onde o comer está em novo enquadramento. A feiura da feijoada, da vaca atolada, do chambaril, vão ficando sem lugar.
Será que certos sabores não vão deslizando, lentamente, para fora do campo do usualmente comestível, por conta do domínio estético-visual? Onde isso vai dar? É cedo para saber... Sugere-se apenas que se pense no efeito da estetização plástica sobre o paladar.
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