30/11/2016

Lembranças do turismo revolucionário em Cuba



“Pero no hay como aqui: las cosas son lo que son porque son otras”
(
Julio Cortázar)




I

A muralha do malecon impunha um limite ao mar para que Havana pudesse existir. Era o que parecia, desde um andar alto do hotel Riviera de onde era inevitável apertar os olhos para tentar enxergar Miami em meio à névoa, tanto se apregoava nas rádios  que o povo cantava e se divertia a apenas 70 milhas do imperialismo. 

Fui parar lá por ter ajudado a organizar uma comitiva de parlamentares em visita à ilha, arregimentada por Fernando Morais. Era o ano de 1980 e era preciso forçar o governo brasileiro a atentar para a necessidade de restabelecer relações diplomáticas com Cuba - coisa que só aconteceria 6 anos depois - em vez de seguir de modo carneiríl a política norte-americana. Para a minha geração era um verdadeiro mistério como aquele paizinho conseguira fazer o que nós, nem de longe, conseguiríamos aqui, ainda mais no Brasil visto dos extertores da ditadura militar. Era Fidel contra João Batista Figueiredo.

Depois de longa viagem, passando pelo Panamá e Cidade do México, chegamos a Havana com uma excitação típica de um grupo de adolescentes, não sem antes experimentar a estranha sensação que o avião ilyushin soviético proporcionava ao descer, enchendo-se de uma nuvem de vapor que impedia que se enxergasse algo a mais de dois metros de distancia.  Dissipada a nuvem, a recepção calorosa dos camaradas cubanos já no aeroporto, podendo-se ver no percurso o free shop onde se compraria, na volta, o rum e as caixas de charuto. 

Alguns de nós fizemos questão de ter o passaporte carimbado, colecionando um troféu juridicamente inútil, visto que os países não tinha relações diplomáticas. Era a marca indelével da transgressão. 

Nos distribuíram por dois hotéis - o Nacional e o Riviera - e, já no dia seguinte, sempre acompanhados por um gentil companheiro, começamos o que o poeta Hans Magnus Enzensberger chamaria depois de “turismo revolucionário”: o circuito obrigatório no qual se tinha contato direto com os feitos da revolução, as entrevistas com dirigentes, a visita às instituições populares e, claro, uma noitada na boate Tropicana, o direito de fazer fila para comer um horrível e dulcíssimo sorvete na Copélia, bem como uma chegada ao Floridita e ao Bodeguita, seguindo os passos de Hemingway. Algumas visitas eram bem chatas, como aos órgãos legislativos; outras, fascinantes, como a visita a uma instituição para doentes mentais ou a visita a uma vila rural, construída depois da revolução segundo uma filosofia de urbanizar o campo, tudo bem explicado por um irmão de Fidel, Ramón, que insistia com os brasileiros para não chamá-lo de jámon (presunto) através de um exercício linguístico tão ineficiente como o que fazíamos para ensina-lo a dizer Pelé e não Pelê… 

E fomos também a Varadero, onde aconteceu de visitarmos a antiga mansão da família Dupont e, surpresos, vermos o deputado cearense (da Arena), Haroldo Sanford, derreter-se em lágrimas, pois havia passado ferias de infância nessa casa, agora transformada em clube popular, lotada de negros que pareciam se divertir à grande, indiferentes às lágrimas de Sua Excelência.

Dentre os dirigentes que conhecemos um me impressionou muito: um militar muito alto, cabelos brancos, olhos azuis, que, de farda e coturno, sentado à cabeceira de uma grande mesa, explanou sobre a revolução educacional em Cuba. Ele havia sido treinado em West Point, como oficial do Exército de Batista, recrutado após o triunfo da Revolução por haver se sublevado, recusando uma ordem de Batista de promover um massacre. Fidel teve a percepção de que a educação tinha a envergadura de uma guerra contra o analfabetismo, e não teve duvidas em dar à missão o caráter de uma campanha militar, confiando sua direção àquele senhor cuja história nada tinha a ver com os barbudos de Sierra Maestra. 

Algo semelhante deve ter havido no front da saúde, pois era notável que todo mundo, nas ruas ou em qualquer lugar, que havia crescido após a revolução, exibia dentes perfeitos, ou crianças com aparelhos, em vivo contraste com os mais velhos, que pareciam antes da classe dos mamíferos desdentados. 

Nós tínhamos a liberdade de andar por onde quiséssemos. Às vezes pedimos aos cubanos para nos levar a algum lugar específico e ouvíamos a invariável resposta: “Si, es posible! Pero hay que planear compañero…” Logo percebemos que isso era tão impossível como chegar ao castelo de Kafka. Simplesmente não havia taxis, e andar sob aquele sol escaldante exigia muito mais espírito revolucionário do que tínhamos… Havia no “turismo revolucionário” uma praticidade incontestável.

Poucas vezes saiamos do roteiro e uma delas foi quando Cervantes, um negro que havia sido boxeador antes da revolução e era, agora, sociólogo, membro do departamento de Américas do PC de Cuba, convidou a alguns de nós para jantar em sua casa. Muito me impressionou a generosidade imensa, especialmente diante da dificuldade que era reunir meia dúzia de amigos, pois levou uma semana para localizar um lombo de porco, os feijões e demais ingredientes que precisou comprar fora da “cota”.  A dificuldade que era produzir um jantar tão cubano e tão familiarmente brasileiro, dado o passado histórico-cultural comum engrandecia o gesto. 

Era Cervantes quem conversava conosco sobre o PT, o MR8 e as perspectivas políticas da pós-democratização. Me incomodava que gostasse tanto do MR8, que defendia enquanto fazíamos caminhadas noturnas pelo malecon, em discussões infindáveis. 

Um belo dia, os nossos guias cancelaram a saída noturna, e permanecemos no hotel. Disseram que haveria uma surpresa. Era quase meia-noite, o sono bateu e não houve surpresa alguma. Nos recolhemos aos quartos para dormir. De repente, já era  uma hora da manhã, toca o telefone. Era um convite para descermos para um salão de reunião do hotel. Sonolentos, lá estávamos quase todos quando entra na sala Fidel Castro, em uniforme militar, com um grupo de acompanhantes. Sentamo-nos à mesa e desfiou-se uma conversa sem fim até as cinco horas da manhã, só interrompida vez por outra quando mandava um ajudante de ordens nos oferecer panatelas Cohiba, amarrados em um maço gordo e invejado por todos. Fidel incentivava que pegasse-mos, mesmo para fumar depois. 

Fidel mostrou-se homem de grandes frases dramáticas (como “mejor seria King Kong en la presidencia norteamericana que Ronald Regan”), de uma capacidade extraordinária de manter o suspense enquanto fazia um relato, mas também alguém surpreendentemente bem informado sobre o Brasil. Nos deu uma verdadeira aula sobre a industria açucareira brasileira, com detalhes sobre o Nordeste e sobre a região de Piracicaba, as máquinas, as famílias Dedini, Ometo e assim por diante. 

Ele também não se esquivava de perguntas capciosas. Como a feita por um deputado carioca, que em toda parte queria se esclarecer sobre a dependência tecnológica em relação à URSS e só ouvia evasivas. Fidel ouviu a pergunta e sapecou: “Simples: nós roubamos tecnologia”. E explicou que, como Cuba não possuía recursos para pesquisas, roubava seus resultados. Como exemplo, contou uma história rocambolesca sobre o roubo de ovos de galinhas canadenses, melhoradas geneticamente para produzir frangos precoces. 

Quando o sol nascia e Fidel foi embora eu estava convencido de que tinha tido o privilégio de conversar com um dos grandes homens do século. Só nos restava nos abastecermos de rum e charutos no aeroporto e tomar o rumo de casa. 

Antes disso, resolvi passar por Nova Iorque e ver a grande retrospectiva de Picasso no MoMa. Foi, até então, a maior exposição na vida do museu, com mais de um milhão de visitas, e eu pude ver Guernica e todos os seus estudos preparatórios pela primeira vez. O mundo parecia mesmo um cenário otimista sobre os escombros de épocas tão sombrias.


II

“É mentira que haja censura literária em Cuba! Acabo de vir da biblioteca nacional onde vi todos os livros de Cabrera Infante…e acho que seria demais mesmo o governo editar os livros dos inimigos declarados da revolução, mas você pode lê-los na biblioteca. O que não aconteceria na União Soviética!”, me dizia, eufórico, meu companheiro de quarto, Boris Schineiderman, no mesmo hotel Riviera de Havana onde eu havia estado no ano anterior com a delegação de deputados.

Tratava-se, agora, de um pomposo Primer Encuentro de Intelectuales por la Soberania de los Pueblos de Nuestra América, promovido pela Casa de las Américas, para o qual, convertido em amigo de Cuba, eu havia sido convidado. Apresentei, então, uma modesta “ponencia”, sobre os paralelos da cultura negra brasileira e cubana, a pretexto de analisar o livro de Miguel Barnet, Biografia de un Cimarrón

Na delegação brasileira - composta de nomes como Leandro Konder, Mário Schenberg, Eric Nepomuceno, Jorge Dias Escosteguy, Fernando Peixoto, Frei Betto, além de outros que, inclusive, moravam fora do Brasil - foi destaque Mário Schenberg. 

Já em Lima ofereceu a todos uma “aula” ímpar, no Museu Oro del Peru, onde, vestindo um terno branco como fazia religiosamente às sextas-feiras, de costas para uma vitrine, discorreu, de olhos fechados, durante mais de meia hora sobre a importância de uma pequena estatueta da cultura pre-colombiana que olhava-mos incrédulos.

No voo para Havana, deram-lhe uma incômoda cadeira quebrada. Isso teve tê-lo irritado muito. Depois, antes de aterrizar, funcionários da Casa de las Américas distribuíram um formulário onde todos se identificavam e traçavam um breve currículo. Foi o suficiente para Schenberg se revoltar. Se não o conheciam - ele que era mundialmente conhecido por ter sido assistente de Einstein - então por que o convidavam? Devia ser coisa daqueles trotiskistas da Casa de las Américas, dizia para quem quisesse ouvir. E decidiu: não desceria do avião, voltando para o Brasil imediatamente. 

Em terra, seguiram-se negociações demoradas, como se o avião houvesse sido sequestrado pelo velho comunista. Queria falar pessoalmente com Fidel, senão não desembarcaria. Um dirigente do partido, cujo nome não recordo, veio até o avião conversar com ele. Quando nós já estávamos instalados no hotel eis que chegou Schenberg, com um carro e motorista particular para as suas andanças por Havana, além de uma simpática assistente, posta à sua disposição pelo comitê central do Partido Comunista cubano.

Foi um encontro realmente expressivo da intelectualidade de esquerda do continente, especialmente pelos diálogos com Aidê Santamaria - pouco tempo antes do seu trágico fim - Fernando Retamar, Ernesto Cardenal, o discurso de Fidel Castro e a leitura da carta que Julio Cortázar direcionou  ao plenário. Cortázar não compareceu pela sua recente divergência pelo modo como Fidel havia tratado o rumoroso “caso Padilha”, mas estava ali, presente em palavras. Ninguém - e nem Cortázar - tinha dúvidas sobre a obrigação moral e política que era a solidariedade com a revolução cubana.

III

O resultado dessas duas visitas foi notável. Na esfera parlamentar surgiram várias iniciativas de solidariedade com Cuba, além de comissões que lutavam pela regularização das relações diplomáticas, realização de novas viagens, incluindo empresários, etc.  Pessoalmente, escrevi um modesto livreto, em linguagem simples, sobre a história da revolução cubana, em parceria com um amigo e publicado na coleção “Tudo é história", da editora Brasiliense.

Hoje, quando da morte do líder carismático Fidel Castro, e ao contrario do que esperavam os gusanos moradores em Miami, não parece haver qualquer sublevação da população contra a “ditadura comunista”. E se formos honestos, talvez tenhamos que rever a associação fácil, como faz a grande imprensa, entre Cuba e ditadura.

Nós lutamos muitos anos, no Brasil, pelo restabelecimento dos mecanismos formais da democracia e, talvez, tenhamos resumido a sua percepção a isso. Onde pode-se se expressar com liberdade estamos na democracia. De substantivo reduziu-se a adjetivo. Esquecemos, pois nos parece secundário, que todos tenham onde comer e dormir, que tenham educação de qualidade e que tenham dentes para morder e sorrir. A tal ponto que estamos propensos a chamar de “falsos” os sorrisos dos cubanos. A imprensa indigente brasileira gostaria de vê-los carrancudos e chorando. 

Uma revolução é um ideal em marcha. Por ele se mata e se morre. Um querer coletivo que silencia as vontades individuais. Não se pode mesmo achar que essas últimas sejam superiores àquele pelo qual tantos morreram.

E foi por conta do formalismo da nossa democracia que deixamos soltos, sem julgamento, os assassinos do período militar. É por conta desse formalismo que, hoje, os democratas-formais e inimigos do povo podem, juntos, chamar de “ditadura” a mais importante experiência histórica já havida nas Américas em favor de um povo. 

Sem duvida é um incomodo muito grande para intelectuais - para os quais a matéria-prima é a opinião pessoal - imaginar que um povo possa priorizar casa, comida e dentes. E o desafio histórico é esse mesmo: conciliar a expressão pessoal com as conquistas sociais, sem deixar que estas sejam comprometidas por  aquela. É ver no que vai dar daqui para a frente. É tratar de reformular teorias políticas que abstratamente valem nada.


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