Se esse fosse um país que se levasse a sério, ou um país em que os seus intelectuais levassem o povo a sério, o ano que vem, 2017, seria de grandes comemorações por conta do nascimento da história sistemática desse mesmo povo. Comemorar-se-ia (sic-temer) os 110 anos do aparecimento de Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu. Mas conheço pós-graduados em história que nunca ouviram falar de Capistrano, e é difícil até mesmo encontrar uma edição recente desses Capítulos, de sorte que as brancas nuvens prevalecerão nos céus azuis.
O paulista Francisco Adolfo de Varnhgen, visconde de Porto Seguro, esteve dedicado a traçar a história do domínio português, a formação do Império brasileiro conquistando a terra apesar dos seus percalços (os índios - aos quais dedicava ódio sem tamanho); o cearense Capistrano de Abreu ocupa, na historiografia, o polo oposto: do que ele escreveu nasce o primeiro retrato do povo brasileiro, composto de remanescentes índios, negros, brancos pobres que entraram sertão adentro, ocupando espaços descontínuos e formando a sociedade para a qual a Corte sequer olhava; os sertões que só apareceram depois da Guerra de Canudos através do esforço de Euclides da Cunha. O próprio Capistrano prometeu escrever uma "história do sertão", de umas 400 páginas, o que não fez...
Quem não leu Capistrano de Abreu, esse misto de historiador e antropólogo, jamais entenderá a formação da sociedade brasileira e, infelizmente, esta é a condição geral da maioria dos estudiosos modernos das nossas ciências sociais. Sem Capistrano não há uma representação do Brasil real que se sustente.
Quem não leu Capistrano de Abreu, esse misto de historiador e antropólogo, jamais entenderá a formação da sociedade brasileira e, infelizmente, esta é a condição geral da maioria dos estudiosos modernos das nossas ciências sociais. Sem Capistrano não há uma representação do Brasil real que se sustente.
É verdade que à sua visão da história nossa seguiu-se uma fieira de “intérpretes do Brasil” - como Oliveira Vianna (Instituições políticas brasileiras) ou Câmara Cascudo - mas todos eles acabaram topando com a barreira do interesse, considerado maior, pelo Brasil moderno ou pós-moderno, deixando para trás o “pré-moderno”, quando a boa analise histórica reza que o presente se mostra através dos nexos com o passado. A idéia comum entre intelectuais de que a Revolução de 30 "refundou" o Brasil não resiste a uma análise mais detida.
A seguir, trechos do ensaio de José Carlos Reis, “CAPISTRANO DE ABREU (1907). O SURGIMENTO DE UM POVO NOVO: O POVO BRASILEIRO” que o leitor pode encontrar na íntegra disponível na web:
Nos Capítulos de História Colonial, aparecem os caminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasileiro. Adentrando pelo Brasil, o colonizador se alterou e se tornou uma personalidade distintamente brasileira. Vivendo no interior do Brasil, ilhado e sem vínculos contínuos com o litoral, convivendo com os indígenas e a natureza brasileira, foi-se constituindo um “homem novo”, até então inexistente no mundo: a história universal ganhava um novo personagem, o “brasileiro”. Mas, enfatizando o sertanejo, ele não perde de vista o nacional, a unidade brasileira em suas diferenças regionais. Ele não faz ainda uma história econômico-social, mas já trata do homem comum, sobretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de História Colonial. Seu grande tema foi o da ocupação do território, a sua conquista pelo “novo povo brasileiro”.
O seu Capítulos de História Colonial, publicado em 1907, é uma “nova história” do Brasil(…). Seu interlocutor era Varnhagen, a quem ele admirava e se opunha. Capistrano escreveu o seu livro em um ano. Seus analistas o consideram uma pequena obra- prima da historiografia brasileira, por sua linguagem simples, por sua compreensão intuitiva da história do Brasil em seus fatos e em seu conjunto, pela documentação segura e numerosa, “por seu interesse pelo povo durante séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado” (…). Tendo como personagem central o povo, o indígena ganha um papel importante na formação do Brasil. Para Capistrano, o que houve de diverso entre o brasileiro e o europeu, deveu-se ao clima e ao indígena. O brasileiro é o europeu que sofreu um processo de diferenciação: o clima e a miscigenação com o índio. Interessa-lhe conhecer o que este povo sente e aspira. Ele faz uma história social e econômica do povo, sua vida, alimentação, tipos étnicos, condições geográficas (…). Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses, defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos no Brasil e não via com bons olhos a diferença que volta e meia explodia entre estes valores e poder europeus e os autóctones. Capistrano escreverá uma “outra história do Brasil”: anti-portuguesa, anti-reinól, anti-européia, anti-Estado Imperial, anti-político-administrativa. Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo o período colonial. “Redescobrindo o Brasil”, Capistrano fará o elogio da “rebelião brasileira”. (…). Habitando este território, há o indígena, que é também descrito em seus hábitos, comportamentos, atividades, técnicas, guerras, vida sexual, trabalho, educação, religiosidade, artes, lendas, língua.
(…) Os paulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vê o povo brasileiro mais como um mestiço de índio e branco. O mestiço de negro e branco é litorâneo e pertence ao mundo português. Ele descreve os ataques bandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistência de uns e outros. Os bandeirantes foram terríveis em suas caçadas. A ação bandeirante já é uma ação da gente brasileira, não é mais uma história portuguesa. As primeiras ações brasileiras se destacaram pela violência e brutalidade contra os indígenas. O brasileiro continuou a ação colonizadora e cristianizadora do português e usando os mesmos métodos. (…) os bandeirantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições básicas. A dos pais, brancos, com quem queriam se identificar, mas que os viam como impuros filhos da terra, dos quais somente aproveitavam o trabalho; e do gentio materno, que não valorizava a descendência materna. Não podendo identificar-se nem com brancos e nem com índios, não tendo ancestrais, portanto, o mameluco cairá na “terra de ninguém”, a partir da qual constrói a sua identidade “brasileira”.
1 comentários:
Que bacana ler isso. Nunca tinha visto com esses olhos!
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