27/11/2016

O homem que fundou a "nossa história" pra valer


Se esse fosse um país que se levasse a sério, ou um país em que os seus intelectuais levassem o povo a sério, o ano que vem, 2017, seria de grandes comemorações por conta do nascimento da história sistemática desse mesmo povo. Comemorar-se-ia (sic-temer) os 110 anos do aparecimento de Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu. Mas conheço pós-graduados em história que nunca ouviram falar de Capistrano, e é difícil até mesmo encontrar uma edição recente desses Capítulos, de sorte que as brancas nuvens prevalecerão nos céus azuis.


O paulista Francisco Adolfo de Varnhgen, visconde de Porto Seguro, esteve dedicado a traçar a história do domínio português, a formação do Império brasileiro conquistando a terra apesar dos seus percalços (os índios - aos quais dedicava ódio sem tamanho); o cearense Capistrano de Abreu ocupa, na historiografia, o polo oposto: do que ele escreveu nasce o primeiro retrato do povo brasileiro, composto de remanescentes índios, negros, brancos pobres que entraram sertão adentro, ocupando espaços descontínuos e formando a sociedade para a qual a Corte sequer olhava; os sertões que só apareceram depois da Guerra de Canudos através do esforço de Euclides da Cunha. O próprio Capistrano prometeu escrever uma "história do sertão", de umas 400 páginas, o que não fez...

Quem não leu Capistrano de Abreu, esse misto de historiador e antropólogo, jamais entenderá a formação da sociedade brasileira e, infelizmente, esta é a condição geral da maioria dos estudiosos modernos das nossas ciências sociais. Sem Capistrano não há uma representação do Brasil real que se sustente. 

É verdade que à sua visão da história nossa seguiu-se uma fieira de “intérpretes do Brasil” - como Oliveira Vianna (Instituições políticas brasileiras) ou Câmara Cascudo - mas todos eles acabaram topando com a barreira do interesse, considerado maior, pelo Brasil moderno ou pós-moderno, deixando para trás o “pré-moderno”, quando a boa analise histórica reza que o presente se mostra através dos nexos com o passado. A idéia comum entre intelectuais de que a Revolução de 30 "refundou" o Brasil não resiste a uma análise mais detida.

A seguir, trechos do ensaio de José Carlos Reis, “CAPISTRANO DE ABREU (1907). O SURGIMENTO DE UM POVO NOVO: O POVO BRASILEIRO” que o leitor pode encontrar na íntegra disponível na web:

Nos Capítulos de História Colonial, aparecem os caminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasileiro. Adentrando pelo Brasil, o colonizador se alterou e se tornou uma personalidade distintamente brasileira. Vivendo no interior do Brasil, ilhado e sem vínculos contínuos com o litoral, convivendo com os indígenas e a natureza brasileira, foi-se constituindo um “homem novo”, até então inexistente no mundo: a história universal ganhava um novo personagem, o “brasileiro”. Mas, enfatizando o sertanejo, ele não perde de vista o nacional, a unidade brasileira em suas diferenças regionais. Ele não faz ainda uma história econômico-social, mas já trata do homem comum, sobretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de História Colonial. Seu grande tema foi o da ocupação do território, a sua conquista pelo “novo povo brasileiro”.
O seu Capítulos de História Colonial, publicado em 1907, é uma “nova história” do Brasil(…). Seu interlocutor era Varnhagen, a quem ele admirava e se opunha. Capistrano escreveu o seu livro em um ano. Seus analistas o consideram uma pequena obra- prima da historiografia brasileira, por sua linguagem simples, por sua compreensão intuitiva da história do Brasil em seus fatos e em seu conjunto, pela documentação segura e numerosa, “por seu interesse pelo povo durante séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado” (…). Tendo como personagem central o povo, o indígena ganha um papel importante na formação do Brasil. Para Capistrano, o que houve de diverso entre o brasileiro e o europeu, deveu-se ao clima e ao indígena. O brasileiro é o europeu que sofreu um processo de diferenciação: o clima e a miscigenação com o índio. Interessa-lhe conhecer o que este povo sente e aspira. Ele faz uma história social e econômica do povo, sua vida, alimentação, tipos étnicos, condições geográficas (…). Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses, defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos no Brasil e não via com bons olhos a diferença que volta e meia explodia entre estes valores e poder europeus e os autóctones. Capistrano escreverá uma “outra história do Brasil”: anti-portuguesa, anti-reinól, anti-européia, anti-Estado Imperial, anti-político-administrativa. Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo o período colonial. “Redescobrindo o Brasil”, Capistrano fará o elogio da “rebelião brasileira”. (…). Habitando este território, há o indígena, que é também descrito em seus hábitos, comportamentos, atividades, técnicas, guerras, vida sexual, trabalho, educação, religiosidade, artes, lendas, língua.

(…) Os paulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vê o povo brasileiro mais como um mestiço de índio e branco. O mestiço de negro e branco é litorâneo e pertence ao mundo português. Ele descreve os ataques bandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistência de uns e outros. Os bandeirantes foram terríveis em suas caçadas. A ação bandeirante já é uma ação da gente brasileira, não é mais uma história portuguesa. As primeiras ações brasileiras se destacaram pela violência e brutalidade contra os indígenas. O brasileiro continuou a ação colonizadora e cristianizadora do português e usando os mesmos métodos. (…) os bandeirantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições básicas. A dos pais, brancos, com quem queriam se identificar, mas que os viam como impuros filhos da terra, dos quais somente aproveitavam o trabalho; e do gentio materno, que não valorizava a descendência materna. Não podendo identificar-se nem com brancos e nem com índios, não tendo ancestrais, portanto, o mameluco cairá na “terra de ninguém”, a partir da qual constrói a sua identidade “brasileira”.

1 comentários:

Bia Amorim disse...

Que bacana ler isso. Nunca tinha visto com esses olhos!

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