24/08/2017

Existe autoria de receita?

Uma das coisas mais belas da culinária de um povo é que, no seu conjunto, trata-se de um patrimônio comum. Como a língua, a música. Nada tem autor determinado, seja porque se perdeu na poeira do tempo, seja porque há um constante remoer da tradição de sorte que falar que uma receita é própria sempre parecerá uma apropriação indébita do bem comum. Os franceses, que tiveram que enfrentar a questão da inovação várias vezes em sua história gastronômica, assumiram a engenhosa solução: quando um chef quer frisar sua contribuição na transformação de um prato comum dirá a ma façon. Do meu modo.

No mundo moderno, a invenção propriamente dita (a criação de algo que não existia antes) estará dependente da tecnologia. Como disse Adrià, o azeite sólido é uma invenção genuína. No mais, tudo será à ma façon. Por mais “original” que seja a combinação de ingredientes, eles já estavam dados, domesticados, à disposição de todos, e uma simples análise combinatória bastaria para tomar o prato como uma “interpretação” da cultura vigente. Por mais que se vá aos confins da Amazônia, buscar cogumelos, formigas, frutas, o esforço não garante uma “invenção” ou “criação”. Já a invenção do tucupi, esta sim, demandou séculos de trabalho anônimo, coletivo, de sorte que ele é um patrimônio culinário popular. Utiliza-lo desta ou daquela maneira (posso querer fazer um sorvete!) não é mais do que explorar um produto da tradição de modo a produzir aquele efeito de “surpresa” de que vive a gastronomia. 

A Convenção de Berna não incluiu as receitas culinárias no rol das coisas cujo direito autoral é protegido. É muito difícil “patentear” uma receita, um produto culinário. A não ser para a industria, que vive inventando comida que não tem cara de comida.

A surpresa indignada de Bel Coelho ao ver um prato “seu” copiado no masterchef é compreensível. Mas ela logo compreendeu também que estava abusando do direito de autoria e, numa atitude digna, recuou, reviu suas afirmações e pontos de vista. 

Mas ela não reivindicava um direito patrimonial e, sim, moral (que depende do reconhecimento dos outros). Coisa comum quando se cita alguém. Se a moça não o fez, também não o fez o juri. O que me leva a crer que o tal prato de Bel Coelho não era tão conhecido como ela imaginava. Se houvesse mais cultura culinária e mais elegância, talvez nada disso tivesse acontecido. Bel Coelho não teria que lembrar o óbvio, o seu façon levado ao espetáculo mídiatico do masterchef.



O episódio traz à baila, de novo, a questão da “apropriação cultural” e dos “direitos difusos” sobre o patrimônio culinário. Questões que não teriam importância se, de fato, parte desse patrimônio não estivesse ameaçado, inclusive por abordagens vorazes de chefs, chefinhos e chefetes. A “exploração sustentável” (sic) de recursos tradicionais está longe de ser regulamentada como o foi, por exemplo, a simples fotografia de índios. É preciso avançar nesse terreno, inclusive para reduzir à dimensão insignificante episódios como o ocorrido. 

2 comentários:

Anônimo disse...
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e-BocaLivre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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