A autoridade
dos chefs sobre os seus clientes depende de que sejam admiradores do seu
trabalho. Só assim poderá dizer “coma isso!”, sob a forma de menu degustação,
por exemplo.
Essa
admiração se forma na prática, confirmando-se pessoalmente que o que ele faz me
parece “bom”, ou através da mídia, onde outros dizem de maneiras diversas “o que
ele faz é bom!”. Entre uma coisa e
outra, temos a mediação confortável do acordo intersubjetivo.
Assim se
forma sua misteriosa capacidade de sedução. Sedução que tem paralelo com a
sedução amorosa, pois para ambos – amor e degustação – é preciso a aquiescência
prévia para interagir com o que é exterior ao corpo. Em relação ao som, ou ao
visual, essa condição não é necessária: quando nos damos conta, o bom ou
mau som, a imagem visual, já nos penetrou sem aquiescência prévia. Por isso mesmo os moralistas querem censurar
as artes visuais ou a musica. Mas não se preocupam com a censura do comer. Para
eles, basta não abrir a boca.
A cultura
nos dota de uma chave para o entendimento do gosto, uma estrutura da
sensibilidade que organiza os sabores básicos e as sensações bucais, suas inter-relações,
intensidades, harmonias. É o que explica que certas sociedades apreciam a
pimenta mais intensa, o coentro ou a salsinha. É também ela que nos diz o que é
atraente e o que é repulsivo. É sobre esta estrutura da sensibilidade que
trabalham os cozinheiros, podendo inovar muito pouco, se buscam o entendimento
público. E é ai, nesse curto intervalo entre a sensibilidade individual e
grupal que a sedução se faz eficaz.
Aquele que
come precisa manter a sua legibilidade do que vai à boca, ainda que tenha contato
pela primeira vez com certas texturas, aromas, sabores, picância, adstringência
abarcados na totalidade da cultura de que participa.
O nacionalismo
foi o que mais ajudou a fixar a legibilidade. Se não gosto de coentro não deixo
de reconhecer que é uma divergência minha com a totalidade do gosto corrente.
Se vejo no México mais ardência do que suporto, idem.
Mas além das
variações contidas na cultura, há a experiência abismal: aquele alimento que
parece me retirar por um momento da segurança cultural para me atirar nas profundezas
do meu próprio ser. Como, por exemplo, quando experimentamos uma ostra, o
tartufo bianco, o pequi ou o jatobá pela primeira vez. O bom chef de cozinha criativo é aquele que
guia o comensal por esse emaranhado de sensações que não são óbvias porque não
se tornaram corriqueiras para mim.
Não se pode
ficar inventando a roda, e isso não é o ideal “gastronômico” da sociedade
moderna. A idéia de deslocamento, de que se “viaja” através da comida, se apóia
no desejo de ampliação de horizontes sensíveis, de deslocamentos sobre um mapa
conhecido em seus contornos, ainda que vagamente. Inversamente, temos a
cacofonia do óbvio: o chef que oferece lagosta com gorgonzola e arroz “trufado”.
Mas essa
lagosta com gorgonzola só é possível porque falta ao chef a cultura das transações
palatares. Há bons músicos, bons maestros e bons compositores. A cultura
musical encarna nas suas almas de modos diversos. Qualquer um deles pode estragar
a fruição musical, como o chef “inovador” pode estragar as harmonias,
contrastes e dissonâncias que a cultura consagrou em sua história. Abacate com
açúcar ou com sal só fazem sentido no contexto de diferentes culturas.
A monotonia
da vida pequeno-burguesa precisa ser sacudida constantemente para manter a alegre
sensação de vitalidade. O comer tem muito dessa responsabilidade. “Entregar-se
ao chef” sempre foi um caminho privilegiado para isso. Mas é preciso que ele
não empurre o cliente de novo para a monotonia, nem o empurre para uma fossa
abissal onde se dissolve qualquer vestígio do conforto da identidade. Não é assim
com toda sedução?
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