Estou
convencido de que a culinária brasileira,conforme analisada por autores
clássicos, tornou-se opaca com o tempo, e é quase impossível penetrar
essa floresta em direção à variedade de árvores que esconde. Ligar pratos às étnicas
– índio, negro, branco – tornou-se uma espécie de exercício estéril para quem
queira ir fundo nos modos de comer que se formaram ao longo dos séculos.
Especialmente a atenção à culinária das elites, aspecto valorizado por Gilberto
Freyre em sua sociologia do açúcar, contribuiu para obscurecer o caminho para
se chegar às cozinhas populares do imenso território. O enfoque teórico
tornou-se rebarbativo, fossilizou-se, e a etnografia mirrou.
Pessoalmente,
acredito que o caminho fértil, hoje, consiste em relacionar o que se faz em cada
canto com os ingredientes e técnicas correspondentes aos espaços delimitados
pela história. Territorializar a culinária em parcelas significativas da
ocupação produtiva desde os tempos mais remotos, o que inclui a diversidade de
povos tribais anteriores à colonização. Uma representação histórico-cartográfica
da culinária, liberta da mística do terroir.
Mas esta é uma discussão metodológica.
O que me
anima é que, após terminar a pesquisa sobre a culinária caipira - a sair em
breve em livro em parceria com Marcelo Correa Bastos - a região do Seridó, no Rio
Grande do Norte e Paraíba, onde passei recentemente uma curta semana, acende essa perspectiva analítica. Observar a paisagem, comer nas cidades e em
restaurantes populares pelo campo, assim como algumas leituras, firmam essa
convicção.
A ocupação
do sertão nordestino se deu primeiramente pelas guerras contra os índios,
visando a ocupação pecuária, a partir da Casa da Torre baiana e das incursões
dos paulistas. Há boa historiografia sobre isso, a partir de Capistrano de
Abreu.
Já em meados
do século XIX, graças à guerra de secessão norte-americana, parcela do sertão,
incluindo o Seridó, especializou-se na cultura do algodão para suprir as
manufaturas inglesas que então não contavam com o algodão norte-americano. Essa
cultura propiciou a geração de renda monetária, concentrou população como nunca
antes e, depois do boom, continuou
como uma economia de homens pobres, sem pujança, inclusive mais sujeita aos
flagelos da seca pela concentração populacional. Esse quadro durou até meados do século XX. A
melhor análise econômica do “ciclo do algodão” encontra-se na obra de Celso
Furtado.
E foi nesse
ciclo que se deu a unificação produtiva do Seridó com as regiões vizinhas,
integrando-se parcelas do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, em
torno do pólo algodoeiro que foi Campina Grande, para onde, por estrada de
ferro, fluía a produção de toda essa área.
A culinária
que se formou no Seridó traz as marcas do índio extinto ou assimilado, da
pecuária, da pouca presença negra, do ciclo do algodão e das secas.
A herança
indígena, que sofreu "evaporação étnica" no dizer de Camara Cascudo, ainda é visível sempre que se topa com alguém disposto a apresentar ao
viajante um tatu peba, um mocó, um mel de jandaíra ou um doce de gogoia, fruto
de uma cactácea. É a ponta daquela “cozinha braba” de que fala Cascudo,
referindo-se à alimentação dos antigos grupos jê e cariri, sufocada pela
colonização mas que ressurge, aqui ou ali, em tempos de secas.
A pecuária
resulta na carne de sol, dominante no consumo, inclusive sob a forma de moderno
churrasco, a carne seca, as paçocas, as vísceras, assim
como os derivados do leite: a manteiga, o queijo coalho, o queijo-manteiga, a
coalhada. Há também a criação das miuças (cabras e carneiros) e dos animais “de
terreiro”, como a galinha.
A
agricultura de subsistência, que se faz em torno dos rios e dos mais de mil
açudes construídos nos 16 municípios do Seridó potiguar, provê os grãos e
legumes da alimentação cotidiana. Feijão, abóboras, milho, mandioca, batata-doce,
etc.
Os pratos,
resultam de combinações dessas coisas, mais sob a forma de cozidos do que de
assados, além do uso, em consumo alto, de açúcar, especialmente sob a forma de
rapaduras. E dado o isolamento relativo dessa região, persistem doces “arcaicos”,
como o doce de sangue ou chouriço, ou ainda o espécie, de clara origem ibérica.
É dessa perspectiva que ganha relevância o pequeno livro intitulado Comida da terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó, de Julie Cavignac, Muirakytan Macedo, Danycelle Silva e Maria Isabel Dantas, recém surgido em Natal (Editora Sebo Vermelho, 2018).
Nesse ensaio
interpretativo, os autores percorrem as fazendas de criar, os sítios e seus
moradores; visitam os vaqueiros-queijeiros, os tropeiros e as cozinheiras; as comidas “de
raiz” e heranças coloniais – além de reproduzirem as técnicas de feitura do
queijo-manteiga, do queijo coalho, da carne de sol e do doce espécie.
Livro que
honra a tradição inaugurada por Camara Cascudo, focada nas cozinhas populares, que teve pouca repercussão no seu próprio estado, haja vista o universo a
se redescobrir do qual Comida da terra
é um exemplo de atitude a perseguir.
Sem dúvida reconstruir e sistematizar o Seridó culinário é uma empreitada capaz de mostrar um Brasil popular mais rico e diverso, momentaneamente escondido sob discursos mais teóricos do que reais, sobre o país silenciosamente construido por homens e mulheres do sertão.
Sem dúvida reconstruir e sistematizar o Seridó culinário é uma empreitada capaz de mostrar um Brasil popular mais rico e diverso, momentaneamente escondido sob discursos mais teóricos do que reais, sobre o país silenciosamente construido por homens e mulheres do sertão.
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