08/09/2018

A janela do Seridó e um livro para ler




Estou convencido de que a culinária brasileira,conforme analisada por autores clássicos, tornou-se opaca com o tempo, e é quase impossível penetrar essa floresta em direção à variedade de árvores que esconde. Ligar pratos às étnicas – índio, negro, branco – tornou-se uma espécie de exercício estéril para quem queira ir fundo nos modos de comer que se formaram ao longo dos séculos. Especialmente a atenção à culinária das elites, aspecto valorizado por Gilberto Freyre em sua sociologia do açúcar, contribuiu para obscurecer o caminho para se chegar às cozinhas populares do imenso território. O enfoque teórico tornou-se rebarbativo, fossilizou-se, e a etnografia mirrou.




Pessoalmente, acredito que o caminho fértil, hoje,  consiste em relacionar o que se faz em cada canto com os ingredientes e técnicas correspondentes aos espaços delimitados pela história. Territorializar a culinária em parcelas significativas da ocupação produtiva desde os tempos mais remotos, o que inclui a diversidade de povos tribais anteriores à colonização. Uma representação histórico-cartográfica da culinária, liberta da mística do terroir. Mas esta é uma discussão metodológica.

O que me anima é que, após terminar a pesquisa sobre a culinária caipira - a sair em breve em livro em parceria com Marcelo Correa Bastos - a região do Seridó, no Rio Grande do Norte e Paraíba, onde passei recentemente uma curta semana, acende essa perspectiva analítica. Observar a paisagem, comer nas cidades e em restaurantes populares pelo campo, assim como algumas leituras, firmam essa convicção.

A ocupação do sertão nordestino se deu primeiramente pelas guerras contra os índios, visando a ocupação pecuária, a partir da Casa da Torre baiana e das incursões dos paulistas. Há boa historiografia sobre isso, a partir de Capistrano de Abreu.

Já em meados do século XIX, graças à guerra de secessão norte-americana, parcela do sertão, incluindo o Seridó, especializou-se na cultura do algodão para suprir as manufaturas inglesas que então não contavam com o algodão norte-americano. Essa cultura propiciou a geração de renda monetária, concentrou população como nunca antes e, depois do boom, continuou como uma economia de homens pobres, sem pujança, inclusive mais sujeita aos flagelos da seca pela concentração populacional.  Esse quadro durou até meados do século XX. A melhor análise econômica do “ciclo do algodão” encontra-se na obra de Celso Furtado.

E foi nesse ciclo que se deu a unificação produtiva do Seridó com as regiões vizinhas, integrando-se parcelas do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, em torno do pólo algodoeiro que foi Campina Grande, para onde, por estrada de ferro, fluía a produção de toda essa área.

A culinária que se formou no Seridó traz as marcas do índio extinto ou assimilado, da pecuária, da pouca presença negra, do ciclo do algodão e das secas.

A herança indígena, que sofreu "evaporação étnica" no dizer de Camara Cascudo, ainda  é visível sempre que se topa com alguém disposto a apresentar ao viajante um tatu peba, um mocó, um mel de jandaíra ou um doce de gogoia, fruto de uma cactácea. É a ponta daquela “cozinha braba” de que fala Cascudo, referindo-se à alimentação dos antigos grupos jê e cariri, sufocada pela colonização mas que ressurge, aqui ou ali, em tempos de secas.

A pecuária resulta na carne de sol, dominante no consumo, inclusive sob a forma de moderno churrasco, a carne seca, as paçocas, as vísceras, assim como os derivados do leite: a manteiga, o queijo coalho, o queijo-manteiga, a coalhada. Há também a criação das miuças (cabras e carneiros) e dos animais “de terreiro”, como a galinha.

A agricultura de subsistência, que se faz em torno dos rios e dos mais de mil açudes construídos nos 16 municípios do Seridó potiguar, provê os grãos e legumes da alimentação cotidiana. Feijão, abóboras, milho, mandioca, batata-doce, etc.

Os pratos, resultam de combinações dessas coisas, mais sob a forma de cozidos do que de assados, além do uso, em consumo alto, de açúcar, especialmente sob a forma de rapaduras. E dado o isolamento relativo dessa região, persistem doces “arcaicos”, como o doce de sangue ou chouriço, ou ainda o espécie, de clara origem ibérica.

É dessa perspectiva que ganha relevância o pequeno livro intitulado Comida da terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó, de Julie Cavignac, Muirakytan Macedo, Danycelle Silva e Maria Isabel Dantas, recém surgido em Natal (Editora Sebo Vermelho, 2018).




Nesse ensaio interpretativo, os autores percorrem as fazendas de criar, os sítios e seus moradores; visitam os vaqueiros-queijeiros, os tropeiros e as cozinheiras; as comidas “de raiz” e heranças coloniais – além de reproduzirem as técnicas de feitura do queijo-manteiga, do queijo coalho, da carne de sol e do doce espécie.

Livro que honra a tradição inaugurada por Camara Cascudo, focada nas cozinhas populares, que teve pouca repercussão no seu próprio estado, haja vista o universo a se redescobrir do qual Comida da terra é um exemplo de atitude a perseguir.

Sem dúvida reconstruir e sistematizar o Seridó culinário é uma empreitada capaz de mostrar um Brasil popular mais rico e diverso, momentaneamente escondido sob discursos mais teóricos do que reais, sobre o país silenciosamente construido por homens e mulheres do sertão. 

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