20/01/2019

Escuta, cozinheiro paulista!


Penso naqueles cozinheiros que dão duro no dia a dia das cozinhas de restaurante, que escolheram seu ofício – e o exercem – com uma certa dose de idealismo, pensando contribuir minimamente que seja para o desenvolvimento da gastronomia brasileira. Às vezes fazem cursos, assistem palestras, mas sobretudo conversam muito com seus colegas, trocam idéias sobre ingredientes, pratos, restaurantes de sucesso. Fazem até suas experiências, nem que seja em casa... Sempre pensam se poderão ir (o dinheiro é curto!) a congressos ou palestras - como Mesa São Paulo, Mesa Tendências, Frut.o, etc.

Penso nessa honestidade de propósitos. E me pergunto: estão no caminho certo? Há muitos desvios que se impõem, até por modismo. Por exemplo, o culto aos ingredientes amazônicos, às Pancs, etc. Com honestidade também, poderiam olhar à volta, para o território próximo, e se perguntarem: o que eu conheço de tudo isso? E aí, queiram ou não, começa a agir a ignorância.


Sabedores de que a culinária brasileira se fez por influencias de índios, negros e brancos, não chegam a perceber que os índios próximos são os guaranis. Estes, segundo entendimento recente, ofereceram ao mundo ocidental  12 variedades de milho, 24 de mandioca, 7 de amendoim, 16 de feijão, 9 de cará, 21 de batata doce, 4 de abóboras, além do mate. Produtos que possuíam, originalmente, caráter alimentar, ao mesmo tempo que fortemente simbólico, como é o caso do milho avati ete, elemento central no ritual de batismo das crianças.

A culinária paulista atual, quando se quer “brasileira”, reconhece ou incorpora pouquíssima coisa disso. Até formigas vai buscar na Amazônia. Das frutas da mata Atlantica também incorpora pouco. O cambuci, por exemplo, só foi reconhecido e passou a ser utilizado há menos de uma década. Mesmo as Pancs, que estão na moda, agem mais como expediente de alienação  cultural. Quantas delas são de domesticação ou uso original guarani? Sem falar que, nos restaurantes, prevalece o cuscuz marroquino sobre aquele feito de farinha de milho. Já inventaram até cuscuz feito com farinha uarini (que chamam carinhosamente de "ovinha"), imitando o marroquino. Enquanto isso, as fecularias do interior paulista vão minguando na produção de farinha de milho...

Numa publicação do Ministério do Meio Ambiente (Espécies nativas da flora brasileira de valor econômico atual ou potencial – Plantas para o Futuro. Região Sul) há 16 espécies alimentares, 4 aromáticas e mais de 40 de uso medicinal.

Nos guaranis se baseou a conquista territorial dos paulistas, que ia do Paraguai a São Paulo descendo até as Missões, no Rio Grande do Sul, sobrepondo-se ao imenso território mbyá-guarani, de milhares de quilômetros quadrados, que abrange além do Paraguai, o Uruguai e a parte norte da Argentina.

Gosto de citar o Paraguai porque ali, até hoje, a presença guarani é decisiva. E na pesquisa para elaborar A culinária caipira da Paulistânia (Três Estrelas, 2018), Marcelo Correa Bastos e eu pudemos reconstruir parte dos antigos hábitos alimentares dos guaranis e constatar o quanto são próximos do que os paraguaios ainda comem. Há, por exemplo, uma bela coleção de cozidos que misturam milho e feijão, denominado jopara, que também encontramos ao sul da Bahia, nos sertões por onde andaram bandeirantes paulistas.

E os índios de nossa história paulista não estão longe no tempo nem no espaço. Estão aqui, no nosso calcanhar, onde está a terra indígena Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo. A área tem 16 mil hectares e fica nos distritos de Parelheiros e Marsilac, e na cidade de São Bernardo do Campo. São cerca de 2.000 indígenas Guarani Mbya, divididos em seis aldeias. Há também os guaranis que vivem no pico do Jaraguá. E há os do litoral (Ubatuba, São Sebastião, Ilha do Cardoso), sem contar os terena que, em mais de 500 índios, vivem em Avai, na aldeia Ekerua.

Índio não falta. O que falta é empatia cultural e disposição de interagir com eles, aprender, trocar experiências, ajudar a alavancar a sua produção, essas coisas todas que, teoricamente, os chefs de cozinha estão carecas de saber. Quantos, até hoje, já tiveram curiosidade de se aproximar dessa gente? Em compensação se deleitam no Ver-o-Peso, ou nos terreiros de candomblé da Bahia. E, contraditoriamente, defendem um locavorismo que é dos outros. Culinariamente estamos mais próximos do Paraguai do que da Amazônia.

Pois bem. Os índios guaranis – como de todas as demais etnias – estão em apuros. O governo quer destroçar a política indigenista favorável a eles. Nunca se ouviu tanto discurso contra o “excesso de terras” que ocupam no território brasileiro, por conta das lutas de Ongs a seu favor, e outros barbarismos sem pé nem cabeça. É um discurso com viés etnocida. Os índios necessitam a solidariedade dos não-índios.

O que os cozinheiros podem fazer por eles é se aproximar de sua cultura, sua culinária, incorporando essa gente marginalizada no fluxo da modernidade que se quer construir.

Quando você morde uma paçoca de amendoim que se vende no caixa da padaria, come um cuscuz, uma pamonha, uma chipa, está consumindo cultura guarani. O mesmo quando faz um sorvete de cambuci, de pitanga, de uvaia...

Por que essa dificuldade de assumir a origem da cozinha paulista? Por que esse compromisso criminoso com o mito dos bandeirantes que quase destroçaram completamente esse povo e esse manancial de riquezas originais do país?

Acorde, meu caro. Olhe em volta, comece uma nova caminhada!

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