Penso
naqueles cozinheiros que dão duro no dia a dia das cozinhas de restaurante, que
escolheram seu ofício – e o exercem – com uma certa dose de idealismo, pensando
contribuir minimamente que seja para o desenvolvimento da gastronomia
brasileira. Às vezes fazem cursos, assistem palestras, mas sobretudo conversam
muito com seus colegas, trocam idéias sobre ingredientes, pratos, restaurantes
de sucesso. Fazem até suas experiências, nem que seja em casa... Sempre pensam
se poderão ir (o dinheiro é curto!) a congressos ou palestras - como Mesa São
Paulo, Mesa Tendências, Frut.o, etc.
Penso nessa
honestidade de propósitos. E me pergunto: estão no caminho certo? Há muitos
desvios que se impõem, até por modismo. Por exemplo, o culto aos ingredientes
amazônicos, às Pancs, etc. Com honestidade também, poderiam olhar à volta, para
o território próximo, e se perguntarem: o que eu conheço de tudo isso? E aí,
queiram ou não, começa a agir a ignorância.
Sabedores de
que a culinária brasileira se fez por influencias de índios, negros e brancos,
não chegam a perceber que os índios próximos são os guaranis. Estes, segundo
entendimento recente, ofereceram ao mundo ocidental 12 variedades de milho, 24 de mandioca, 7 de
amendoim, 16 de feijão, 9 de cará, 21 de batata doce, 4 de abóboras, além do
mate. Produtos que possuíam, originalmente, caráter alimentar, ao mesmo tempo
que fortemente simbólico, como é o caso do milho avati ete, elemento central no ritual de batismo das crianças.
A culinária
paulista atual, quando se quer “brasileira”, reconhece ou incorpora pouquíssima
coisa disso. Até formigas vai buscar na Amazônia. Das frutas da mata Atlantica
também incorpora pouco. O cambuci, por exemplo, só foi reconhecido e passou a
ser utilizado há menos de uma década. Mesmo as Pancs, que estão na moda, agem
mais como expediente de alienação cultural.
Quantas delas são de domesticação ou uso original guarani? Sem falar que, nos restaurantes, prevalece o cuscuz marroquino sobre aquele feito de farinha de milho. Já inventaram até cuscuz feito com farinha uarini (que chamam carinhosamente de "ovinha"), imitando o marroquino. Enquanto isso, as fecularias do interior paulista vão minguando na produção de farinha de milho...
Numa
publicação do Ministério do Meio Ambiente (Espécies
nativas da flora brasileira de valor econômico atual ou potencial – Plantas
para o Futuro. Região Sul) há 16 espécies alimentares, 4 aromáticas e mais
de 40 de uso medicinal.
Nos guaranis
se baseou a conquista territorial dos paulistas, que ia do Paraguai a São Paulo
descendo até as Missões, no Rio Grande do Sul, sobrepondo-se ao imenso
território mbyá-guarani, de milhares de quilômetros quadrados, que abrange além
do Paraguai, o Uruguai e a parte norte
da Argentina.
Gosto de citar o Paraguai porque ali,
até hoje, a presença guarani é decisiva. E na pesquisa para elaborar A culinária caipira da Paulistânia (Três
Estrelas, 2018), Marcelo Correa Bastos e eu pudemos reconstruir parte dos
antigos hábitos alimentares dos guaranis e constatar o quanto são próximos do
que os paraguaios ainda comem. Há, por exemplo, uma bela coleção de cozidos que
misturam milho e feijão, denominado jopara,
que também encontramos ao sul da Bahia, nos sertões por onde andaram
bandeirantes paulistas.
E os índios de nossa história paulista
não estão longe no tempo nem no espaço. Estão aqui, no nosso calcanhar, onde
está a terra indígena Tenondé Porã, no extremo sul da
cidade de São Paulo. A área tem 16 mil hectares e fica nos distritos de
Parelheiros e Marsilac, e na cidade de São Bernardo do Campo. São cerca de
2.000 indígenas Guarani Mbya, divididos em seis aldeias. Há também os guaranis
que vivem no pico do Jaraguá. E há os do litoral (Ubatuba, São Sebastião, Ilha
do Cardoso), sem contar os terena que, em mais de 500 índios, vivem em Avai, na
aldeia Ekerua.
Índio não
falta. O que falta é empatia cultural e disposição de interagir com eles,
aprender, trocar experiências, ajudar a alavancar a sua produção, essas coisas
todas que, teoricamente, os chefs de cozinha estão carecas de saber. Quantos,
até hoje, já tiveram curiosidade de se aproximar dessa gente? Em compensação se
deleitam no Ver-o-Peso, ou nos terreiros de candomblé da Bahia. E,
contraditoriamente, defendem um locavorismo que é dos outros. Culinariamente
estamos mais próximos do Paraguai do que da Amazônia.
Pois bem. Os
índios guaranis – como de todas as demais etnias – estão em apuros. O governo
quer destroçar a política indigenista favorável a eles. Nunca se ouviu tanto discurso
contra o “excesso de terras” que ocupam no território brasileiro, por conta das
lutas de Ongs a seu favor, e outros barbarismos sem pé nem cabeça. É um
discurso com viés etnocida. Os índios necessitam a solidariedade dos não-índios.
O que os
cozinheiros podem fazer por eles é se aproximar de sua cultura, sua culinária,
incorporando essa gente marginalizada no fluxo da modernidade que se quer
construir.
Quando você
morde uma paçoca de amendoim que se vende no caixa da padaria, come um cuscuz,
uma pamonha, uma chipa, está consumindo cultura guarani. O mesmo quando faz um
sorvete de cambuci, de pitanga, de uvaia...
Por que essa
dificuldade de assumir a origem da cozinha paulista? Por que esse compromisso
criminoso com o mito dos bandeirantes que quase destroçaram completamente esse
povo e esse manancial de riquezas originais do país?
Acorde, meu
caro. Olhe em volta, comece uma nova caminhada!
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