As periferias de São Paulo são enormes. Nelas moram os
trabalhadores manuais e muitos do setor de serviços. Por exemplo, a tigrada que
trabalha em restaurantes sofisticados. É natural, então, que detenham um
razoável conhecimento culinário, ainda que difuso, não organizado. Por isso mesmo, o
que comem é “comida”, pura e simplesmente. Os bacanas é que comem “gastronomia”.
Mas eis que surge um rapaz disposto a subverter essa ordem.
O que é periferia pode virar pólo gastronômico, no que depender de Edson Leite.
Um rapaz que aprendeu a cozinhar em Lisboa, depois de uma carreira abandonada
de rap e uma escola de DJ – aspirações comuns nas periferias. Mas Edson, da Vila Matilde, morador do Jardim
São Luis (que o leitor nem sabe onde fica, não é verdade?) largou tudo e foi
para a Europa. Por precisão se meteu em cozinha e, por obstinação, aprendeu a
cozinhar. Daí, ele volta e se instala no lugar em que viveu. Viajar não mudou
seu eixo e, como diz, “precisamos voltar ao lugar de onde viemos para saber se
realmente ainda pertencemos àquele lugar”. Como se ter ido fosse necessário
para voltar, diria alternativamente Gilberto Gil.
Edson resolveu subverter a ordem ao formular o projeto da “gastronomia
periférica”. Subversão do próprio
conceito culinário, porque “gastronomia” é o centro, o pináculo da culinária
segundo ensinam por ai e se repete nos quatro cantos do mundo. A gastronomia
encarna o bom, o belo, o agradável, parodiando Kant. Na periferia bate-se um
rango.
Mas ao ter a pretensão de deslocar a “gastronomia” para a
periferia, Edson reveste o rango de uma missão civilizatória e despe a “gastronomia”
do seu manto sagrado. Mais ou menos como fez Rodrigo Oliveira ao tempo em que estava preso à Vila Medeiros.
São Paulo é uma cidade espacialmente muito segregadora. A
turma dos jardins nasce e morre nos jardins. As crianças pobres que entram num shopping são tocadas numa espécie de "xô galinha" de seguranças engravatados. Da periferia poucos ouvem falar, a não ser pelo relato da empregada
domestica dizendo das mazelas do transporte público ou, ainda, na crônica policial. Daí, na
relação esquisita entre esses espaços urbanos, o que se espera é que cada um
saiba o seu lugar. Nada de rolê em shopping centers e assim por diante.
Acontece que algumas poucas pessoas curiosas do centro da
cidade já imbicam seu carro para o Jardim São Luis, acessível pelo GPS, graças
a Deus. E Edson começa a entrar na crônica dos jornais, TVs e instagram. Chefs
dos jardins apressam-se a falar de Edson, no afã de garantir um lugar no futuro
entre aqueles que o conhecem “desde o começo”. Sim, todos apostam que o rapaz
irá longe.
A ideia que passam esses meios de comunicação é que Edson é
um sujeito muito esforçado, um empreendedor, um visionário, ou seja, uma
exceção. Mas, francamente, acho é que
ele ameaça a regra.
Ameaça a regra porque seu projeto Gastronomia Periférica
visa libertar os cozinheiros que há dentro dos trabalhadores, muitos deles de
cozinha mesmo, que moram no bairro. Edson faz uma escola de Edsons.
Na dinâmica que estabeleceu, Edson transformou a sua
periferia num espaço fechado. Compra os ingredientes lá, serve os clientes lá,
reforçando a comunidade de mais de 300 mil pessoas. É como se eles se
bastassem. E num certo sentido se bastam mesmo, visto que o Estado está sempre
de costas para a periferia, que tem que se virar. Assim, acabam prescindindo de
muita coisa que parece essencial ao mundo ajardinado da gastronomia. Edson tem até um restaurante com uma sócia: o SoNego Bistro (sic). Black is the color of my true love's hair.
Do meu ponto de vista, o essencial da gastronomia é a
capacidade de reencantar o mundo besta em que vivemos. Coisa que só os tolos
atribuem a ingredientes que fazem parte do festim burguês. O reencantamento do
mundo pode vir de qualquer parte, a qualquer momento. Depende de uma magia que
se cria sabe-se lá como. E é muito mágico que algo novo, em termos culinários,
possa vir da periferia. Ao menos para uma cidade segregacionista como a nossa.
No livro Porque criei
a gastronomia periférica (São Paulo, Inova, 2018), que reúne textos de
vários autores, inclusive de Edson Leite, o leitor pode tomar contato com essa
realidade de modo mais pujante. Recomenda-se a leitura, pois nele está tudo tim-tim por tim-tim.
Sim, há 65 receitas no livro. Receitas de fácil execução (a Thermomix cede lugar ao liquidificador!),
onde se encontram, é claro, alguns deslizes. A famigerada tilápia, o maldito
leite condensado. Mas nada que a imaginação do leitor não possa corrigir, caso
esteja disposto a comer à moda da periferia. Afinal, depois das velhas cantinas
italianas lá do Braz, é a primeira vez que o “longe” está mais perto do gourmet
ajardinado.
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