11/04/2010

As emoções de uma certa cozinha

Uma peça de Eric Satie é para ser ouvida em silencio, atentamente. Assim como se deve comer um prato da Roberta Sudbrack. Por isso, em algum momento, os aproximei: ambos exigem, na fruição, a aplicação forte e racional do nosso entendimento. Mas a Roberta tem também um lado emocional rasgado, como se vê no seu texto “uma cozinha de emoções” onde ela exagera muito qualquer contribuição minha à culinária brasileira.

No seu exagero, a Roberta foi tão generosa que me aproximou da Nina Horta e nos tratou como uma coisa só. Confesso, fiquei paralisado uns dias, sem saber o que dizer.

A Nina é essa pessoa da linguagem delicada, que sabe que possui uma missão: atingir o leitor, conduzi-lo lentamente, anos a fio, para uma compreensão mais rica da culinária e da gastronomia. Ela é, em síntese, uma civilizadora que amplia o universo da gastronomia.

Eu não. Não tenho essa preocupação pedagógica e seria incapaz de exercitá-la. Mas às vezes fico imaginando que algo que o leitor possa aproveitar do que escrevo devo totalmente à Nina. Ela é a professora que nos ensina a ler sobre culinária e gastronomia e, por isso, os seus leitores são capazes de dissipar a fumaça, compreender até aquilo que se escreve sem muita graça ou objetivo pedagógico.

Na verdade, quando penso em algum diálogo útil sobre a culinária e a gastronomia, penso em interlocutores como Alex Atala; Ana Luiza Trajano; o Rodrigo Oliveira; o Thiago Castanho; a dupla Ribenboim & Broide; Ana Soares; a Helena Rizzo e, ultimamente, com enorme propriedade, Roberta Sudbrack. Não penso no grande público, como o público da Nina. Como não tenho a ilusão de chegar a conquistar um fã-club como ela, ou como o da Neide Rigo, também não procuro adequar minha linguagem a um universo maior de leitores. Por isso E-bocaLivre é um blog modesto. Mas está bom assim, como atestam leitores qualificados como Roberta Sudbrack.

Os cozinheiros que citei são os que, mais de perto, fazem o que me interessa e por isso fico gravitando em torno deles como mosca no açúcar, ou antropólogo em tribo de índio: não sou da tribo dos cozinheiros, mas eles são os “meus índios” queridos. Fico cercando, vendo o que fazem e o que pensam. Quando Alex e eu escrevemos “Com unhas, dentes & cuca” foi um dos períodos mais férteis para mim no terreno da reflexão gastronomica. Conheci coisas, reconheci problemas que, de outra maneira, jamais alcançaria ou levaria anos para compreender. Devo ao Alex o aprendizado rápido.

Nessa mesma tribo, vejo na Roberta qualidades de cacique ou morubixaba. Ela exerce funções ímpares de liderança. Liderança carismática; liderança “tecnológica” (vide blog, twitter); liderança ética (o seu trabalho não é “seu”, mas reconhecidamente fruto de uma equipe onde as pessoas têm nome e sobrenome), e liderança intelectual. Por isso tudo, tenho aprendido muito com ela; se repete em mim, ainda que à distância, a sensação daquela experiência do “Com unhas, dentes & cuca”. E por causa da distância, de tudo o que ela possa construir de ilusório, senti necessidade de ir conferir no RS. E fiquei muito feliz pelo que experimentei, conforme já disse.

Quero chamar a atenção aqui para uma passagem do último texto da Roberta: “Acho que estamos construindo dia após dia – infelizmente cada um mais trancado na sua cozinha do que deveria – uma cozinha moderna que preserva nossa herança gastronômica e utiliza como argumento justamente a preservação dessa herança sem regionalismos. Ou seja, a cada dia que passa justamente pelo nível técnico e intelectual de tantos chefs Brasil a fora, estamos cada vez mais livres para experimentar, discutir, reavaliar e atribuir uma linguagem mais universal para esses ingredientes que frequentemente nossa mente só reconhece de uma maneira. Comumente aquela que está ligada à nossa memória afetiva: comida de Vó, de fazenda, de tia, de mãe…”

Esse é o caminho, e esses são os problemas em torno dos quais, acredito, cozinheiros, Nina Horta, a Roberta, eu e tantos outros estamos empenhados: uma qualidade nova para a gastronomia no Brasil que consiga inscrever nossos ingredientes e nossa memória afetiva num quadro mais geral de referências universais. As conquistas serão tão mais acessíveis na medida que nos organizemos, intensifiquemos as trocas (de experiências, de idéias, de problemas e angústias), superando o isolamento natural que a prática competitiva da cozinha comercial impõe aos seus autores.

Na medida em que os cozinheiros deixem de se ver como antagônicos, cooperando de maneira sempre mais aberta, mais facilmente chegaremos num patamar superior de gastronomia. É preciso, portanto, nos lançarmos em empreitadas mais ousadas: associações, círculos de estudo e experimentação, revistas, museu do alimento – enfim, em tudo o que transcenda o imediato, projetando a gastronomia como “problema” a ser enfrentado em termos históricos, teóricos e práticos.

A França, a Itália, a Espanha, não se projetaram por obra e graça de gênios, mas pelo trabalho persistente, consistente, insistente de milhares de cozinheiros, jornalistas e estudiosos que deram o melhor de si para a gastronomia. E é por isso que o trabalho da Roberta é tão bonito, emocionante e estratégico: ele aponta para o futuro. Observemos os seus passos.

5 comentários:

Patricia Pê Lopes disse...

Muito bacana o trabalho da Roberta. Mas acho que a comunidade gastronomica brasileira deveria se unir, como foi feito aqui no Mexico. Muitos chefs, cozinheiros, historiadores e afins criaram o Conservatorio de la Cultura Gastronómica Mexicana, qual objetivo e' reconhecer a cozinha mexicana como Patrimonio Historico frente a UNESCO. A primeira tentativa nao deu certo, pois o processo foi feito as pressas e mal estruturado. Mas uma nova postulacao esta' a caminho.
Acho que este e' o caminho a ser seguido na culinaria brasileira. Chega de restaurantes que se dizem tipicamente brasileiros porque usam ingredientes locais (!). O trabalho tem que ser conjunto para o reconhecimento desta cozinha tao rica e diversa!
Para algumas referencias:
http://www.protocolo.com.mx/lifestyle/gourmet/postulan-cocina-tipica-mexicana-ante-unesco/
http://www.jornada.unam.mx/2010/02/06/index.php?section=espectaculos&article=a08n1esp

Marcia Pinchemel disse...

Carlos eu te adoro.

Anjali - Paula Magnus disse...

Muito bom!
Obrigada pelo texto!
Abraço

Guilherme disse...

Olá! Acompanho seu trabalho. Gostariamos muito de sua presença em nosso restaurante, Yacare Culinária Pantaneira, o unico em São Paulo com gastronomia do pantanal. Com o grande carro chefe! A rica carne de jacaré.
www.yacare.com.br

Rodrigo Cotrim disse...

Lindo texto!

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