06/11/2016

Escavação arqueológica na cozinha sulamericana


Uma coisa muito difícil é encontrar literatura que efetivamente ilumine o território culinário. Por isso mesmo, autores como Elisabeth David são tão incensados, convertidos em clássicos. Fornecem uma perspectiva cultural de análise culinária que vai muito além desse v/cio de se colecionar receitas como se, assim, estivéssemos nos apropriando da culinária dos povos.

 E quando se sai da culinária européia e dos países desenvolvidos, mais difícil ainda. Dai o prazer da descoberta, quando se lê um livro como Karu Reko - antropologia culinária paraguaya, de Margarida Miró Ibars. Trata-se de um livro que tem mais de 10 anos, mas só agora pude me demorar na sua leitura.

É uma compilação de 252 receitas paraguaias, quase todas reunidas em classes de preparação devidamente contextualizadas, oferencendo, ainda, variantes que vão das formas tradicionais àquelas contemporâneas. Assim, embora não se trate de uma grande obra de antropologia, é um excelente exemplo de como se deve fazer a etnografia culinária. 

O Paraguai é um país de história muito particular - desde as missões jesuíticas até seu pobre destino atual - na qual os brasileiros tiveram uma participação que deveria nos encher de vergonha indelével, joguete que fomos da diplomacia imperialista do século XIX. Ainda assim, sobreviveu uma população que não deixou de ser indígena em grande maioria - guarani especificamente - e plasmou um dos poucos países bilingues, coisa que não conseguimos preservar, graças à proibição do Marques de Pombal de ensino do nhengatu, língua de inspiração tupi que se falava amplamente na Amazônia e em São Paulo. 


A culinária paraguaia é a culinária rica e variada dos povos guaranis que, como se vê nesse livro, serve como a ponta do iceberg para se contemplar o modo popular de comer em toda a vasta área onde os guaranis estiveram presentes - parte da Bolívia, Argentina, Uruguai e vasto território brasileiro, que une São Paulo aos países vizinhos citados. Nesse sentido, rivaliza também com as grandes tradições mais incensadas, como maias e astecas.

A coleção de ingredientes é impressionante. Desde os milhos, abóboras, feijões, carne seca ao sol sem sal (chamada cecina, equivalente ao charqui pré-colombiano), tudo capaz de iluminar uma unidade de culinárias latino-americanas sem igual -  até coisas muito singulares, como o aproveitamento do guaimbe (folha e frutos). Sempre convivi com essa planta e muitas vezes me perguntei se seria comestível, ouvindo que era venenosa; agora sei que as modernas PANCs se constroem assim: em cima da ignorância cultivada por nossos modos de vida urbano-industrial.

Locro, jopara, puchero, chipas, aloja (bebidas de frutas, adoçadas com mel, talvez a mesma coisa que nosso aluá) são, no livro, apresentadas em inúmeras versões datadas pela história, mostrando a substituição de ingredientes ao longo do tempo - como a gordura de vaca pela manteiga, óleo ou margarina - além de se “matar a charada” da sopa paraguaia, que não é uma sopa mas é curiosidade de todo mundo.

A culinária paraguaia nunca será a “bola da vez”, no sentido em que a peruana se converteu. Mas, pelo que conservou da culinária indígena,mantendo "sob controle" a culinária do colonizador, ilumina a história de boa parte do continente sul americano e, nesse sentido, permite a pesquisa e a experimentação mais racional a partir de um “substrato guarani” que teimamos em não reconhecer (inclusive na medida em que precisamos ir à Amazônia à busca de uma indianidade que nos faz falta para alimentar o mito das três raças).


Como diz Eduardo Viveiros de Castro, nossa história transformou o índio no pobre. O massacre da cultura culinária fez parte desse processo. No entanto, para quem sabe ver, ela está ai, pulsante, à espera de quem entenda que a diversidade da obra humana é de valor inestimável na construção de um futuro de diversidade e riqueza que a história do colonialismo silenciou. Dessa perspectiva, a leitura de Karu Reko é fundamental.


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