04/11/2016

Limites do regionalismo culinario


Acabo de descobrir referência a um “cuscuz missioneiro”, da região das missões guaranis, no Rio Grande do Sul. É tido como um daqueles pratos tradicionais locais, quase extintos. Sendo feito com farinha de milho cozida ao vapor, acompanha legumes ou carnes. Ora, o cuscuz de milho surge em São Paulo, nos séculos iniciais de colonização. Como foi parar na região das missões?

Do mesmo modo, temos no interior da Bahia um prato - o pintado - que consiste de milho e feijões cozidos juntos, acrescido de carnes. Esta é a estrutura básica do locro original peruano, em sua configuração pré-colombiana. Como foi parar no sertão baiano?

São dois exemplos muito interessantes de pratos que viajaram longas distâncias, não se sabe bem nem quando nem como, exibindo uma distribuição geográfica intrigante. Talvez, em vez de difusão, tenhamos que explica-los como “invenções paralelas”, isto é, surgidos independentes, sem qualquer forma de contacto, por terem alguma estrutura ou substrato comum, como uma relação invariável entre o feijão e o milho, graças à presença indígena - guarani, entre nós - em grande extensão de território brasileiro.

No caso do cuscuz, mais do que a farinha de milho em comum, é a “viagem” da técnica do uso do vapor o elemento desafiador. Mas podemos nos contentar com a informação de que os tropeiros, no século XIX, uniam as missões a Sorocaba, em São Paulo, e bem poderiam ter levado consigo, nas viagens, o conveniente cuscuz. 

Já no caso do locro - na versão chamada pintado - qualquer hipótese é bem mais complexa. Há locro no Mato Grosso. Mas qual a rota que une essas “contaminações” entre o Peru, a Bolívia ou a Colômbia - onde há o mesmo prato - e o sertão da Bahia? 


As pessoas afeitas ao estudo da culinária nacional que privilegia o enfoque regionalista raramente se dão conta de que isso pode prejudicar a percepção da dinâmica histórica real. Ela não se forma obedecendo a limites geográficos, que coincidem com recortes políticos ou administrativos, como o turismo teima e entender nosso patrimônio. Pelo contrário, extrapola aquilo que tomamos como o lugar “genuíno” de um determinado prato, criando conexões desconhecidas mas efetivas. Um prato cheio para historiadores da alimentação.

0 comentários:

Postar um comentário