07/11/2016

Vou lhe contar o que achei do novo Ca´d´Oro


- Claro, como sempre Sr. Dória!

Esta foi a resposta confortável que ouvi ao telefone, ao perguntar se poderia levar um vinho. Era um Barolo, é verdade. E do outro lado da linha, Ático. O detalhe é que eu nunca havia estado no restaurante do Grand Hotel Ca´d´Oro, não conhecia o Ático e tinha apenas 23 anos de idade. 

Descontando a pretensão pessoal, era uma incursão necessária num mundo aristocrático que só conhecia de ouvir falar. E, estudante duro, economizando o mês todo, era possível jantar ou almoçar ali ao menos uma vez. Sucessivos meses para experimentar de tudo: frios de produção própria, a salada de bresaola com rúcula, o consomé, o salmone stagionato, o frito misto alla veneta, tournedos Rossini, o ossobuco com risotto alla milanese, o agnolotti di magro al pomodoro fresco, o casoncei alla bergamasca, a anitra brasata, anitra al torchio, codorna a bergamasca e, máximo dos máximos, o bolitto misto. Além de faisão, bacalhau, etc. Além das sobremesas (tortas, o excelente sorvete de castanha portuguesa, a cassada Ca´d´Oro). Tudo feito “na casa”, e ai estava o grande diferencial: o poder quase infinito de produzir prazeres.

Foi um lugar onde também pude ouvir Luigi Veronelli dizer que só um imbecil acha que um vinho de U$ 1mil proporciona 10 vezes mais prazer do que um vinho de U$ 100; pude cumprimentar  e trocar algumas palavras com um ator comunista de carne e osso, como Gian Maria Volonté. Enfim, um lugar de múltiplos atrativos mágicos quando se é jovem. 

Depois, ele foi demolido e no lugar ergueu-se uma torre que, além de moradias e escritórios, oferece um flat e alguns quartos de hotel propriamente dito. Além do restaurante reconstruído. Era preciso conferir.

Quando o clássico O ano passado em Marienbad veio ao mundo, o restaurante do Ca´d´Oro já tinha oito anos de idade e andava sozinho. Ele durou o quanto pode. Hoje, para encontra-lo, você precisa, em primeiro lugar, saber vencer o desgosto dessa arquitetura horrível que toma conta da cidade, como se aqui fosse Dubai. Precisa percorrer a fachada de todo o edifício em vidro e alumínio, até encontrar a entrada. Essa experiência dá a sensação de que o restaurante precisará ser bem melhor do que já era para compensar o desagradável do edifício onde está abrigado.

Quando finalmente você descobre a entrada e avança para o salão, seus olhos adotam uma perspectiva instintivamente comparativa, convocando velhas lembranças, como se você, ainda que inconscientemente, estivesse ali de novo como em Marienbad. 

Mas Marienbad é apenas uma evocação, um retrato na parede e como dói!: aqui e ali uma ou outra “peça de arte”, como explica o gentil maitre, apoiando-se no carrinho icônico do bolitto misto enquanto fala. Ele, que rapidamente entendeu a pegada do cliente, esforça-se o tempo todo para mostrar as continuidades. Aqueles casais de meia-idade, espalhados pelas mesas, será que vivem o mesmo? Certamente não naquela mesa de executivos, em número de 10, que ao levantarem ganham sacolinhas de plástico com uma grossa folhetagem da firma que pagou o almoço. Ninguém tem cara de “jardins” ou de ricos portentosos como antes.

O salão é tacanho, bem menor do que era, a movelaria insignificante (o velho hotel teve sua própria marcenaria!); na mesa, o sousplat de sempre, ladeado por talheres em cuja escolha prevaleceu o raciocínio economizador de gestores do empreendimento, que nada lembram os pesados garfos e facas de prata com a logomarca do restaurante impressa no cabo. Em uma ou outra peça de porcelana ainda brilha a logomarca, que foi soberana por tanto tempo, ao lado de peças nada-a-ver. 


O cardápio, que mantém a arte gráfica do antigo, estampa a coleção de pratos de então. O maitre já vai avisando que não tem a bresaola; ou melhor, tem mas acabou. Mas nós fomos ali - eu e meu amigo - determinados: é o bolitto misto e pronto. E o carrinho logo estaciona ao lado da mesa e começa o ritual. Afora o deslize do garçom ao chamar a mostarda di Cremona de molho agridoce, tudo bem.

O consomé que abre o serviço do bolitto, muito bem clarificado, não deixa de provocar a conversa em torno da sua singularidade: o aroma de salsão está lá, mas será que o caldo não era mais concentrado? Difícil dizer depois do hiato de tantos anos. As carnes todas lá - afora a novidade de uma picanha - e os molhos. Tudo bom, correto. Mas um bolitto correto não é o mesmo do que “aquele” bolitto. E, sendo honestos, temos que reconhecer que o que nos trai é a memória, não o cozinheiro.

Parte-se para a sobremesa. E vem o mil folhas, um teste que poucos restaurantes são capazes de atravessar, mas montado com certa graça. É correto, apenas correto. E, finalmente, o café, numa xícara bem mequetrefe, como os talheres. E uns gentis petit fours. Mas à primeira mordida no bombom, eis que você descobre nele uma alma de leite condensado em gororoba com côco. E eis que tudo, tudo desmorona trazendo de volta a dura realidade.

Em O ano passado em Marienbad o drama é que a mulher não lembrava do caso de amor havido no ano passado. Aqui também. É verdade que maitre  e garçons, todos gentis, fazem força, mas aquelas evocações esparsas, em uma ou outra “obra de arte”, só fazem você lembrar o quanto está sozinho em suas memórias. É o primeiro restaurante especializado em evocações a que fui. Uma experiência estranha.

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