23/10/2017

Banana tem vitamina: um modelo de administração da qualidade alimentar


A discussão sobre a “ração dos pobres” tem méritos indeléveis: colocou a nu a distinção conceitual entre comida e nutrição, a par da confusão que alguns setores da sociedade ainda fazem entre essas coisas, evidenciada pelo apoio acrítico da igreja católica ao programa da prefeitura e do cardeal arcebispo de São Paulo. Mostrou ainda como são frágeis os mecanismos de defesa do bem público, representado por uma dieta de qualidade que vem sendo perseguida há anos por setores da administração (saúde, educação) e setores organizados da sociedade (produtores "orgânicos", Ongs, etc). 

“Você acha que alguém pobre, humilde, miserável pode ter hábito alimentar? Se ele se alimentar tem que dizer graças a Deus”, disse, anos atrás, diante das câmeras de TV, o futuro prefeito da cidade. Talvez a igreja católica, ligada à origem do programa de distribuição da ração, tenha buscado justamente o “graças a Deus” que, sem alternativas, o pobre-humilde-miserável seria obrigado a dizer. Talvez na fantasia do cardeal Odilo Scherer, o produto seja uma versão paroquial do maná bíblico. Certamente o cardeal e seu alcaide contam, como aliado, com o caráter impositivo da fome que deixa sem escolha o pobre.


E por que essas confusões - nutricional/alimentar, teológica, etc - ocorreram? Seguramente por não se entender o processo de produção da vida e sua ligação com a alimentação e, nela, o papel que jogam as formas culturais que revestem os nutrientes. Vai longe o tempo em que a nutrição era um detalhe do discurso sobre a  alimentação, como a banana que tem vitamina. 

A produção da própria vida humana é o primeiro ato cultural ligado à alimentação. O simbolismo do domínio do fogo nos diz exatamente isso. Comer é produzir a si próprio, à família, e os meios de vida fundamentais para a sociedade, coisas que só podem ser concebidos nos marcos da cultura do grupo. Só muito mais tarde, sob a vigência do capitalismo, produz-se alimentos como mercadorias, portanto para terceiros, sendo a alienação, primariamente, a separação entre o produtor e seu produto. 

As mercadorias (que se desenvolvem como atendimento de necessidades humanas as mais variadas) logo assumem formas inéditas, descolando-se daquelas idéias primitivas de alimento ou comida. 

Foi no século XIX, por exemplo, que se inventaram as balas (candies) como pílulas de energia compostas exclusivamente de açúcar e administradas aos trabalhadores, que acreditava-se necessita-las. Mais tarde, no século XX, surgem os “complementos” ou “suplementos” alimentares, até se chegar em concepções mais elaboradas e utópicas - como a “comida dos astronautas”, dos esportistas, etc. A rigor, diante dessas últimas a nutrição liberta-se da forma “comida”, da cozinha, dos modos de cozinhar. O “nutritivo” separa-se do “alimentativo” numa alienação sem precedentes.

Para uma sociedade onde as classes médias menos e menos sabem (ou precisam) cozinhar; onde vivem um processo crescente de dietificação da alimentação, compreende-se que as propostas como “ração para pobre” possam prosperar, pois, tal como outros produtos, trata-se da comida despida de gestos tidos como supérfluos do ponto de vista nutricional, ou da ótica que a sociedade administrada pela propaganda valoriza. E, nesse terreno, todo tipo de “comida sem cara de comida” se equivale.

O problema não é que existam coisas assim, mas que o poder público sinta-se suficientemente respaldado para tentar impor isso a uma parcela da sociedade (que, ainda, deverá dizer “graças a Deus”). Se advogamos a convivência entre vários regimes alimentares é preciso reconhecer que programas como esse da prefeitura nos mostram a fragilidade política das alternativas a ele. 

Embora a alimentação de qualidade para as crianças em idade escolar tenha avançado muito nos últimos anos, com articulação com produtores da agricultura orgânica, etc, o cuidado com as crianças não resistiu aos primeiros embates provocados pelo prefeito nutricionista-higienista, que sentiu-se confortável para cortar as dotações para esse propósito. Assim como o pobre sem alternativa, talvez ele imaginasse deixar as crianças sem alternativa, obrigando-as a darem “graças a Deus” ao seu maná.

Um aprendizado político deve nascer disso tudo: é preciso defender a comida de qualidade ali mesmo onde ela é “comida”, e não a nutrição concebida e desenvolvida em laboratórios e fábricas distantes. O próprio poder público está impregnado da palavra “nutrição” como designativo de organismos normativos, título de políticas públicas, etc. Compreende-se que esse fenômeno corresponde a uma reserva de mercado para os “profissionais da nutrição”, mas não a uma necessidade do público.

Para que a comida ocupe o centro da cena alimentar, é preciso que as comunidades escolares se envolvam na sua definição, na escolha de ingredientes sazonais, etc. A feira deve ser o maior aliado da escola -  assim como a agricultura orgânica com logística desenvolvida de modo a poder fazer entregas nas escolas e creches. 

Isso, por sua vez, só será possível com a completa substituição das compras centralizadas da merenda por compras descentralizadas para as unidades de consumo e supervisionadas pelos pais de alunos. Além disso, a centralização enseja corrupção; a descentralização, controle. 

Modos técnicos de fazer essa descentralização, atendendo a legislação vigente, existem e já foram experimentados, embora não tenham resistido aos lobbies que se alimentam  (ou se “nutrem”?) das compras centralizadas.

Um modelo democrático de sociedade exige sua especificação para o conjunto de práticas alimentares reguladas pelo Estado. Estamos longe, ainda, de tê-lo formulado com clareza, obtendo a adesão ampla, necessária para cerca-lo da segurança indispensável para que não seja tragado pelos interesses políticos passageiros.

Yes, nós temos bananas 
Bananas pra dar e vender 
Banana menina tem vitamina 
Banana engorda e faz crescer

Vai para a França o café, pois é 
Para o Japão o algodão, pois não 
Pro mundo inteiro, homem ou mulher 
Bananas para quem quiser 



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