A fé está se tornando uma desgraça no Brasil, porque algo
de foro íntimo foi alçado à condição de uma medida social. Desgraçadamente. E é
por isso que Marcos Nogueira vem se destacando por ser um tipo de crítico que
põe em dúvida “verdades estabelecidas” no mundo dito da “gastronomia” (onde, diga-se, tudo é imaginação e não "verdade"). Sua coluna na Folha, “Cozinha bruta” é
militante e parece afirmar que, por baixo do mundo ilusório, existe uma verdade
nua e crua, bruta. Ele acredita na “verdade” e sua missão, pensa, é revelá-la. E libertar o leitor.
Mas o seu mundo não é o da investigação, do bom jornalismo.
É um mundo de conjecturas. Na coluna de hoje investe contra a acreditação
(certificação) dos produtos orgânicos. “Você acredita em alimentos orgânicos?”
Desde quando o estado físico, material, do que se come depende da fé?
A fé anda mesmo muito difundida como valor nesses tempos
bolsominianos. Até Jesus sobe na goiabeira. Mas reduzir a questão sobre a
veracidade do processo de produção – se “orgânico” ou não – a uma questão de fé
é, no mínimo, de má-fé.
Alimentos orgânicos certificados...Certificação não é o mesmo
do que passar um atestado de boa fé. É um processo investigativo, que supõe
testes laboratoriais, auditoria de práticas correntes, enfim, o fruto do
trabalho daqueles que devem dizer para a sociedade se um produtor e seus
produtos estão em conformidade com normas conhecidas.
A AAO, responsável pela feira da Agua Branca, é uma
instituição de 30 anos, fruto da associação de engenheiros agrônomos de São
Paulo que buscavam caminhos alternativos à “revolução verde” cujos efeitos, já
percebiam, eram desastrosos. Dentre eles estava José Lutzenberger, cuja folha
corrida em prol do ambientalismo vale a pena o jornalista consultar. Mas foi só
em 1989 que um grupo de 84 sócios conseguiu fundar a AAO
– Associação de Agricultura Orgânica.
A instituição é
das mais respeitadas no front ambientalista e, sem dúvida, das mais aguerridas
na luta pela agricultura orgânica. Dentre inúmeras atividades e projetos, hoje
ela reúne, na feira da Agua Branca, mais de 80 produtores, fiscalizados toda
semana, com plano de manejo orgânico e controle na própria propriedade. E há o “Selo
Brasil Orgânico”. Selo que exige uma “Declaração de
Cadastro” do produtor junto ao MAPA e que o produtor deve ter em sua barraca, para exibir para quem deseje conferir.
Contrário senso, o nosso articulista afirma, endossando aquela
que acredita ser “uma das raras vozes críticas e sensatas” (veja, ele “acredita”
em quem lhe convém para a linha argumentativa): “O Brasil falsifica roupa,
bebida, azeite e até remédio, mas tem gente que acredita em produtos orgânicos”.
Em outras palavras, a sua fé particular é de que “o brasileiro” é um sujeito de
má fé, sempre.
Claro, Marcos se põe a salvo desse juízo tão genérico: “Não
tenho motivo nem repertório para contestar os métodos e a idoneidade das
certificações orgânicas no Brasil. Resta-me tomar por verdadeiros os produtos
que vêm com o selinho”. Nisso se revela mau jornalista, pois de novo invoca a
fé em vez de “duvidar” e investigar se suas dúvidas procedem. Só a dúvida
apurada liberta. E ai entra a fé na sua própria subjetividade como critério
último: “Sei lá se o cara segue religiosamente todos os mandamentos da
agricultura orgânica, mas o tomate que eu compro dele é indiscutivelmente
gostoso”
.
Tenho certeza de que o salmão que os seus leitores acham “gostoso”
é, indiscutivelmente, um veneno para a sua saúde. Para Marcos isso talvez seja
irrelevante, como é a distinção entre agroecológico e convencional, se for “gostoso”.
É quando revela sua fé na grande industria: “É implausível supor que empresas
do porte da Unilever ou da Nestlé queiram arriscar a reputação com fraudes
tacanhas”.
Não percebe ele que a fraude muitas vezes faz parte do negócio e
compõe a margem de lucratividade dessas empresas. Basta lembrar o escândalo –
apurado pela Polícia Federal e pela imprensa - da JBS e de como contornava os
problemas sanitários corrompendo fiscais do Ministério da Agricultura. Por isso é necessário uma
imprensa livre e que sobretudo saiba o que fazer com a liberdade, sem avalizar
os grandes conglomerados alimentares pela “fé”.
Existe em marcha uma revolução agroecológica. Ela não conta com
o apoio de que dispõe o agronegócio e a grande indústria, nem com a totalidade da opinião
pública. Depende mesmo é de mudanças de comportamento de produtores e
consumidores, construindo uma cadeia alimentar confiável do campo ao prato. É a
isso o que se dedica a AAO, tantos produtores, ONGs e movimentos como o Banquetaço. É esse caminho que levará a
um futuro mais seguro em termos de saúde e nutrição e, indiretamente, de um
meio ambiente preservado. Um caminho longo sem dúvida.
Marcos Nogueira não precisa “acreditar” nesse caminho nem em
seus resultados. Mas qual o sentido de levantar dúvidas se não sai a campo para
investigar, confirmando ou infirmando o que suspeita? Ao não fazer isso, e
portanto auxiliar o que precisa ser rigoroso e baseado em pressupostos
científicos, ele trabalha pela sua desacreditação e pelo favorecimento do mainstream, onde se aloja o grande
capital inimigo dos questionamentos da “revolução verde”.
Bolsonaro colocará um general de pijama na direção da Anvisa. O
Presidente é um homem da fé (ou da "Obra", como preferem) e acredita que o exército é o único estoque
disponível de honestidade. Oquei. Mas certamente não precisamos de uma imprensa
de pijama a fazer coro ao espírito que encarnou momentaneamente na República.
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