08/12/2012

Sorvetes: um passo atrás e dois para a frente


Sorvete é uma coisa estranha. Captura as pessoas por dentro, cria um frio aquietamento da alma; gera dedicação fanática. Conheço um jornalista que coleciona máquinas domésticas de sorvete. Eu mesmo, comprei uma Simac na Itália há uns 20 anos e nunca deixei de fazer “experimentos” domésticos. Agora faço com a Thermomix. Em dois dos restaurantes dos quais fui sócio, tínhamos as nossas próprias máquinas de sorvete. Nada de fornecedores. Num deles, a velha Carpegiani de eixo vertical, tendo contado com o IPT na pesquisa de um líquido não-inflamável para substituir o álcool na cuba de refrigeração (e eles escolheram a glicerina líquida, que funcionou muito bem). Alguns sorvetes agradavam muito, como o sorbet salgado de tomate, ou o sorbet misto de manga e tamarindo. 




Nesse contexto de paixão por sorvetes, conheci Rita de Medeiros em 2005, no finado Mercado Floresta - uma iniciativa que, infelizmente, não prosperou. Rita lá estava com os seus sorvetes recém oferecidos ao público. Devo a apresentação à curadoria de Quentin Geenen de Saint Maur - atento ao que acontecia em gastronomia no árido cerrado do planalto central - que me arrastou para provar aqueles maravilhas.

Impressionaram porque era a primeira vez na vida, fora do âmbito doméstico, em que eu experimentava sorvetes de frutas brasileiras com uma dosagem de açúcar mais do que correta e agradável. 

O uso do açúcar, nós sabemos, talvez seja a coisa mais difícil na pâtisserie e os hábitos populares, entre nós, comprometiam nossos promissores sorvetes. Rita veio para salvar os sorvetes da cornucópia de açúcar. E ficou claro que nunca precisaríamos ter um sorvete artesanal tão doce quanto os da Copélia, em Havana - igualmente inesquecíveis pelo defeito. Pode até parecer meio pedante, mas entre a Copélia e a Berthillon de Paris há um enorme território a ocupar. Mais amplo ainda se as frutas trabalhadas são absolutamente incomuns.

Vícios, como o do açúcar, se corrige com o tempo. Muita paciência, muita dedicação e a fibra para não sucumbir aos reclamos dos clientes. Foi o que Rita me disse. Hoje, com a publicação de Sorbets e sorvetes: uma festa de frutas brasileiras (Terceiro Nome, 2012) está claro que ela já se sente segura para defender publicamente a sua solução gastronomica para os sorvetes brasileiros.

Ano passado recebi um livro dessa glacier singular: Gastronomia do Cerrado. Um livro editado pela Fundação Banco do Brasil, onde imaginei encontrar a sorveteria da autora. Não tinha. Fiquei tão decepcionado que não gostei do livro. Impliquei com as receitas que incluíam leite condensado, ou que seguiam um figurino surrado de fórmulas internacionais (pizza, petit gateau, brusqueta, cupcake e assim por diante), apesar de alguns registros de pratos realmente interessantes, como as goianinhas (empadas de Pirenópolis). Pura implicância, pois para um livro ser útil basta marcar um único gol...

Penso que a força de nossa culinária jamais virá pela via que ela escolheu naquele livro. Mas isto está superado pois, ao contrário, Sorbets e sorvetes, é livro de grande domínio técnico sobre frutas e certamente marcará esse capítulo da culinária nacional - inclusive pelo pioneirismo.


A começar pela discussão de base etimológica que Rita faz a respeito da superioridade do léxico português sobre as distinções francesas entre sorbet e glace; italianas entre gelato e sorbetto; inglesa com ice cream. Depois, descontrói a lógica quantitativista das receitas - inclusive o modo como as escolas de gastronomia ensinam a balancear os elementos do sorvete: 20% de açúcar, 6% de gordura, além dos demais ingredientes, e técnicas de incorporação máxima de ar. Rita advoga o caminho da pesquisa, mesmo em escala doméstica e artesanal, para se “entender a relação dos ingredientes com o ar”; no sorvete de mangaba, por exemplo, “sem necessidade de adição de gorduras, ele aumenta de volume praticamente sem nenhum esforço”.

No meu modo de entender o assunto, a base para um sorvete precisa sempre atingir uma densidade cuja medida é 20º Baumé. Isso de consegue de várias maneiras: através da sauce anglaise, ou de um xarope de açúcar que se obtém com um litro de água e um quilo de açúcar e que serve para “dosar” a densidade segundo aquela que a polpa da fruta já oferece. Assim, nada mais difícil do que um sorvete que parta de um suco, como o suco de um limão. Por essa lógica ele fica invariavelmente doce, exigindo o uso de espessantes se quisermos fugir de tanto açúcar. Foi o que aprendi, através dos livros, e pratiquei na Simac.

Mas a intimidade que Rita demonstra com cerca de 40 frutas do cerrado e outros ingredientes (baunilha do cerrado, catolé, chapéu de couro, flor de ipê e mangarito) é invejável, pois passa pela análise acurada dos sabores e aromas, pelo conhecimento do manejo, especialmente o processo de coleta e, claro, a eleição do tipo de base a fazer para cada sorvete - além da indicação, para algumas frutas, do que se fazer com o bagaço após a extração do suco ou polpa. Por esse caminho, nos afastamos daquele dogmatismo que deve sempre partir de uma densidade de 20º Baumé - abaixo da qual nos aproximamos do granizado e, acima, de uma polpa meramente gelada.

Os usos de diferentes bases - água, leite, creme de leite - é decidido por Rita segundo os caracteres da fruta: densidade da polpa, gordura,  acidez, aroma. Para ela, tanto o sabor quanto o aroma precisam ser preservados no produto final e isso é que obriga a experimentar as várias bases, bem como aproveitar, quando há, a gordura da fruta. Caso extraordinário seu sorvete de pitanga, que mais se aproxima de um granizado, ponto onde as pitangas dão o melhor de si em termos de sabor e aroma. Enfim, uma sorveteria sem dogmas.

Do ponto de vista mais geral, Rita de Medeiros nos obriga a uma reflexão sobre tecnologia. Ela relata que precisou recuperar as velhas máquinas de eixo vertical - as Carpegiani - e reforma-las para poder estabelecer a sua sorveteria, o que, diante do que hoje prevalece, significou dar “um passo atrás”.

De fato, a nova tecnologia de sorvetes busca a produção padronizadas de misturas mais untuosas, mais aeradas, que o público adora. Sorveterias como Struzzi, Bacio di Latte, que fazem sucesso hoje, são expressões dessa tecnologia; na verdade, são o último elo da cadeia industrial no front de venda - os pré-mix  (estabilizantes, emulsificantes e aromatizantes; as polpas de frutas produzidas industrialmente, etc) - o que as diferencia daqueles antigos sorvetes “batidos” para serem consumidos “na hora” - no meio da tarde ou na saída do cinema - que prevaleceram no país por décadas, até a invasão dos preparados industriais.  Infelizmente, a midia consagra as soluções industriais, premiando-as com frequência, o que vai deixando o sorvete artesanal num segundo plano.

Sorbets e sorvetes restaura o artesanato, recria uma “arte”, valoriza os sabores do cerrado brasileiro e mostra, ainda, a importância social que adquire essa culinária que articula o produto final com toda uma vasta cadeia de coleta de frutas silvestres, ameaçada pelo que ameaça o cerrado em geral: o boi e a soja.

O “passo atrás” requer o incremento dos passos à frente que representa!





4 comentários:

Anjali - Paula Magnus disse...

Muito bom o texto. Traz o conhecimento e até uma ponta de nostalgia do sorvete (tanto do artesanal antigo, quando dos que ainda não conheço - a sensação de nostalgia do que não se conhece é uma delícia) e finaliza com um contexto socio/economico/ambiental. Muito bom! Terei que buscar este livro. Entrei recentemente no mundo dos sorvetes com uma pequena sorveterinha doméstica. É um mundo a ser desvendado. Aqui alguns dos testes: o uso do butiá, que dá uma polpa grossa que facilita o ponto; o uso do doce de leite que faço com o leite da minha vaca que dificulta pela doçura, ainda exagerada; e ainda o de lavanda com fava tonka que fica floral, mas não pode ter gosto de sabonete (e quando acompanhado de um bolinho de limão e geléia de limão deixa o verão bem saboroso). Sim, como base, o resgate da receita básica de creme inglês acrescido de nata. Nada dos produtos industrializados e sorvetes 100% orgânicos. Fica complicado desejar outro. Grande abraço e parabéns pelo texto.

e-BocaLivre disse...

Sim, Prya, uma vez fiz um sorbet de lavanda. Foi tão dificil encontrar lavanda comestível! Mas ficou com gosto de Chanel nº5...rs

Quentin Geenen de Saint Maur disse...

Cher Carlos Alberto,

Aproveitando as ostras em Floripa e tomando uma caipirinha, brindo a sua saúde.
Ainda não tive a oportunidade de ver impresso o livro "Sorbets e Sorvetes".
Na sua crítica vc ressalta a iniciativa pioneira da pesquisa feita pela Rita.Como vc bem disse é um gol que favorece os aficionados do paladar.
Aproveito para te desejar um 2013 ainda mais saboroso.
Gastronomicalement,

e-BocaLivre disse...

Quentin, incorrigível bon vivent, à sua saúde também, junto com os votos de um 2013 gastronomicamente rico!
Abração

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