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08/09/2018

A janela do Seridó e um livro para ler




Estou convencido de que a culinária brasileira,conforme analisada por autores clássicos, tornou-se opaca com o tempo, e é quase impossível penetrar essa floresta em direção à variedade de árvores que esconde. Ligar pratos às étnicas – índio, negro, branco – tornou-se uma espécie de exercício estéril para quem queira ir fundo nos modos de comer que se formaram ao longo dos séculos. Especialmente a atenção à culinária das elites, aspecto valorizado por Gilberto Freyre em sua sociologia do açúcar, contribuiu para obscurecer o caminho para se chegar às cozinhas populares do imenso território. O enfoque teórico tornou-se rebarbativo, fossilizou-se, e a etnografia mirrou.




Pessoalmente, acredito que o caminho fértil, hoje,  consiste em relacionar o que se faz em cada canto com os ingredientes e técnicas correspondentes aos espaços delimitados pela história. Territorializar a culinária em parcelas significativas da ocupação produtiva desde os tempos mais remotos, o que inclui a diversidade de povos tribais anteriores à colonização. Uma representação histórico-cartográfica da culinária, liberta da mística do terroir. Mas esta é uma discussão metodológica.

O que me anima é que, após terminar a pesquisa sobre a culinária caipira - a sair em breve em livro em parceria com Marcelo Correa Bastos - a região do Seridó, no Rio Grande do Norte e Paraíba, onde passei recentemente uma curta semana, acende essa perspectiva analítica. Observar a paisagem, comer nas cidades e em restaurantes populares pelo campo, assim como algumas leituras, firmam essa convicção.

A ocupação do sertão nordestino se deu primeiramente pelas guerras contra os índios, visando a ocupação pecuária, a partir da Casa da Torre baiana e das incursões dos paulistas. Há boa historiografia sobre isso, a partir de Capistrano de Abreu.

Já em meados do século XIX, graças à guerra de secessão norte-americana, parcela do sertão, incluindo o Seridó, especializou-se na cultura do algodão para suprir as manufaturas inglesas que então não contavam com o algodão norte-americano. Essa cultura propiciou a geração de renda monetária, concentrou população como nunca antes e, depois do boom, continuou como uma economia de homens pobres, sem pujança, inclusive mais sujeita aos flagelos da seca pela concentração populacional.  Esse quadro durou até meados do século XX. A melhor análise econômica do “ciclo do algodão” encontra-se na obra de Celso Furtado.

E foi nesse ciclo que se deu a unificação produtiva do Seridó com as regiões vizinhas, integrando-se parcelas do sertão do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, em torno do pólo algodoeiro que foi Campina Grande, para onde, por estrada de ferro, fluía a produção de toda essa área.

A culinária que se formou no Seridó traz as marcas do índio extinto ou assimilado, da pecuária, da pouca presença negra, do ciclo do algodão e das secas.

A herança indígena, que sofreu "evaporação étnica" no dizer de Camara Cascudo, ainda  é visível sempre que se topa com alguém disposto a apresentar ao viajante um tatu peba, um mocó, um mel de jandaíra ou um doce de gogoia, fruto de uma cactácea. É a ponta daquela “cozinha braba” de que fala Cascudo, referindo-se à alimentação dos antigos grupos jê e cariri, sufocada pela colonização mas que ressurge, aqui ou ali, em tempos de secas.

A pecuária resulta na carne de sol, dominante no consumo, inclusive sob a forma de moderno churrasco, a carne seca, as paçocas, as vísceras, assim como os derivados do leite: a manteiga, o queijo coalho, o queijo-manteiga, a coalhada. Há também a criação das miuças (cabras e carneiros) e dos animais “de terreiro”, como a galinha.

A agricultura de subsistência, que se faz em torno dos rios e dos mais de mil açudes construídos nos 16 municípios do Seridó potiguar, provê os grãos e legumes da alimentação cotidiana. Feijão, abóboras, milho, mandioca, batata-doce, etc.

Os pratos, resultam de combinações dessas coisas, mais sob a forma de cozidos do que de assados, além do uso, em consumo alto, de açúcar, especialmente sob a forma de rapaduras. E dado o isolamento relativo dessa região, persistem doces “arcaicos”, como o doce de sangue ou chouriço, ou ainda o espécie, de clara origem ibérica.

É dessa perspectiva que ganha relevância o pequeno livro intitulado Comida da terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó, de Julie Cavignac, Muirakytan Macedo, Danycelle Silva e Maria Isabel Dantas, recém surgido em Natal (Editora Sebo Vermelho, 2018).




Nesse ensaio interpretativo, os autores percorrem as fazendas de criar, os sítios e seus moradores; visitam os vaqueiros-queijeiros, os tropeiros e as cozinheiras; as comidas “de raiz” e heranças coloniais – além de reproduzirem as técnicas de feitura do queijo-manteiga, do queijo coalho, da carne de sol e do doce espécie.

Livro que honra a tradição inaugurada por Camara Cascudo, focada nas cozinhas populares, que teve pouca repercussão no seu próprio estado, haja vista o universo a se redescobrir do qual Comida da terra é um exemplo de atitude a perseguir.

Sem dúvida reconstruir e sistematizar o Seridó culinário é uma empreitada capaz de mostrar um Brasil popular mais rico e diverso, momentaneamente escondido sob discursos mais teóricos do que reais, sobre o país silenciosamente construido por homens e mulheres do sertão. 

04/11/2016

Limites do regionalismo culinario


Acabo de descobrir referência a um “cuscuz missioneiro”, da região das missões guaranis, no Rio Grande do Sul. É tido como um daqueles pratos tradicionais locais, quase extintos. Sendo feito com farinha de milho cozida ao vapor, acompanha legumes ou carnes. Ora, o cuscuz de milho surge em São Paulo, nos séculos iniciais de colonização. Como foi parar na região das missões?

Do mesmo modo, temos no interior da Bahia um prato - o pintado - que consiste de milho e feijões cozidos juntos, acrescido de carnes. Esta é a estrutura básica do locro original peruano, em sua configuração pré-colombiana. Como foi parar no sertão baiano?

São dois exemplos muito interessantes de pratos que viajaram longas distâncias, não se sabe bem nem quando nem como, exibindo uma distribuição geográfica intrigante. Talvez, em vez de difusão, tenhamos que explica-los como “invenções paralelas”, isto é, surgidos independentes, sem qualquer forma de contacto, por terem alguma estrutura ou substrato comum, como uma relação invariável entre o feijão e o milho, graças à presença indígena - guarani, entre nós - em grande extensão de território brasileiro.

No caso do cuscuz, mais do que a farinha de milho em comum, é a “viagem” da técnica do uso do vapor o elemento desafiador. Mas podemos nos contentar com a informação de que os tropeiros, no século XIX, uniam as missões a Sorocaba, em São Paulo, e bem poderiam ter levado consigo, nas viagens, o conveniente cuscuz. 

Já no caso do locro - na versão chamada pintado - qualquer hipótese é bem mais complexa. Há locro no Mato Grosso. Mas qual a rota que une essas “contaminações” entre o Peru, a Bolívia ou a Colômbia - onde há o mesmo prato - e o sertão da Bahia? 


As pessoas afeitas ao estudo da culinária nacional que privilegia o enfoque regionalista raramente se dão conta de que isso pode prejudicar a percepção da dinâmica histórica real. Ela não se forma obedecendo a limites geográficos, que coincidem com recortes políticos ou administrativos, como o turismo teima e entender nosso patrimônio. Pelo contrário, extrapola aquilo que tomamos como o lugar “genuíno” de um determinado prato, criando conexões desconhecidas mas efetivas. Um prato cheio para historiadores da alimentação.

27/10/2016

A culinária das missões jesuíticas


O Rio Grande do Sul é um dos estados com maior diversidade cultural de culinárias. Basta esquecer o ícone do "churrasco", tão ao gosto da indústria do turismo, para mergulharmos numa história que plasmou, de modos diferentes, a culinária do pampa, da serra, do rio Grande, do vale do Itajaí (SC) e da região das missões jesuíticas, além da paulista, da mineira e do centro-oeste. Regiões de colonizações diversas só podem resultar em diferenças culinárias, apoiadas na unidade da culinária do imenso território mbyá-guarani.



A configuração das missões jesuíticas apoiou-se na culinária guarani, que nos legou, além da cozinha do milho, o mate e um certo modo de preparar o churrasco, entre outras coisas. A cozinha guarani liga todo o Brasil interior e este com os países vizinhos, mais do que com a culinária da costa, afeita à mandioca.

É por essa razão que é muito alvissareiro saber que ocorrerá, em breve, entre 3 e 11 de novembro, o 2º Festival Internacional da Cozinha Missioneira - IFF, em São Borja, no qual participarei com palestra de encerramento.

E será por esse caminho que, aos poucos, poderemos traçar uma nova cartografia da culinária brasileira, liberta dos contornos dos estados e demais configurações sócio-políticas que pouco dizem sobre as formas concretas de comer. 

Para maiores informações sobre a programação, consultar aqui.



26/10/2016

Vupes, o cozinheiro dos jagunços


Há 60 anos surgiu Grande Sertão: Veredas. Aventuras e desventuras do jagunço Riobaldo, traçando uma imagem imortal de um sertão entre o imaginário e o real que expressa as dimensões do drama humano num ambiente absolutamente singular. Além disso, trata-se de uma experiência de linguagem que fez do livro uma das principais obras da literatura universal e brasileira.

Nesse livro, o sertão não é só “o penal, criminal”, como escreveu Guimarães Rosa. Ele mesmo lembrou que é o Chapadão, que beira até Goiás, e que “os gerais desentendem de tempo”. Lugar que carece de fechos e está em toda parte.

“Estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa ainda encontra”. E encontra, do de comer, a abóbora d´água; abóbora moranga; angu; assados e guisados; barreado; biaribu; caçaroladas; carne-de-sol; carne de suadouro; caruru; catana; churrasco; coité; curimatã; dourado; farinha de buriti; grelos de bambu; limonada de pêra-do-campo; mangaba; maria-gomes; lombo de capivara; mariquita; palmito; saieta; torresmos; requeijão; jacuba… “O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena”. 

Tudo está no livro, não no cardápio de qualquer restaurante. Quem quiser comer do sertão, nem precisa ser jagunço ou vaqueiro - como na foto igualmente imortal de Maureen Bisilliat, que aqui se vê - mas precisa pesquisar como essa gente comia e come, porque está fora do tempo e do mundo das mercadorias, embora vivo e deleitante.


Vupes, um personagem que vai caminhando nas bordas do drama, era um mestre da cozinha do sertão, cozinheiro dos jagunços. Ribaldo diz sobre ele: “O senhor imagine: parecia que não se mealhava nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outra coisinha ali, outra acolá – uma moranga, uns ovos, grelos de bambu, umas ervas – e, depois, quando se topava com uma casa mais melhorzinha, ele encomendava pago um jantar ou almoço, pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava a guisar, tudo virava iguarias!” Gente ligeira, itinerante, de pouca tralha. Talvez o pai da filosofia lobozó

Os Vupes é que fazem o sertão de comer. O presente precisa de Vupes que, inclusive, leiam Guimarães Rosa. Leiam para achar o sertão que perderam entre os dedos, ao abrir a mão para tomar das gôndolas dos supermercados. 

Vupes é olhar um Brasil de comer que pouca gente vê, entorpecido pelo excesso de técnicas, temperos e regras de harmonização. “De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem”.

19/10/2016

Óleos-PANCs: que coisa é essa cozinheiro?

Cozinhar à francesa é algo que se impõe na vida de um cozinheiro, queira ou não. Cedo, isto é, quando puder escolher, acabará se fixando num dos óleos disponíveis no mercado: de soja, de amendoim, milho, girassol, algodão, ou CANOLA (sim, não é uma planta, mas uma sigla para um óleo transgênico de colza, batizado Canadian Oil Low Acid). E por que isso?

Porque a culinária francesa fixou, desde Savarin ao menos, que os óleos para fritura não devem ter sabor; devem ser “neutros”. É o que ele explica no capitulo 7 de A fisiologia do gosto, visto que eles devem apenas criar uma capa impermeável no que se frita, concentrando o gosto da coisa dentro dentro dela mesma. 

Quando surgiu a nouvelle cuisine, a filosofia mudou. Bocuse dividiu os óleos em neutros e saporificantes. Entre esses últimos, listou a manteiga, a gordura de pato, etc.  Ou seja, transformou o momento da fritura, de um simples “concentrar” do sabor da própria coisa, em oportunidade de acrescer mais um elemento de sabor ao gosto final.

Parece que não gostamos disso, pois o simples óleo de oliva - que mantemos a denominação de “azeite”, talvez para marcar a diferença de função - reservamos para “temperar”, acrescer gosto, exclusivamente fora da fritura. Mas, no passado, já admitimos saporificar na fritura. 

Temos uma serie de óleos regionais que serviram para fritar, inclusive antes do advento das fábricas de óleo de fritura, que começaram com a Sambra, no Nordeste, fazendo óleo de algodão. 


Segundo Dona Benta (anos 50) “temos o [óleo] da castanha-do-pará, que dá de 60% a 70% de óleo superior; o da sapucaia, que produz óleo finíssimo e muito saboroso; o indaiaçu, abundante em todo o Estado de Goiás; o bati- putá, coqueiro de cujos frutos se extrai um azeite saborosíssimo e já largamente usado na Paraíba e no Rio Grande do Norte; o umirium, planta que produz um óleo aromático, é o mais agradável e o mais odorífero de todos os óleos vegetais, muito comum no Amazonas e no Pará; o dendê, de origem africana, indispensável para o preparo de certos pratos típicos de nossa cozinha; o cumaru, cujo óleo já é produto de larga exportação”.

Tirante o dendê - que arrasta através do tempo as memórias da escravidão - esses óleos desapareceram progressivamente do cenário culinário, sendo absorvidos pela industria farmacêutica e cosmética, e industria  biocombustível, além de cultivos como a soja, o óleo cuja produção é a mais “insustentável” possível - apesar da ingenuidade daqueles que acham que a soja não-transgênica é do bem - pois ela “come” Amazônia e Cerrado de forma assustadora, especialmente para viabilizar as incontáveis frituras na China.


Pensar esses óleos-PANCs e seus possíveis usos modernos não só contribui para a sustentabilidade como também amplia o leque de sabores nacionais. Recentemente, reintroduziu-se no mercado óleos como o de pequi e macaúba. Pouca gente sabe o que fazer com eles, mas esse é um problema mais positivo do que negativo, cuja resposta se encontra em: experimentar e experimentar sob verias formas de uso, além de considerar seus valores nutritivos, visto que à época do seu uso tradicional ninguém dava bola para o raciocínio nutricional.

08/08/2016

Curso concentrado sobre como estudar a gastronomia brasileira


Para quem não pôde fazer os cursos sobre a cozinha caipira (módulos cozinha guarani e cozinha do vale do Paraíba), ministrados no primeiro semestre, esta é a oportunidade de retomar os assuntos de uma perspectiva mais ampla, ou seja, “Como estudar a cozinha brasileira” em geral. 

Nesse curso, Carlos Alberto Dória trabalha os conceitos sociológicos, antropológicos e as explicações históricas nas quais se apoiam as visões tradicionais de nossa culinária, avançando esquemas de análise mais de acordo com os conhecimentos mais atuais sobre as questões pertinentes.



O programa inclui:

I - Alargando horizontes
a) a cozinha como “cultura” e como fato social total
b) a sociologia e antropologia da cozinha em marcos atuais
c) a “receita” como fórmula sintética da cozinha
d) ingredientes, processos e produtos como categorias histórico-culturais
e) a delimitação do objeto de pesquisa

II - Revisão de conceitos tradicionais
f) o nacionalismo e o regionalismo em culinária 
g) a idéia de miscigenação entre índios, negros e brancos e o conceito de “raça histórica”
h) fragilidade da divisão sociopolítica de um fenômeno cultural 

III - Categorizando a culinária brasileira
i) as oposições na cozinha brasileira: secos e molhados, sertão e litoral, milho e mandioca…
j) limites e possibilidades do enfoque por biomas
k) a territorialização culinária: esboço de uma cartografia da cozinha
l) a dualidade da cozinha de elite e a cozinha popular: a difusão “de cima para baixo” e “de baixo para cima” - legibilidade e legitimidade
m) um novo enfoque sobre as receitas e suas possibilidades de inovações

O curso será ministrado em 10 horas de atividades,  nos dias 02 e 03 de setembro, sexta e sábado: das 18:40 às 21:40 horas, na sexta feira; das 9.00 hs às 17:30 hs, no sábado.

Manifestação de interesse e maiores informações pelo e-mail: escoladogosto@gmail.com


São poucas as vagas disponíveis!

12/03/2016

Manifesto culinário a favor da “filosofia lobozó”

Santi Santamaria, numa entrevista que me concedeu (está lá no Estrelas no céu da boca) disse com toda clareza: nós, cozinheiros, somos os filósofos modernos, porque refletimos sobre as relações dos homens com a natureza. Mas muita gente acha absurdo falar em “filosofia” relacionada à gastronomia. E basta atentar para a crítica gastronômica ao longo da história recente para ver que a palavra está lá. Se você abrir o livro do Escoffier (Le guide culinaire), verá que o prefácio é uma espécie de “discurso filosófico” no sentido a que Santamaria se refere. A mesma coisa acontece com Bocuse, quando expõe a “filosofia” da nouvelle cuisine. E Rafael Garcia Santos, o enfant terrible da crítica gastronõmica espanhola, não estava nem ai para qualquer outro aspecto da cozinha de um chef que não fosse a sua “filosofia”. Sim, finalmente alguém assumia explicitamente esta pretensão filosófica no calor da banalidade da cozinha.
Então, o leitor me perdoe ao falar da “filosofia” culinária, por mais que isso arrepie os filósofos canônicos… Aliás, nossa literatura é farta em usos e abusos do termo, discorrendo sobre filosofias “menores” (claro, comparadas com Hegel ou Engels, que tornaram-se populares da noite para o dia…),  como no ensaio de Tobias Barreto sobre a “filosofia do peruismo”. No comportamento do perú ele via uma metáfora filosófica para o comportamento dos intelectuais da época. Mas a nossa questão é outra: qual a “filosofia” da nossa gastronomia hoje?

É uma coisa difícil de determinar, muito difícil. Repare. A tendência geral é todo mundo fazer uma dieta, seja qual for sua duração. Umas pra vida toda; outras, até colocarem uma torta de chocolate diante de nós. Os que fazem dietas “saudáveis” não raro incluem o salmão nessa dieta com lugar de destaque. Mas não existem evidências de que o salmão de criadouro é o demo em forma de peixe - cheio de antibióticos, hormônios de crescimento e até transgenia? Pois é. Isso sem falar na manteiga, na gordura de porco, criminalizadas até recentemente e, agora, liberadas-geral a tal ponto que parece que o porco só tem barriga? E o gluten, então? O pão milenar de trigo de repente se tornou inimigo do homem. Parece, portanto, que não existe filosofia dietética alguma. Come-se o que convêm, ainda que a justificativa tenha que vir do milenar Oriente. Tudo certo, mas tudo incerto.

Pense então nos estilos culinários - nas “filosofias” que importamos de contrabando desde os tempos coloniais. Depois dos ibéricos, assimilamos o francesismo, a nouvelle cuisine, os espanhóis e, mais recentemente, o raciocínio-root. Não temos tradição a defender, a não ser nos deixarmos levar gostosamente. O nosso autêntico escondidinho? Nos cansamos dele e pronto: colocamos o recheio por cima, como um “mostradinho”. Importamos o pudim de leite? Logo encontramos como enfiar-lhe o leite condensado e chamarmos isso de “tradição”. Descobrimos a baixa temperatura que já estava descoberta pelos churrasqueiros. Fazemos espumas de tudo, conforme aprendemos com os espanhóis - especialmente quando o mundo todo já as abandonou. Macarrão com molho de pupunha ou com arroz-feijão; petit gateau de cupuaçu; chiclete com banana. Hamburguer gourmet, bobagem transnacional aqui cuidada com carinho. Aqueles que disseram que caminhamos para uma “culinária bossa nova” erraram redondamente. Estamos sempre fora de tom, atravessamos o samba dos outros, fazemos nosso “samba japonês” e vamos para a rua…

Tu me mando cata japão
Cata aí tu que tu que taco no chão

O que nos falta é uma ideia clara do que nos expressa filosoficamente, e acharmos a nossa expressão culinária é o mesmo que nos acharmos; nosso problema é de “achamento” (parodiando Jorge de Lima, em “Todos cantam a sua terra”, 1926). Até hoje os nossos filósofos culinários interpretaram nossa cozinha; é chegado o momento de transforma-la. Ela está de cabeça para baixo. O que nos expressa não é qualquer pureza, mas a mistura. Somos misturados; a nossa filosofia é a misturação. Somos informes, mas não disformes.
 Por isso gostamos da ideia de miscigenação. Somos raças misturadas, e embora saibamos que raças são entidades sem qualquer poder explicativo vamos para as ruas contra as confusões em torno do seu valor. Gostamos de todas as cores. Achamos que o estrangeiro é igual a nós: tomamos a jaca, a manga, a carambola, como coisas nossas. E quando se trata de coisas autóctones (ah, o pequi, o jatobá!), dizemos, violentando qualquer dicionário, que são “exóticas”. Somos os exóticos de nós mesmos. Autoctone só a mistura.

Misturamos estilos, misturamos ingredientes, misturamos nossas ideias. Nos misturamos nos outros e com os outros. Temos horror à pureza, à clareza, e não reconhecemos nelas qualquer superioridade. Achamos que somos miscigenados - misturados desde o início dos tempos de forma indelével. E se procuramos nossos caracteres, achamos nenhum. Macunaimicamente.

Misturação é palavra feia. Por isso, em culinária, a nossa é a “filosofia lobozó”. Veja bem: o lobozó, prato apreciadíssimo nos rincões desse Brasil caipira, não tem receita. Sai do nada sem ter sido planejado. É misturar o que se tem à mão, seja jiló, abobrinha, maxixe, quiabo, tomate, grelos (cambuquira), queijo, qualquer coisa, colocar uns ovos e a icônica farinha de milho. Pronto! Tem-se uma coisa qualquer que é um…lobozó! É o contrário do cartesiano arrumadinho, do dissimulado escondidinho, da canônica feijoada que até dia certo tem como uma missa...

Lobozó é a confusão que alimenta, como um Toddy só nosso. Lobozó é gostoso porque é único, se improvisou na hora, até por falta de alternativa. É memorável sem se fixar na tradição.  Lobozó é imediato, é o ser-aí da comida. Nem tem adjetivo. Está na fronteira do refogado, da omelete, e não se resume a nenhum deles. Não se pode zoar, convidando alguém para uma “lobozoada”. Isso não existe. Faz-se, e pronto. Ninguém poderá dizer “o lobozó da minha mãe é melhor do que o da sua” porque não há uma metafísica do lobozó, como há do gefilte fish. Somos amplamente o lobozó. E se alguém ousa imprimir-lhe uma ordem, logo desmonta sobre si mesmo, confundindo o inconfundível.

O jeito é lobozar sem culpa. Reconhecer que inventamos a nouvelle cuisine no quibebe; que somos ibéricos no porco; amamos os norte-americanos no hamburguer; enchemos a beirada da pizza de catupiry para lhe emprestar uma toponimia tupi no prato; queremos porque queremos que o açaí seja universal como o kiwi. Temos a fome, mas a misturamos com a vontade de comer. Isso por acaso não é lobozó na sua mais pura expressão filosófica? Que digam os doutos…

31/01/2016

Depois de passar a limpo a culinária guarani, é a vez da caipira...


Fiquei bem satisfeito por ter dado o curso sobre Culinária Guarani, como introdução do curso mais amplo sobre a formação da culinária caipira. Uma turma interessante e interessada, diversificada na formação e, mesmo assim, foi possível percorrer a arqueologia dos índios da Amazônia, a etnologia dos Guarani, destacando fragmentos de modos de fazer vários pratos a partir do milho e da mandioca. Fizemos até mesmo as próprias farinhas de milho e de mandioca sem nenhum equipamento que não possa existir em casa...


Os alunos trabalharam sobre os registros escritos bastante econômicos e parciais e, com criatividade, reconstruiram preparações que tinham, todas elas, o dom de convencer quem comeu. Ferramentas modernas de cozinha foram utilizados sem qualquer propósito  de “gourmetização”, criando coisas perfeitamente “legíveis”. 


A sensação que ficou foi de que, realmente, existe uma culinária digna de atenção sob os escombros do que a história - especialmente paulista - fez dessa cultura extraordinária, milenar, dos Guarani que marcharam da Amazônia até os Pampas ao longo de um milênio. Uma culinária que foi destruída em sua grande parte mas que, mesmo assim, se aninhou na culinária caipira e ainda transmite seus sabores aos que a apreciam. A culinária Guarani é o inconsciente da culinária caipira e, por extensão, brasileira.

Agora é seguir no projeto de "TOTAL IMMERSION NA COZINHA CAIPIRA", oferecendo os próximos passos dessa história que nos conformou no tocante ao gosto, com suas variantes paulista, mineira, goiana, carioca, capixaba e com incursões gaúchas. Em breve mergulharemos na fração que lhe corresponde no “Sertão de Leste”. Os interessados aguardem…



06/12/2015

A liberdade de comercialização do acarajé e a mística estatal

Um importante antropólogo inglês, Sir Edmund Leach, costumava lembrar que, em um povo qualquer, quanto mais forte um mito, menor a importância do rito correspondente; inversamente, quanto mais fraco o mito, maior a importância dos ritos. Foi o que me ocorreu ao ler a notícia de que a Prefeitura de Salvador resolveu perseguir as baianas do acarajé que não se vestem com trajes alusivos ao candomblé, como é o caso daquelas evangélicas, candomblé-fóbicas, que vendem o acarajé rebatizado de “bolinho de Jesus”.

Digamos que de um ponto de vista agnóstico, ou simplesmente laico, essa mudança não tem a menor importância. Sempre me pareceu um abuso o “tombamento” das “baianas do acarajé” pelo Iphan, como “patrimônio imaterial”. Absurdo porque a monumentalização de pessoas sempre esbarra no fato de que a sociedade muda e, com ela, as pessoas que a integram e que expressam um valor maior: a liberdade de escolha. Quer agora o Estado que essas senhoras, que procuram ganhar a vida honestamente vendendo comida de rua, como se faz há séculos na Bahia (quando algumas eram muçulmanas aliás, sob um Estado católico), e muito antes da modinha atual,  sejam  obrigadas a se fantasiar de crentes nas divindades do candomblé.

Pois essas senhoras, de matriz cultural afro-brasileira, agora, em parte, professam outra fé, e a comida, até onde sabemos, é mera atividade de transformação material. Por que então converter a atividade produtiva em um monopólio religioso? Até porque alguém pode comprar um "bolinho de jesus" e, ao morde-lo, este se converter em acarajé, à semelhança do momento em que o pão se transformaria no corpo de Cristo... Vários são os mistérios da incorporação.

Algumas poucas “comidas de azeite”, ou “comidas de santo”, se laicizaram. Basta que se confira as obras dos estudiosos do começo do século XX, como Manoel Querino e Nina Rodrigues. E foram laicizadas porque a fé justamente não se abalaria ao serem ofertadas a um público maior, não restrito aos rituais do candomblé.

 O “tombamento” - movimento moderno em prol do enriquecimento simbólico das instituições estatais, e do qual participaram sociólogos e antropólogos de claro viés conservador - revela-se um obstáculo ao livre comércio de rua, sendo esse obstáculo meramente ideológico, nada tendo a ver com a higiene ou saúde dos consumidores!

Vamos ver como termina esse embate, torcendo para que prevaleça o democrático direito de escolha. Quem quiser comer acarajé, que coma; quem quiser comer bolinho de jesus, que o faça! De preferência sem colocar ketchup ou mostarda, conforme notícias que nos chegam das ruas de Salvador...

Saravá!

30/05/2015

Preste atenção na colher

A invenção do garfo é melhor documentada do que a da colher. Ele é bizantino, chega na Europa  por Veneza, a partir do século XI, de maneira conflituosa, pois encontra a resistência daqueles que acham que a comida, dada por Deus, não era para ser espetada. O clero, porém, aceita utiliza-lo lá por 1620.

Primeiro são os garfos de 2 dentes; depois, no começo do XIX, surge o garfo de 3 dentes e, depois ainda, o de quatro dentes e os talheres de peixe.

A trajetória da colher é diferente. Surge antes do garfo - embora depois da faca - e evolui de um objeto que é a concha de moluscos utilizada para levar à boca os caldos. Feita também de pedra, osso ou madeira, só mais tarde fixa-se em metal.

Em Portugal se utiliza garfo já no século XV - o uso conjunto de garfo e faca existe ao tempo de D. João III.

Seguramente no Brasil a difusão dos talheres se deu de modo diferente. Ainda hoje, entre a população rural, e mesmo entre certos trabalhadores urbanos, é bem comum o uso da colher onde as classes altas utilizariam o garfo. “Ainda come de colher” é forma de se designar a condição de criança.

Vida e morte do bandeirante (de Alcântara Machado) registra a presença da colher e da faca nos sertões, onde “falta” o garfo.

Além da curiosidade histórica, a colher deve ter influenciado o próprio desenvolvimento culinário. A forte presença do “picadinho” ( de carne, de legumes) em nossa cozinha deve ter alguma relação com “comer de colher”. Os pirões, os mingaus, idem. Quando se serve a “mocofava” no restaurante Mocotó é uma evocação histórica desse tipo que vem à mesa.

03/04/2015

O americano que descobriu há 70 anos que paulistano gostava de cenoura e banana, não gostava de farinha de mandioca e achava que macarrão era coisa de pobre...


Um terço das famílias do Pacaembú e um quinto das de Higienópolis usaram cenouras no dia-amostra


A “escola de Chicago” em economia é hoje lembrada como uma espécie de bandoleirismo intelectual. Os Chicago boys, que defendiam o “mercado livre”,  foram importantes fontes legitimadoras dos governos reacionários como os de Pinochet, Margaret Tatcher, Ronald Reagan e um dos seus pilares foi o economista Milton Friedman.

Em sociologia, ao contrário, a “escola de Chicago” é um momento virtuoso da ciência social norte-americana; notável especialmente pelos estudos de comunidade e os estudos urbanos das décadas de 1940 e 1950. Nesse contexto é que veio ao Brasil o sociólogo Donald Pierson, em 1939, para fazer um estudo sobre relações raciais na Bahia, mostrando as diferenças entre a posição do negro no Brasil e nos EUA. Depois, permanecendo por aqui, ligou-se à fundação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,  onde lecionou sociologia e antropologia social até 1957.


Ele fez vários estudos importantes, sendo um deles “O homem no Vale do São Francisco”, de 1972. E fez estudos menores, mas não por isso desprovidos de interesse - como suas pesquisas sobre habitação e alimentação na cidade de São Paulo (essa última, “Hábitos alimentares em São Paulo, Revista do Arquivo Municipal, ano X, vol. XCVIII, out. 1944), que nos mostra como se comia na São Paulo de 70 anos atrás.

Pierson, sempre muito preocupado em explicitar suas metodologias, dividiu a cidade em dois grandes blocos, utilizando a mesma base do seus estudo sobre habitação, feito em 1942: a área do Bexiga, Canindé e Mooca e, no outro extremo, a área do Pacaembú, Higienópolis e Jardim América, criando amostras por cada bairro, caracterizados por diferenças de renda, composição étnica e familiar, realizando, no total, 200 entrevistas nas duas áreas para apurar tanto os hábitos alimentares quanto as espécies de alimentos consumidos.

Eram famílias de 4,7 membros em média, sendo 5 o número máximo de refeições domésticas e o mínimo, 3. Para além dessas generalidades começam a aparecer as diferenças entre os moradores de áreas de habitação “inferior” e “superior”. Por exemplo, apenas 69% dos “inferiores” bebem água nas refeições, contra 100% nos “superiores”; no café da manhã, os “inferiores” consomem café simples e pão (34%) ou café com leite e pão (32%), sendo que, na Mooca, a presença do leite sobe para 46% da amostra. Já nos “superiores” aparece um uso mais amplo do leite, a manteiga (86%), com acréscimos de frutas, sucos e cereais de forma não muito expressiva.

Pierson classifica, em seguida, as refeições em “mais adequadas” e “menos adequadas” por bairro. Como alimentação mais adequada no grupo inferior (no caso, no Bexiga), registra: café da manhã - café com leite e açúcar e pão com manteiga; almoço - sopa de macarrão com caldo de carne, purê de batatas, alface, pão, banana e abacaxi; café da tarde - café com açúcar e pão com manteiga; jantar - sopa de macarrão com caldo de carne, carne de vaca, batata, almeirão, pão, banana e café com açúcar. No mesmo bairro, a refeição menos adequada registra: café da manhã, café com açúcar; almoço - sopa de repolho; jantar - arroz e feijão.

No Jardim América, a refeição mais adequada foi: café da manhã - café com leite e açúcar, pão com manteiga, queijo, ovos, mingau de aveia, banana e laranja; almoço - carne de vaca, pão com manteiga, macarrão, arroz, batata, alface, souflê de espinafre, doce de banana em compota, café com açúcar; café da tarde - café com leite e açúcar, pão com manteiga, biscoito agua e sal, queijo, uva, banana e laranja; jantar - sopa de legumes com caldo de carne, carne de vaca, pão com manteiga, arroz, batata, chuchu, manga, uva, laranja com creme de leite, café com açúcar (e ainda, antes de deitar, leite).

Em Higienópolis, a refeição mais adequada mostrava alguma variação: almoço - carne de vaca, arroz e feijão, pão, palmito com molho branco, chicórea, laranja, manga, banana, uva, pão de ló, doce de pera; jantar - sopa de legumes, frango, arroz, batata, espinafre, laranja, manga, banana, pão de ló, doce de pera. No Pacaembu, por sua vez, temos: almoço - sardinha, carne de vaca, carne de porco, feijão e arroz, farinha de milho, pão, alface, tomate, xuxu, abacate, doce de leite, goiabada, café com açucar; jantar - sopa de aveia, carne de vaca, carne de porco, feijão e arroz, salada de alface, berinjela frita, doce de leite, goiabada, café com açúcar.

No pólo menos adequada, ainda no Pacaembu, temos: almoço - sopa de milho verde, carne de vaca, arroz e feijão, batata, pão, café com açúcar; jantar - carne de vaca, salsicha, arroz e feijão, pão, ervilha, abobrinha, palmito, café com açúcar.

De modo geral, observa Pierson: “na área inferior, o uso de todas as hortaliças é bem reduzido, em contraste com a área superior (...). Cenouras, por exemplo, foram encontradas em um quarto das casas da área superior, mas não apareceu na outra área (...). Macarrão perece ser mais usado na área inferior, mas ainda em proporção relativamente reduzida. As frutas parecem ser muito mais consumidas na área superior, a não ser a banana, cujo consumo é bem maior na área inferior (...). Ao contrário do que se verifica em extensas áreas do nordeste brasileiro e também do interior do Estado de São Paulo, usa-se pouco a farinha de mandioca, que foi encontrada apenas no almoço de 6% e no jantar de 2,5% das famílias visitadas”.

É difícil estabelecer uma comparação com os dias de hoje, mas é clara, por um lado, a singeleza e não raro a frugalidade do que se comia nos bairros da cidade em relação ao presente e, por outro, a presença de várias carnes lado a lado numa mesma refeição, num padrão hoje raro. Além disso, as diferenças de renda pareciam prevalecer sobre as étnicas. Assim é a boa sociologia: fixa para sempre um determinado tempo, mesmo que não saibamos depois o que fazer com isso.

17/11/2014

Onde nos levará o "culto aos ingredientes"?

A gente tem que evoluir. Pelo menos no pensamento. Quer dizer, pensar nos passos que damos, imaginando onde nos levarão. Mesmo quando achamos que não há caminho, que se faz o caminho ao andar.

Pois estou começando a achar que esse negócio de “valorizar o ingrediente” tout court, em gastronomia, corre o risco de levar a nada. Isso porque já tem chefinho fazendo o elogio da soja no Instagram, abismado com o “lindo ciclo sem fim da natureza”. 


Acontece que, do ponto de vista do que entendo por “gastronomia”, a soja, o milho transgênico, a pecuária extensiva etc, são legítimos representantes da anti-gastronomia. Me explico. Acho que a gastronomia depende, hoje em dia, sobretudo do artesanato, não da grande indústria. E a grande indústria agrícola, baseada no cultivo de grande extensão, é o que destrói a agricultura familiar, atirando-a para a fronteira do sistema. E a preguiça dos chefs, chefinhos e chefetes os afasta da fronteira, quer dizer, da pequena propriedade e da variedade de coisas que ela oferece como substrato para o desenvolvimento gastronômico. Coisas de produção descontínua, sem muito padrão, às vezes desanimadoras.

Acabo de vir do Festival Cozinha Goiás, tendo visitado uma feira em Goiânia onde havia, em profusão, pequi, guariroba (gueroba), castanha de guariroba, galinha caipira, queijos de leite cru, requeijão de leite cru. Não vi sequer uma barraca que vendesse frango de granja! Um feito! 


Um dia a Anvisa proibirá o frango caipira, o seu sangue, e Goiânia entrará com tudo no mercado do frango Sadia, alimentado com aquela soja que expressa o “lindo ciclo sem fim da natureza” (sic). Daí não adiantará aos chefs, chefinhos e chefetes chorarem sobre o leite derramado... Nem reclamar, em São Paulo, da dificuldade em obter...frango caipira!
 

Quando fico olhando o pequi, e me dou conta do quanto há de seleção artificial feita por milênios pelos indígenas brasileiros que o cultivaram, e vendo o quanto essa fruta está presente na alimentação de uma parcela do território nacional, integrando a comida cotidiana, me dou conta de que “ingrediente” é sobretudo um produto cultural e é sobre essa sua dimensão oculta, que à primeira vista parece “natural”, que devemos refletir em gastronomia.

Não sou um defensor da tradição no sentido de me aferrar a qualquer receita, de pretender “resgatar” o que não foi sequestrado, etc. Mas a dimensão cultural de um ingrediente só aparece quando o interrogamos na cozinha. Poucos são os chefs que fazem isso com determinação. Destaco, dentre eles, o exemplo de Roberta Sudbrack e seu trabalho “minimalista” com o milho, a banana, o quiabo. Quanta coisa nova descobriu a partir desse diálogo solitário com os ingredientes populares!

E a atenção dos chefs aos ingredientes pode simplesmente mudar o destino deles. Vale recordar um exemplo espanhol: o “queijo do pastor”  tornou-se especialmente famoso quando, entre 1896 e 1914, nas famosas Festas Bascas, pode abiscoitar o primeiro lugar em 30 dos 40 concursos de queijos de que participou. Claro, ele não teve chance de uma mais ampla afirmação nacional durante o período do franquismo, mas em 1987 criou-se a Denominação de Origem Protegida (DOP), sob o nome de Idiazabal, englobando a produção de Navarra, Bizcaia, Gipuskoa e Araba. A partir dos anos 1990, com o boom da gastronomia espanhola, especialmente a basca e catalã, o queijo Idiazabal tornou-se um ícone gourmet.

Trata-se de um queijo de leite exclusivo de ovelhas laxta (que quer dizer áspera, por conta da qualidade da sua lã) ou ovelhas da raça carranza.  Graças à sua baixa produtividade – não mais de meio litro de leite por dia – as ovelhas laxta estavam no perigoso caminho da extinção, segundo a Unesco, sendo paulatinamente substituídas por animais mais produtivos. Com a criação do DOP e a determinação de que só essas duas raças poderiam ser utilizadas no fabrico do queijo, a laxta saiu da lista de raças domésticas ameaçadas de desaparecimento. Hoje são criadas por cerca de 500 pastores. Hoje o queijo Idiazabal é um ícone da gastronomia espanhola. Aliás, nunca comeram soja!

Tome, em contrapartida, as nossas ovelhas. As raças brasileiras - como a crioulo lanado, a santa inês, morada nova ou rabo largo - estão praticamente extintas. Nem sabemos quais são as suas qualidades organolépticas quando comemos o nosso cordeiro uruguaio ou neozelandês! Os chefinhos precisam acordar, se de fato querem estar comprometidos com a diversidade, com os produtos do terroir, com a sustentabilidade ou com qualquer outro adjetivo politicamente correto que apreciem.

Ingredientes não são apenas coisas biológicas. São um feixe de significações culturais que dizem respeito aos usos - passados e presentes - à cultura material, ou seja, à produção sob várias técnicas históricas e, não menos importante, à construção do gosto ao longo de sucessivas experiências gastronômicas que nos ligam às gerações passadas e, se formos competentes, nos ligarão às gerações futuras. Na sociedade atual, talvez precisem ser produzidos em maior escala para não serem empurrados para a extinção. Para isso existem instituições como a Embrapa, não é mesmo? E assim como há sabores desejáveis, há relações de produção mais convenientes, por violentar menos a natureza e o próprio homem.

Então: qual o papel dos cozinheiros nisso tudo? Sem dúvida é desvendar a teia de significações culturais em que uma espécie botânica ou animal está imersa, procurando leva-la à mesa segundo seu próprio entendimento. Mas isso, é claro, exige renúncia: renúncia ao fácil, ao disruptivo da pequena propriedade, à gratidão dos grandes monopólios agroalimentares e assim por diante.






27/10/2014

Thiago Castanho

Thiago Castanho no The New York Times.

16/03/2014

Serviço, sim senhor!


A história da gastronomia registra vários modelos de serviço: à francesa, à russa, à inglesa, à americana. Por que nunca produzimos um modelo à brasileira?

Os nossos cronistas coloniais e viajantes estrangeiros são fartos em descrição do modo de se servir à mesa patriarcal e do modo dos pobres comerem, mas quando construímos nosso mito de brasilidade nos ativemos apenas ao que se comia, nunca ao gestos implicados no serviço.

Teorizamos sobre o “encontro” entre a culinária européia, suas receitas, e os ingredientes brasileiros ou africanos. Representamos a cozinha como mestiça, sem pensarmos que gestos também compõem a refeição, assim como o decór à mesa.

A civilização como “adoçamento dos costumes” (Norbert Elias) é algo que afasta os modos de comer considerados toscos, como, por exemplo, comer com a mão - coisa que até hoje observamos nas culturas japonesa, indiana, árabe, para citar as mais influentes. Por que nós não poderíamos comer com a mão?

Quem tenha lido Vida e morte do bandeirante (Alcântara Machado, 1929) há de ter notado como os tempos foram atravessados sem o uso do garfo. E por que picamos tanta coisa, se não comemos com hashi?


Rodrigo Oliveira, atento ao gestual sertanejo, serve alguns pratos no Mocotó para serem comidos com colher, não com garfo. O tacacá, nas ruas de Belém, come-se sorvendo da cuia, e nos pareceria ridículo comê-lo com colher. Idem para a sopa de missoshiro. Thiago Castanho serve pratos para compartir, pois é o que exige a maioria dos seus clientes. Há diferenças regionais notáveis no Brasil. Mas nem que quiséssemos conseguiríamos atirar na boca a farinha de mandioca sem nos emporcalharmos. Os índios o faziam, para admiração dos reinóis.

Os gestos definem enormes fronteiras culturais. A dominação é, também, um processo de uniformização de gestos, como das línguas, das religiões e outros costumes. A cultura brasileira tradicional é pródiga em gestual à mesa, esquecido ao longo do tempo, exceto, talvez, por Camara Cascudo.

A andadura da refeição, com entradas, principal e sobremesa que se come em pratos é coisa de nossa história recente. Assim como o “prato único”. A mesa farta, com carnes, frango, peixes e acompanhamentos variados ainda está na memória dos que tiveram alguma vivência “afazendada”, ou mesmo de tipo urbano tradicional até os anos 60 do século passado.  O que dizer do rodízio gaúcho e da “cerimônia do mate”?

Hoje vivemos, nos restaurantes das grandes cidades, uma autêntica crise dos padrões de hospitalidade e, por decorrência, dos serviços em torno da mesa. Desde o manobrista até o serviço dá água ou do vinho um batalhão de empregados fazem o que facilmente poderíamos fazer. Em Roma ou Milão podemos encontrar as pessoas à mesa descascando uma fruta, como um figo, coisa que, entre nós, parece horrorizar os clientes.


Os restaurantes não são mais guiados pela ideia de acolhimento ou conforto, mas pela ideia de eficiência e rapidez. Contudo, a busca de uma “culinária brasileira renovada” poderia perfeitamente penetrar nesse terreno da etnografia dos nossos gestos em torno da mesa. Muitas surpresas - algumas bem agradáveis - surgiriam.

12/02/2014

Como as coisas chegam na dita Alta Gastronomia?


Há dois caminhos para a culinária. O da tradição e o da inovação. Assim escreveu um especialista:

“A cozinha culta do Ocidente, cheia de penduricalhos, disfarces, desalentos e genialidades dos seus criadores, se alimenta da cozinha popular, anonima, de tradição oral, própria de cozinheiros e artesãos atentos aos cozidos ancestrais, a qualidade do produto e o ponto de cocção. Ao reinterpretar e romper padrões de sabores conhecidos, e incorporar produtos estrangeiros e novas técnicas culinárias, essa cozinha criativa adquire o status de culta, ao passo que a cozinha popular, baseada na repetição, a memória gustativa e os produtos autóctones, tende ao mimetismo. Neste sentido, se poderia dizer que a cozinha popular é tradicional e conservadora, e a cozinha culta progressista e inovadora” (Conde de Sert, El goloso. Una historia europea de la buena mesa, Madrid, Alianza Editorial, 2009, págs 13-14.)

As novidades moram nos detalhes da cozinha popular, mesmo quando, depois, se manifestam na Alta Gastronomia. Vale a pena conferir um pastelzinho que Pedro Martinelli descobriu na sua última andança por Belém. 

Aqueles que "inventaram" mil variações de escondinhos, por que não tentam inovar brasileiramente o pastel? Chega de pastel de pizza!


02/12/2013

A volta aos ingredientes III


Nos parece natural apanhar uma maçã na árvore e morde-la. Afinal, ela simula estar lá à nossa espera (e, de fato, está). Agora, e se fizermos o mesmo com um fruto do pequizeiro? Saber o que fazer com os ingredientes naturais é tão importante quando saber prepara-lo. A rigor, é a mesma coisa, a diferença estará sempre no plano da cultura alimentar. Mas os livros de receita só mencionarão os ingredientes mais usuais; em geral não exploram fronteiras.

A utilidade é o critério básico de nossa relação com a natureza. Aquilo para o que não conseguimos descobrir uma utilidade alimentar jamais ingressará na cozinha. Mas a utilidade pode estar escondida. Por exemplo, conheço muitas receitas de licor de jabuticaba e muitas trazem como ingrediente um pedaço de carvão vegetal. O carvão vegetal, portanto, é um ingrediente da cozinha brasileira. Sabe-se lá como chegou ai.

Não podemos fugir de uma condição: sem conhecer a cultura na qual o ingrediente está inscrito dificilmente chegaremos à sua utilidade. Ele é saboroso, nutritivo, não é tóxico, como prepara-lo? São questões a enfrentar sempre - seja na prática isolada de um chef, seja em laboratórios de pesquisa.

Por isso é sempre bom um pouco de etnografia. Alguém utiliza isso? Como o faz? Posso fazer de modo diferente?  Se olhamos tudo o que existe numa garrafada, por exemplo, encontraremos uma coleção de coisas utilizáveis. Se olharmos no Ver-o-peso, na seção de banhos de cheiro, também encontraremos coisas interessantes, mas não saberemos se são toxicas ou não para o consumo alimentar. Assim, é desejável explorar inicialmente algumas fontes já disponíveis, de modo sistemático ou não:

  1. Os integrantes da culinária tradicional que não ganharam, ainda, expressão nacional. É exemplo o puxuri (Licaria puchury-major), cuja única aplicação culinária conhecida vem do interior do Estado do Amazonas, onde se faz um bolo da polpa da fruta. Há registros, contudo, que dão conta do interesse dos ingleses por ele, já no século XVIII, como integrante do ponche.
  2. Os ingredientes que, apesar de largamente utilizados de outras formas, ainda não foram associados ao uso culinário no Brasil. É o caso do cumaru (Dipteryx odorata), natural da Amazônia, utilizado para fins medicinais no Brasil e para fins gastronômicos na Europa.
  3. As fontes botânicas, de natureza científica, como o imenso repertório da Flora Brasiliensis de von Marthius  tão diversas, ricas, e tão pouco frequentada por pesquisadores de gastronomia.
  4. Os produtos do conhecimento etno-botânico. Remontam às antigas culturas indígenas ou aos primeiro colonizadores, em usos culinários restritos a certos povos ou episódicos na história nacional e se apresentam como fontes documentais em diferentes graus de estruturação. As cadeiras de etno-farmácia de várias universidades federais são fontes de inestimável valor. Como a Universidade Federal da Bahia, cuja titular de etnofarmácia encontrou meia dúzia de ervas utilizadas na cozlnha, logo em frente ao complexo turístico da Costa dos Coqueiros, sem que qualquer chef de qualquer restaurante ali situado as conhecesse.
  5. Há que se ler com muita atenção o magnífico livro publicado pelo MMA, Espécies Nativas da Flora Brasileira de Valor Econômico Atual ou Potencial que dá conta de ingredientes nativos da região Sul do país. Para breve, prometem a edição de volumes igualmente importantes para a Amazônia e para o Cerrado.


28/11/2013

A volta aos ingredientes - II

A culinária nacional, vista como coleção de receitas (feijoada, vatapá, barreado, etc), não é propriamente culinária de ingredientes, pois os pratos elaborados resumem vários deles. São pratos que tendem a ser relacionados com as “cozinhas regionais” ou com suas supostas origens étnicas - classificações tradicionais bastante problemáticas. Mas os ingredientes também são contaminados por esses contornos imprecisos.

O quiabo é “africano”? O pequi, “goiano”? As formigas são “indígenas”? Umbu é “nordestino”? São adjetivações que nada acrescentam a esses ingredientes, exceto velhas chaves de análise. 

Outra categoria que não ajuda é a dos ingredientes “naturais” ou “espontâneos”. A pupunha é natural da Amazônia mas tem muito pouco de “espontânea”, por exemplo. Povos antigos são responsáveis pela seleção artificial da pupunha que hoje conhecemos e consumimos: de uma fruta com cerca de 1g. em formas silvestres, atingiu 70 grs. em terras arqueológicas dos povos amazônicos. Estudando plantas cultivadas pelos índios, o professor Warwick Kerr descobriu dezenas de variedades de mandioca para diferentes povos; abiu com 900 gramas de peso; sapota com 600 grs. e assim por diante. São mais de 50 espécies comprovadamente selecionadas por povos indígenas. Assim, o que parece “natural” é, obviamente, cultural.


Ingredientes “culturais” tem um valor especial, incorporando o gosto dos naturais da terra ao longo dos séculos. Ingredientes apenas “naturais” seriam, então, aqueles espontâneos ainda não incorporados em dietas, como parte das chamadas PANCs (plantas alimentícias não-convencionais). 

02/11/2013

Entre Castanhos e castanhais


Passei uma semana em Belém e pude ir cinco vezes aos Remanso do Bosque e Remanso do Peixe. Come-se bem nos dois endereços, mas isso não parece ser o mais importante quando contemplamos as atividades dos Castanho na cena gastronômica. Para mim, a maior satisfação é ver como a cozinha e o negócio deles evoluiram pari passu desde a última vez que lá estive.

É tão raro no Brasil um restaurante que passe de pai para filhos que só esse detalhe faria desses dois restaurantes instituições únicas. Que haja um pai que acorde antes do sol raiar para comprar peixes já é uma coisa extraordinária. Agora, que haja dois filhos na cozinha tratando esses ingredientes da melhor maneira que sabem, é uma segunda extraordinariedade. Por fim, uma mãe que administre de tal sorte que pai, mãe e filhos toquem o negócio juntos, ano após ano, é situação quase inexistente. 

Graças a essa força coletiva, o restaurante destacou-se da casa com o tempo. Lembro de quando o estoque ainda se distribuía por vários freezer nos corredores da casa, atravancando a passagem como se tudo fosse uma coisa só, como se a casa fosse o continente e o restaurante o conteúdo. A crisálida e a borboleta. Hoje a casa, o bunker da família, é a expressão do triunfo econômico, toda revestida de azulejos, conforme a tradição brasileira que revela prosperidade; a construção mais portentosa da vila onde está localizada (Travessa Barão do Triunfo).




Voltemos à diferença: o núcleo duro do restaurante é formado por uma família, não por um “chef talentoso” como ocorre por toda parte onde se tem pretensão de gastronomia. Talento costuma ser tido como um “dom”, personalizado num mercado competitivo e individualista; parece ser coisa de nascença, não da dedicação. Já excelência, capricho, constância e perseverança é a força que a família constrói dia a dia, sem gestos grandiosos, graças à contribuição de cada um dos seus membros. Diante desses valores coletivos, o “talento” quase passa despercebido.  




Tanto é que quase não percebemos algumas idas e vindas de Felipe Castanho procurando seu lugar ao sol nos Remansos. Cozinheiro como o irmão; depois, com foco na pâtisserie; depois, fora da cozinha, na administração; agora, de volta à condição de cozinheiro plenipotenciário. Os Roca, afinal, não foram o exemplo... Mas talvez os Castanho sejam desse mesmo aço, ainda que não da mesma forja. A mesma espécie de força coletiva que poucos restaurantes no mundo podem exibir. E que estejam situados em Belém é outra condição extraordinária. 

Hoje, quando a “cozinha de ingredientes” triunfou, Belém tornou-se um dos pontos mais importantes da possibilidade de pratica-la próxima da naturalidade almejada pela maioria dos cozinheiros. Basta um giro pelo Ver-o-peso para se constatar que a maioria das frutas, dos peixes, ainda é devida à coleta, à pesca ou ao cultivo caboclo, anteriores à “comoditização” dos peixes e frutas que vêem, céleres, pelo horizonte. Afora o cupuaçú, o açaí, a pupunha, quase tudo é fruto silvestre e isso, sabemos, é o supremo valor hoje.




Dna Carmelita exibe a maior variedade de frutos amazônicos do Ver-o-peso. Seu negócio é justamente a variedade, não a quantidade. Nessa semana, tinha batatinhas ariá, e os Castanho as ofereciam no restaurante. Os Castanho são clientes dela, assim como dos produtores de chocolate na ilha do Combu, ou dos produtores de ostras de São Caetano de Odivelas. Belém é uma cidade relativamente pequena e, no mesmo ramo, quase todo mundo se conhece. 




Portanto é possível ver as pessoas se associando, tendo em vista a qualidade culinária. “O melhor do melhor” se torna uma ideologia a mover várias pessoas que, de outra forma, estariam simplesmente à caça do dinheiro no dia a dia. Mas para que essa cadeia se formasse era necessário um cimento: que os Castanho viessem à tona, com novos critérios e exigências que reportam aos valores da “cozinha de ingredientes”. Dada a qualidade insuperada dos restaurantes Remanso na cidade, a “cozinha de ingredientes” de Belém aponta com força e vigor para o mundo. Deixou de ser apenas regional sem nunca ter sido “nacional” e é, hoje, legitimamente internacional. 

O prêmio 50 Best, concedido de forma ainda tímida, mostra que os críticos não são bestas de ficarem para trás, de terem que, de repente, revestir a pouca atenção com aquelas categorias improváveis, tipo “chef revelação”. Ali, nos Remansos, não há “revelação” - como essa espécie de aparição de Nossa Senhora entre panelas - mas trabalho duro, atento, preciso tecnicamente; criativo. 




Sim, criativo porque agora possuem um laboratório no segundo andar do Remanso do Bosque e sempre que vejo um espaço assim, dedicado à pesquisa e experimentação, tenho certeza de que saltos de qualidade virão. É só esperar. Ainda mais num lugar onde a culinária tradicional é valorizada ao extremo (embora quase sempre pelas piores razões....), “travando a roda” de quem cozinha sem muita reflexão, sem a certeza de, através da experimentação, ter alcançado algo digno de ombrear os sabores das coisas estabelecidas. 

Belém - inclusive os Castanho - ainda pagam tributo à idéia de “modernidade culinária” mal digerida pelos brasileiros que ouviram o galo cantar não se sabe onde. Há o tiramisu de tacuri ou cupuaçu, sem mascarpone, o que pode ser uma rima, mas nunca uma solução; há o horrível mojito com soda limonada numa cidade que sequer conhece o club soda, e assim por diante...

Mas os irmãos Castanho, pelo que conquistaram de “universal” em suas formações fora de Belém, e pela reflexão crítica sobre isso, estão destinados a revirar as tradições, reinscrevendo maravilhas da natureza ou da seleção artificial milenar (como são muitos produtos amazônicos, como os castanhais!), na gastronomia que aponta para um futuro promissor. Quase sem querer, eles estão mais pertos do Noma do que do El Bulli...
Não precisam se dedicar às pirotecnias; não precisam “desenvolver fornecedores” do modo sofrido como fazem seus colegas do sudeste mas, sim, no modo da cumplicidade alegre que há na face de Dna Carmelita quando fala dos Castanho.  Cumplicidade de ambos com a exuberância natural que Belém dispõe para todos. Mas ingrediente, mais do que naturalidade pura, é seleção. Seleção que exige critérios. Critérios que os Castanho têm.

Comi o menu degustação do Remanso do Bosque (junto com o jornalista português Miguel Pires) com encanto. Acho que há coisas a melhorar, como uma ostra que pode ser mais saborosa; uma maniçoba inconvincente; um chocolate “rústico” que também pede mais trabalho e sofisticação.  Porém nada disso impacta negativamente, pois ao sentar para comer têm-se a sensação de se estar numa empreitada experimental, num laboratório que navega pelo Guamá, de onde o tempo saca e sacará coisas inesquecíveis. Os Castanho, visivelmente, já navegam bem pelos peixes, pelos derivados da mandioca, pelas sobremesas. 

Mas, de imediato, nada disso importa tanto quanto a declaração de uns amigos, um deles estrangeiro, que me ajudaram a comer uma banda de um enorme tambaqui na brasa: “Nunca comemos na vida um peixe melhor!”

Afinal, qual o papel do cozinheiro senão encaminhar as maravilhas da natureza para o suas melhores formas de existência diante de paladares humanos? Senão administrar a felicidade aqui e agora promovendo esse encontro entre uma natureza excepcional e uma transformação sensível a essas qualidades únicas? Muita gente que prega o "respeito aos ingredientes" sequer se dá conta de que, quando eles chegam à cozinha, já foram estuprados na longa cadeia de fornecimento.

Certa vez ouvi de Adrià que o futuro da gastronomia esta na Amazônia, assim como na China, mas dependendo de conseguirmos transformar seus produtos em mercadorias produzidas regularmente. A cozinha dos Castanho, hoje, me faz duvidar disso. A reprodução seriada do pirarucu, do tambaqui, do bacuri não parecem ser o caminho. A maior proximidade com aquela natureza ímpar é mais compensadora.


Os Castanho são esses guias da natureza numa época em que as técnicas sozinhas enfastiaram. Até a estética dos seus pratos mostra isso mais e mais. Sorte deles, sorte nossa, sorte de Belém. 

Mas Belém é a civilização tropical que o Brasil teima em perder, em entregar à voragem do capitalismo mais que selvagem. Em certos trechos, seu trânsito já é pior do que em São Paulo. O mau gosto musical, o funk alto nos carros que passam, vão mostrando o fim dessa civilização que, um dia, sonhamos ser a nossa.